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architexts ISSN 1809-6298


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Este trabalho identifica alguns projetos emblemáticos não construídos que se tornaram referências na área e discute suas influências e reinterpretações. O intuito é ressaltar o status do projeto como um produto cultural relevante por si só capaz de inspir


how to quote

OBA, Leonardo Tossiaki. Arquitetura no papel. A obra não construída como referência histórica. Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 180.03, Vitruvius, maio 2015 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.180/5558>.

Há um senso comum de que Arquitetura é obra construída. O projeto seria apenas um meio para concretizar uma ideia em coisa edificada intervindo num determinado contexto. O percurso entre o pensamento e a obra concluída é marcado por um longo processo de simulações, revisões e adaptações para se ajustar ao programa, às normas legais e às limitações tecnológicas. Concluída a obra e tendo ela um valor intrínseco, simbólico ou de inovação será reconhecida e, cedo ou tarde, objeto de cuidados e ações preservacionistas. A obra construída é, em si, o documento concreto do patrimônio cultural.

Porém, por razões diversas, muitos projetos de qualidade são descontinuados. Mesmo que a obra não se realize, é preciso reconhecer seu valor histórico como produção cultural. Por vezes, eles marcam o estado da arte e permanecem como referências importantes tanto para o autor como para a comunidade de arquitetos. Formam partes de uma estrutura paradigmática de um período e que acaba gestando um modo de pensar e fazer arquitetura que se manifesta a qualquer momento em realizações concretas. Não raro, essas proposições ressurgem de forma parcial ou reinterpretada em obras do mesmo autor ou de outros. As utopias dos anos 60 repercutiram tardiamente a partir do Centro Pompídou em Paris e hoje são realidades banalizadas no cenário internacional.

Este trabalho pretende Identificar um conjunto de projetos que se tornaram referências relevantes para os avanços na área e investigar e discutir as relações de similaridade, as convivência de ideias, as possíveis influências e reinterpretações.

O intuito é ressaltar o status do projeto como um produto cultural relevante por si só, capaz de inspirar transformações e desenvolvimentos. E em termos locais, discutir a importância de identificar e documentar os projetos qualificados e delinear possíveis providências para sua conservação.

A necessidade das referências

Historicamente não há como fazer arquitetura sem referências. É uma condição inescapável. Se no passado, as rígidas prescrições dos Tratados de Arquitetura regiam os caminhos do projeto, hoje, consciente ou não, a criação surge do repertório, experiências e valores do autor contaminados pelo seu ambiente cultural.

A Arquitetura teve uma sucessão de tratados referenciais desde Architetura Libri Decem (Os Dez Livros da Arquitetura) de Marco Vitrúvius Polião escrito possivelmente em 27 AC. De re aedificatoria ("Sobre a arte de construir") escrito por Leon Battista Alberti (1404 –1472) entre 1443 e 1452 e I quattro libri dell'architettura (Os quatro Livros da Arquitetura) de Andrea Palladio (1508 –1580) escrito em 1570.

As fontes e as fronteiras das ciências, das artes e da arquitetura eram regidas pelas tradições, convenções sociais ou superstições. Foi preciso esperar que as ideias iluministas exorcizassem essas amarras para que a arquitetura prosseguisse no caminho da modernidade. A Encyclopédie, organizada por Diderot e d´Alembert e publicada entre 1751 e 1772, com 28 volumes, foi um importante veículo de divulgação dos ideais iluministas Nela a Arquitetura tinha espaço com ênfase na “perfeição”,”ordem”, “conveniência” e “bom gosto” e já se chamava atenção para a necessária definição de uma “hierarquia das partes principais, subordinadas e acessórias” na edificação(1).

As limitadas funções e atividades urbanas, e as poucas opções de técnicas e materiais de construção do passado definiam tipologias relativamente limitadas com ênfase monumental em obras públicas e religiosas cujos projetos eram balizados pelas recomendações rígidas dos tratados. Estes tratados foram as referencias que permaneceram impermeáveis às transformações da realidade até se esgotarem. Tal foi a persistência dessa tradição que até a metade do século 20, as escolas de arquitetura do Brasil ainda desenvolviam programas atrelados aos tratados clássicos.

Essa situação começa a mudar mais pela transformação do contexto. Surgiram novas atividades que demandaram programas mais diversificados e complexos. Novas tecnologias construtivas e materiais libertaram as Artes e a Arquitetura do academicismo. E esse turbilhão de novidades não caberia mais em qualquer manual ou compêndio doutrinário. Os arcaísmos observados na construção das primeiras indústrias são exemplos indicativos da inexistência de uma tipologia arquitetônica que pudesse representar uma construção industrial com escala, vãos estruturais, condições de iluminação e ventilação compatíveis.

Qual seria o papel das “referências” no atual contexto? Numa simplificação, seria documentar para “copiar”? Isso seria perpetuar a antiga tradução. Se os manuais quase que incentivavam a cópia, na nova situação há uma busca permanente pela inovação.

Estudar as referências, portanto não é mais copiar, mas sim aprender com a experiência de outros, se dar conta do estado da arte, estabelecer um patamar superior para iniciar um novo projeto. Referência em Arquitetura passa a ter um sentido abrangente. Entre outras ela pode ser: histórica, programática-funcional, estética, tecnológica ou teórico-conceitual. Pode ser uma obra recente de Arquitetura ou mesmo uma “reinterpretação” da natureza, da Biologia, das realizações do passado ou até ficção científica.

É todo um universo novo de conteúdo à disposição para balizar e alimentar o processo de projeto. Isso significa que as referências que alimentam novos desenvolvimentos são segmentadas e parciais. Trata-se, às vezes das estratégias de implantação, sistemas estruturais, detalhes, formas ou articulações espaciais. Há, portanto uma profusão de recursos que fica à disposição do imaginário dos arquitetos. Com esse repertório alimentando a busca por uma solução para um determinado programa em determinado lugar dificilmente o resultado será a repetição de outra que a inspirou. O bom projeto é aquele que consegue a sintonia: lugar, programa, recursos técnicos e adequação ao momento histórico. Ou seja, o momento em que há condições técnicas e financeiras para execução e aculturação suficiente para compreensão e aceitação da proposta.

Por vezes, as ideias não são aceitas por falta de sintonia com o contexto cultural, econômico e tecnológico. Não basta o vislumbrar de um novo paradigma por parte do autor, tão somente. É necessária a capacidade de percepção e apreensão destas mudanças também por parte dos críticos, dos jurados de concursos, dos contratantes e do senso comum dos pares. Neste processo de amadurecimento de novos paradigmas há que se incluir também a evolução tecnológica no sentido da capacidade de executar com custos factíveis as propostas inovadoras. Será maior a possibilidade de aceitação e realização quando essas condições encontrarem um ponto de equilíbrio.

Há situações em que os elementos referenciais (estruturas, materiais ou estratégias formais) adequadas nos projetos originais, são incorporados em projetos em condições e circunstâncias diferentes levando a resultados inesperados. É preciso reinterpretar as variáveis buscando soluções específicas para cada lugar. Tentar repetir literalmente alguma solução arquitetônica em outro lugar sem a necessária reinterpretação só pode resultar na nítida impressão de “ideia fora do lugar” (2).

As referências devem ser entendidas como valores que fazem pensar, que repercutem na estrutura intelectual e constroem novas proposições.

Como em qualquer momento de mudanças haverá sempre adesões apressadas e instintivas às novidades. Como consequências uma leva de imitações e cópias deve surgir numa reedição de pastiches históricos. Espera-se que uma parcela consciente, movida por um sentimento que Bloom denomina “angústia da influência” possa construir uma linhagem de bons projetos que busquem persistentemente reinterpretar, agregar, desenvolver propostas sempre com alguma contribuição (3).

Para Oscar Niemeyer, esse algo a mais, a cada novo projeto, é um pressuposto indispensável. Ao concluir um projeto ele precisa ter algo importante a dizer. A falta de argumentos para explicá-lo é o sinal para que o projeto seja revisado.

“só me sinto satisfeito quando vejo que um elemento novo foi incorporado ao projeto, que ele não é vulgar nem repetitivo, que é fácil defende-lo com o entusiasmo que um bom exemplo de arquitetura permite” (4).

Toda evolução precisa de insumos, referências, voluntárias ou não, sob o risco de estagnação no mesmo paradigma. A intransigência e impermeabilidade às mudanças em andamento levam muitos a se auto referenciarem num círculo vicioso, repetitivo e estacionário.

Os grupos

Para essa pesquisa foram escolhidas propostas de arquitetos de notória importância que tiveram desenvolvimentos tardios em nova realidade ou como repercussões identificáveis em projetos de outros autores. Os projetos foram agrupados em dois conjuntos por semelhanças tipológicas facilmente identificáveis e em ordem cronológica. Por se tratar de uma pesquisa exploratória pode-se sugerir para o futuro uma análise contextual do grau de desenvolvimento das tecnologias disponíveis à época de cada projeto e os paradigmas vigentes em termos de linguagem arquitetônica.

As esferas da arquitetura

Uma das formas geométricas mais inspiradoras e persistentes é a esfera. Sem arestas, pontas, nada que indique o começo ou fim. Uma forma autossuficiente, completa, perfeita. A imaginação vê nela a abóbada celeste, o infinito que a todos envolve. Na arquitetura ela dissolve as fronteiras entre piso, teto e parede e proporciona espaços que libera simbólica e sensorialmente o homem das Leis da gravidade. Essa relação mística com as formas cósmicas (sol, terra, lua) e a capacidade surpreendente de vencer vãos impensáveis levam os arquitetos a usarem, ainda hoje, reiteradamente, as variações em superfícies esféricas nas suas propostas sempre que há a necessidade de um espaço monumental e grandiloquente.

No Império Romano, o Panthéon, templo dedicado a todos os deuses (pan + theon), construído originalmente pelo imperador romano Marcus Vipsanius Agrippa (~63 a 12 AC) entre 27 a 25 AC e reconstruído por Adriano a partir de 120 DC, é a referência fundamental. A sua abóbada com iluminação zenital vence um vão capaz de inscrever no interior do templo uma esfera de aproximadamente 43 metros de diâmetro.

Interior do Panteão no século 18, pintura de Giovanni Panini
Imagem divulgação [Wikimedia Commons]

Outra referência é a Catedral de Florença, obra do Renascimento, cuja construção se prolongou por 140 anos (1296-1436) nas mãos de grandes construtores e artistas do período. A famosa abóbada é obra de Filippo Brunelleschi que vence o concurso em 1418.

Duomo da Igreja de Santa Maria del Fiore, Firenzi, 1296-1436. Arquiteto Filippo Brunelleschi
Foto Saiko [Wikimedia Commons]

No Théâtre d'Anatomie de l'École de Chirurgie (1780) o arquiteto Jacques Gondouin, (1737 –1818) propôs para o anfiteatro de aulas práticas de cirurgia da Escola de Medicina em Paris, uma solução que secciona a cúpula. Mesmo assim, mantém-se a monumentalidade espacial e cria-se uma assimetria que dá foco à mesa cirúrgica.

Cenotafio para Isaac Newton. Arquiteto Étienne-Louis Boullée [Wikimedia Commons]

Mas a obra “esférica”, uma “Arquitetura no papel”, mais instigante que repercute na arquitetura moderna é o projeto de Étienne-Louis Boullée para o Cénotaphe – Monumento Funerário dedicado a Isaac-Newton (1784). Para Boullé, a qualidade única dessa forma é que por onde quer que se observe, nós vemos somente uma superfície contínua que não tem começo nem fim e que quanto mais se observa maior ela parece”. Nas suas anotações sobre este monumento, Boullé relembra o exemplo das pirâmides do Egito que conjuram a aridez, a melancolia e a imutabilidade das montanhas. Expressa o desejo de incorporar a poesia na sua concepção e talvez, ainda inspirada nos monumentos egípcios, propõe uma arquitetura parcialmente enterrada no solo, ou seja, a base quase desaparecendo deixando à forma esférica em destaque. Observa que tradicionalmente, “Abóbadas formam o coroamento de todos os interiores dos monumentos e sempre tem a sua base sobre as ordens arquitetônicas.” No Cénotaphe ele decidiu fazê-la nascer diretamente do solo. O acesso, portanto ocorre em nível inferior em trajeto de penumbra que conduz o público até a grande surpresa no espaço do Memorial onde acontece uma experiência cósmica com uma escala grandiosa que tende ao sublime. Perfurações cônicas na espessa abóbada criam infiltrações de luz. Sob o infinito criado, observa-se o céu estrelado (durante o dia) ou iluminado feericamente por luz artificial (durante a noite). Em foco o único objeto material: a tumba de Isaac Newton (5).

Catedral Metropolitana, Brasília. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Leonardo Tossiaki Oba

Catedral Metropolitana, claro x escuro, Brasília. Arquiteto Oscar Niemeyer
Desenho de Leonardo Tossiaki Oba

Catedral Metropolitana, côncavo x convexo, Brasília. Arquiteto Oscar Niemeyer
Desenho de Leonardo Tossiaki Oba

É uma importante lição de arquitetura que de alguma forma repercutiu, entre outros, na arquitetura de Oscar Niemeyer no seu projeto para a Catedral de Brasília (1958-1970). Neste caso o trajeto subterrâneo rebaixado e obscuro conduz ao espaço da nave circular de 52 metros de diâmetro onde a luz e a leveza estrutural é o diferencial. A abóboda celeste é revelada através da transparência em toda sua realidade. A inovação conceitual de Niemeyer vai mais além, embora ainda hoje passe desapercebida. A cúpula tradicional contém e procura reproduzir o infinito, o universo sagrado, através de pinturas celestiais na superfície do espaço esférico interno. Na Catedral de Brasília há uma inversão da estrutura côncava para a convexa e o universo antes contido na cúpula se expande através da transparência.

A forma esférica está presente no repertório de Oscar Niemeyer com variações em inúmeras obras, entre elas a “Oca” do Parque Ibirapuera de São Paulo (1954), o Congresso Nacional em Brasília (1958) e mais recentemente o Museu da República em Brasília e a Fundação Oscar Niemeyer (2002) em Niterói.

Plenário do Senado Federal, Brasília. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Waldemir Barreto [Agência Senado]

Museu da República, Brasília. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Leonardo Tossiaki Oba

A “Biosfera” de Buckminster Fuller (1895-1983) é uma cúpula geodésica construída para o Pavilhão norte-americano da Exposição Mundial de 1967 no Canadá. Quando a tecnologia evolui a forma esférica consegue se liberar do peso das pedras e do concreto. Ela se realiza com a leveza dos tubos metálicos e a transparência inimaginável no passado.

Biosphere, Pavillhão Americano Exposição Mundial 1967, Quebec. Arquiteto Buckminster Fuller
Foto Eberhard von Nellenburg [Wikimedia Commons]

Edifício Esfera, EQUIP Xavier Claramunt de Barcelona
Imagem divulgação [www.demaravillas.com]

Não há limite para novas reproduções e desenvolvimentos à medida que as tecnologias de projeto e construção abrem novas possibilidades. O Edifício Esfera da EQUIP Xavier Claramunt de Barcelona é uma estrutura multifuncional habitável com 100 andares e área total de 1.660.900 metros quadrados. São duas esferas uma dentro da outra. A esfera interna acomoda escritórios, espaços públicos e culturais protegidos das constantes mudanças atmosféricas. A esfera externa acomodam as unidades habitacionais com vistas para o interior e exterior. Grandes aberturas iluminam o interior e amenizam a sensação de confinamento.

Plano urbano para o Rio de Janeiro, 1929. Arquiteto Le Corbusier [BARDI, Pietro Maria. Lembrança de Le Corbusier. São Paulo, Nobel, 1984]

Estruturas lineares

As cidades costumavam ser entendidas como aglomerações que cresciam lentamente e na maioria dos casos de forma radial. Em função da necessidade de trocas entre elas, as malhas de estradas foram se desenvolvendo sempre a reboque das demandas. A industrialização promoveu uma intensa urbanização, as trocas se intensificaram, e as cidades passaram a demandar soluções urgentes para mais espaço, melhores condições urbanas e tecnologias de transporte mais eficientes. Um ambiente de crise é propício para que as utopias se desenvolvam. Dentre as diversas utopias do século 19, a cidade linear de Arturo Soria y Mata (1844-1920) proposta para Madri (6) e publicada em 1882 pode ter inspirado também a Le Corbusier. O poder indutor do transporte urbano não passou despercebido ao planejador. Onde essa infraestrutura é implantada a ocupação acontece mais cedo ou mais tarde. Por isso os projetos de megaestruturas invariavelmente propõem uma solução única integrando a habitação, os serviços e eixo de transporte. Essa visão permeia as propostas de arquitetos como Le Corbusier, Alison e Peter Smithson, Louis Kahn, Kenzo Tange, Paul Rudolph entre outros. A sua genealogia demonstra que a cidade linear carrega em si um componente utópico persistente desde a sua origem, passando pelas megaestruturas da década de 1960 e até as propostas urbanas mais recentes.

Plano Obus para Algiers, 1931. Arquiteto Le Corbusier [LE CORBUSIER. Obra completa]

As utopias em geral tendem a ignorar, e a não enfrentar os problemas dentro da realidade existente. Elas se colocam em plano teórico, ideal, e preferem propor soluções que possam ser executadas em campo virgem, como modelos experimentais livres de constrangimentos e sem se adaptarem às realidades redutoras. São manifestos. Assim o Plano para Tóquio proposto por Kenzo Tange em 1960 desvia a cidade existente e avança linearmente sobre a baía. A Ville Spatiale de Yona Friedman (1923) por sua vez se articula em estruturas espaciais que sobrevoam a cidade que permanece como está.

Projeto “A”, Fort L´Empereur, Argélia, 1931. Arquiteto Le Corbusier [Wikimedia Commons]

A proposta de Le Corbusier para o Rio de Janeiro, elaborado durante a sua primeira visita ao Brasil em 1929, também tem esse caráter. Diante da complexidade de urbanizar o Rio de Janeiro onde tudo que se fizesse seria absorvido por uma “paisagem violenta e sublime” a opção foi fugir de um enfrentamento pragmático, evitar o mergulho na complexa realidade já instalada. A megaestrutura linear proposta por Le Corbusier se desenvolve sobre a cidade existente “sem atrapalhar ninguém”. Segundo seu relato:

“nada é mais fácil do que construir, sem muito problema, pilares de concreto armado elevando-se bem acima dos tetos dos bairros existentes. [...] após termos ultrapassados os telhados, os pilares começarão as ser interligados pelas massas construtivas em forma de imensos arcos simples de pontes. [...] somente a partir dos trinta metros começam os blocos de habitações de trinta a cem metros, ou seja, ´dez andares com pé direito duplo’ de apartamento tipo casa” (7).

Conjunto Residencial Marquês de São Vicente, Rio de Janeiro, 1952. Arquiteto Affonso E. Reidy [BONDUKI, Nabil. Affonso Eduardo Reidy. São Paulo, Instituto Bardi/Blau, 2000]

Na cobertura ele imaginou uma imensa autoestrada ligando, à meia altura, os morros de modo a unir rapidamente a cidade aos platôs mais altos e salubres. Sob a estrada propôs garagens e em locais mais importantes, elevadores de automóveis fariam a conexão da autoestrada “de cima” ao sistema viário existe no nível do solo. Além de fugir da problemática questão fundiária, pois o ar não tem dono, Le Corbusier antecipa a ideia do “solo criado” e deixa intocados os problemas que possam existir ao nível do solo tradicional. A liberdade de construir casas ao gosto de cada um nos andares de pé-direito duplo (mais visível na proposta para Argel), a vista panorâmica do mar e das montanhas e um sistema viário exclusivo ligando facilmente ao trabalho e aos melhores lugares da cidade seriam oS atrativos dessa proposta.

Plano urbano para São Paulo, 1929. Arquiteto Le Corbusier [BARDI, Pietro Maria. Lembrança de Le Corbusier. São Paulo, Nobel, 1984]

O que teria inspirado Le Corbusier? A sua descrição de como “os pilares começarão as ser interligados pelas massas construtivas em forma de imensos arcos simples de pontes” para sustentar blocos de habitação com variações de formas e pé-direito, remete à imagem instigante da Ponte Vecchio de Florença que costuma ser lembrado como uma das primeiras megaestruturas.

Ponte Vecchio, Firenze
Foto D. Gayo [Wikimedia Commons]

Na viagem de 1929, de 74 dias pela América do Sul Le Corbusier teve a oportunidade de estudar as capitais sul-americanas diretamente dos ares em sobrevoos inéditos para a época. Proferiu palestras em Buenos Aires, Montevidéu, São Paulo e Rio de Janeiro e elaborou planos para elas. Ao retornar à França, os seus esboços, reflexões e anotações resultaram no seu livro Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo, publicado em 1930 (8). O livro Les Trois Établissements Humains (9) da ASCORAL (Assemblée de consturcteurs pour une rénovation architecturale) foi publicado em 1945, após o fim do governo colaboracionista na França. A obra traz uma visão mais sistêmica de planejamento regional e propõe como modelo uma estrutura em rede que integra a unidade de exploração agrícola, um eixo linear industrial que conecta cidades radiocêntricas de trocas. A segunda visita de Le Corbusier ao Brasil foi em 1936 e a última em 1962, quando conheceu Brasília: a utopia do movimento moderno que ele gostaria de ter realizado.

Embora sem obra construída no Brasil, essas “Arquiteturas no papel” se fixaram de forma indelével no imaginário de todos aqueles jovens arquitetos que iriam construir a modernidade da arquitetura sul-americana. É preciso lembrar que, em 1929, Oscar Niemeyer apenas começava o seu curso na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro concluindo somente em 1934. Em 1935 começa a trabalhar com Lúcio Costa. Affonso Eduardo Reidy (1909-1964) formou-se em1930 e era ainda estudante quando da primeira visita de Le Corbusier. Entre 1929-1931 foi assistente de Alfred Agache contratado para elaborar o Plano Diretor do Rio de Janeiro (10).

Liderados por Lúcio Costa que assume a direção da Escola Nacional de Belas Artes a partir de 1931 o grupo formado por Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Jorge Moreira, Ernani Vasconcellos e Carlos Leão elaboram o projeto do Ministério de Educação e Saúde.

Conjunto Residencial Pedregulho, Rio de Janeiro, 1947-1958. Affonso Eduardo Reidy
Foto Andrés Otero

O Conjunto Habitacional Prefeito Mendes de Morais, conhecido como Pedregulho (1947-1958) e o Conjunto Residencial Marques de São Vicente (1952) projetados por Reidy são a concretização mais próxima da megaestrutura de Le Corbusier. Essas obras não tinham o intuito de resolver o problema urbano do Rio de Janeiro, mas apenas atender a uma demanda habitacional para pessoas de baixa renda. Não incorporou uma autoestrada na cobertura e não tinha como estender-se de forma indeterminada fazendo as conexões urbanas almejadas por Le Corbusier. Talvez fosse esse o aspecto mais utópico que impõe a necessidade de construir por inteiro e de uma só vez a proposta imaginada. O factível é construir por segmentos e sem garantias de continuidade... A sua Unité d'Habitation (1947-52) em Marseille, tem cerca de 100 metros de extensão em linha reta e sem a pretensão de torná-la uma megaestrutura que se estendesse indefinidamente.

A versão “Pedregulho” da unidade de habitação, sinuosa e leve, construída pelas mãos de Reidy, tem uma sintonia maior com a paisagem do lugar. E, ao interpretar com maestria os pensamentos do seu mentor, deixou um referencial construído fundamental para o desenvolvimento da arquitetura moderna no Brasil.

Ministério das Finanças, Paris, 1982. Arquiteto Paul Chemetov
Foto divulgação [website AUA Paul Chemetov]

A rua intermediária, além de proporcionar um acesso alternativo à cota mais elevada do morro, abre uma visão panorâmica para a paisagem e garante aos moradores uma área coletiva de circulação, contemplação e encontro. Ela forma uma transparência horizontal no meio da grande massa proporcionando mais leveza ao conjunto. Os que acessam neste nível só precisam subir 2 andares ou descer 2 andares para chegarem aos apartamentos duplex. Os pilotis no térreo deixam o terreno intocado evitando grandes cortes e movimentações de terra. Enquanto a cobertura mantém a rigidez horizontal que dá unidade ao edifício como um todo, junto ao solo, os pilares tocam as ondulações do terreno como e onde elas estiverem. As curvas do edifício entraram em harmonia inesperada com as matas e morros da cidade dissolvendo a sua massa construída e proporcionando variações de perspectivas na paisagem.

Oscar Niemeyer também incorporou essas sinuosidades no seu repertório e as desenvolveu com o seu talento inato. O Edifício Copan (1951) em São Paulo pode ser entendido como um segmento da megaestrutura corbusiana. Neste caso, se insinuando em meio a outra natureza, a construída, uma “selva de pedra” (11). O acervo monumental de obras de Niemeyer mostra uma autonomia indiscutível, mas a sua fonte original sem dúvida é Le Corbusier. O edifício Baker Dormitory (1947-48) de Alvar Aalto, no Massachusetts Institute of Technology, também tem como partido uma forma ondulada, mas percebe-se que a matriz é outra.

Edificio Copan, São Paulo, 1951. Arquiteto Oscar Niemeyer
Foto Nelson Kon

No outro extremo verifica-se hoje uma visão mais crítica e atenta que enfrenta corajosamente a realidade social dos grandes centros urbanos. Um projeto recente de Hector Vigliecca & Associados para o conjunto de 200 habitações no Parque Novo Santo Amaro 5 (2009-2012) apresenta uma estratégia de ocupação linear em área de risco já ocupada (12). Dessa vez o projeto não passa a 30 metros acima “sem atrapalhar ninguém”. Há um enfrentamento efetivo dentro de uma imensa massa de construções irregulares em área de proteção de mananciais junto à represa de Guarapiranga. Ao longo de um curso d´água existente foi criado um Parque Linear que estrutura a área de intervenção. Os equipamentos de educação e lazer ficam nas extremidades de forma a criar uma circulação estimulada. A proposta rejeita formalismos heroicos, mas entende que é necessário criar elementos visíveis e compreensíveis que organizem essa totalidade. A reprodução da habitação tem como pressuposto a variedade e a identidade resultante de uma postura de respeito à geografia e de solidariedade ao existente (13). Há diferenças de abordagem, de escala e estratégia de integração, porém ainda permanece um voluntarismo de impor uma solução formal única e referencial, embora com atitudes mais conciliadoras e disposição para diálogos de escala e identidade com o contexto.

Parque Novo Santo Amaro 5, São Paulo, 2009-2012. Escritório Vigliecca & Associados
Foto divulgação [website Vigliecca & Associados]

No cenário internacional obras mirabolantes chamam atenção como o Hotel Marina Bay Sands de Moshe Safdie em Singapura. Uma grande cobertura liga três torres independentes de grande altura. Não se trata de uma autoestrada como queria Le Corbusier, mas uma grande área de lazer com uma piscina na cobertura. A imagem deste conjunto, no entanto traz a utopia do arquiteto visionário para um universo mais próximo e factível.

Hotel Marina Bay Sands, Singapura, Moshe Safdie
Foto divulgação [website Moshe Safdie]

Ainda que de forma parcial e em escala menor, essas obras mantêm viva a força da proposta original: a “arquitetura no papel” de Le Corbusier. Elas formam pontes culturais para um futuro onde essa utopia possa se realizar. Os avanços na tecnologia de transportes de massa de alta velocidade e com baixo nível de impacto ambiental aponta para uma possibilidade não muito distante de retomada dessa busca pela integração com estruturas habitáveis do futuro.

Conclusão

Apesar da diversidade e aparente renovação de repertórios, muitas das propostas não construídas permanecem no imaginário do autor como fonte importante para seus projetos futuros ou como influência socializada. Elas formam “pontes culturais” que garantem o fluxo do pensamento através das gerações e paradigmas. Numa visão social mais ampla, as obras de uma geração não tem um autor único. São construídas pelas ideias em circulação. Por circunstâncias fortuitas esse pensamento coletivo se concretiza em algumas obras excepcionais como sedimentos históricos de uma determinada cultura.

A constatação da importância do projeto como objeto teórico pode contribuir para chamar atenção para a necessidade de valorizar e preservar não apenas as obras construídas, mas também os documentos gráficos e textuais que restaram como únicos testemunhos frágeis de projetos não construídos ou mesmo aqueles descaracterizados por construção inadequada ou deturpada pelos acréscimos no tempo.

Sabe-se que o desenvolvimento de uma ideia até a sua efetiva construção pode ser também um processo de redução, de perdas, nas diversas etapas. Há diferenças evidentes entre o que se desejou construir e o que se conseguiu realizar. Neste sentido há projetos paradigmáticos importantes que teriam maior força inspiradora permanecendo no plano das ideias do que como obras descontinuadas ou mal construídas. Em geral o sonho é maior que a realidade complexa e redutora. Para a História da Arquitetura, tão importante como as obras efetivamente construídas são as genealogias das ideias que as inspiraram.

As obras envelhecem e quando em estado decadente sem conservação não conseguem mais transmitir as mensagens originais. A mensagem do movimento moderno foi de renovação, luz, salubridade e otimismo. Por isso a obra moderna reconhecida como patrimônio cultural não pode permanecer em estado de abandono. Nela não é a “pátina” do tempo que conta, mas a sua racionalidade, permanente atemporalidade para exercer o seu papel de transformador do contexto. Se ela se deteriora, o seu entorno também entra em decadência. É neste momento que os documentos gráficos e textuais, em toda sua fragilidade, têm mais eloquência. A função da documentação é registrar e informar a mensagem original da obra construída quando a obra existe e substituí-la na sua ausência como emissário de uma ideia.

Em todas as cidades há acervos de projetos à espera de um destino adequado. A digitalização é ainda muito recente e a maioria deste material ainda foi produzida em papel. É necessária uma mobilização para definir as responsabilidades e as ações para estabelecer uma prática segura e permanente para o resguardo deste precioso patrimônio cultural.

notas

NA — Artigo originalmente apresentado no 3º Seminário Ibero-Americano Arquitetura e Documentação. Belo Horizonte 12 a 14 de novembro de 2013. Anais do evento, ISSN 1983-7518.

1
AZEVEDO, Ricardo Marques. Antigos modernos: estudo das doutrinas arquitetônicas nos séculos XVII e XVIII. São Paulo, FAU USP, 2009.

2
SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. São Paulo, Editora34, 2000.

3
BLOOM, Harold. The Anatomy of Influence:Literature as a way of life. New Heaven/London, Yale University Press, 2011.

4
NIEMEYER, Oscar. Como se faz arquitetura. Petrópolis, Vozes, 1986.

5
BOULLÉE, Étienne-Louis. Architecture: Essay on Art. In: ROSENAU, Helen. Boullée & Visionary Architecture. London, Academy Editions, 1953.

6
OBA, Leonardo Tossiaki. Cidade grifada: Curitiba e seus eixos estruturais. In: Encontro Anual Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Ambiente e Sociedade – ANPPAS, Indaiatuba. Anais do II Encontro. ANPPAS Brasil, 2004. Disponível em: <www.anppas.org.br>.

7
Apud SANTOS, Cecilia Rodrigues dos. et al. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo, Tessela/Projeto, 1987, p. 95.

8
LE CORBUSIER. Precisões sobre um estado presente da arquitetura e do urbanismo. São Paulo, Cosac Naify, 2004. QUEIROZ, Rodrigo; SEGAWA, Hugo (curad.). Exposição: "Le Corbusier-América do Sul-1929", Centro Universitário Maria Antonia, São Paulo, 23 ago. a 21 out. 2012 <www.archdaily.com.br/br/01-66735>. Acesso em 30 set 2013.

9
LE CORBUSIER. Os três estabelecimentos humanos. São Paulo, Perspectiva, 1979.

10
BONDUKI, Nabil; PORTINHO, Carmen. Affonso Eduardo Reidy. Lisboa/São Paulo, Blau/Instituto Bardi, 2000, p. 27.

11
QUEIROZ, Rodrigo. Forma moderna e cidade: a arquitetura de Oscar Niemeyer no centro de São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 151.08, Vitruvius, dez. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.151/4632>.

12
TRONCOSO, Ursula. Enfrentar a cidade real. Arquitetura e Urbanismo – AU, ano 27, n. 225, São Paulo, dez. 2012, p. 48-57.

13
VIGLIECCA, Hector. Parque Novo Santo Amaro 5. Vigliecca & Associados. 2013. Disponível em:  <www.vigliecca.com.br/pt-BR/projects/novo-santo-amaro-v>. Acesso em 01 out. 2013.

bibliografia complementar

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sobre o autor

Leonardo Tossiaki Oba é arquiteto, doutor em arquitetura e urbanismo (FAU USP, 1999), professor titular da Escola de Arquitetura e Design, Pontifícia Universidade Católica do Paraná e do Curso de Arquitetura e Urbanismo Universidade Positivo.

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180.03 crítica
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180.00 cenografia

Desenhos que revolucionaram a cena teatral

Talitha Ramos

180.01 ensino

Uso do raciocínio analógico na concepção projetual em ensino introdutório de projeto arquitetônico

Amélia de Farias Panet Barros and Patrícia Alonso de Andrade

180.02 urbanismo

Fatores morfológicos da vitalidade urbana

Uma investigação sobre o tipo arquitetônico e seus efeitos

Renato Tibiriçá de Saboya, Vinicius M. Netto and Júlio Celso Vargas

180.04 patrimônio

Considerações acerca d’O nariz torcido de Lucio Costa

Carlos Gutierrez Cerqueira

180.05 crítica

O prazer estético e o “para além do princípio do prazer”

O problema da repetição na metapsicologia freudiana

Luiz Felipe da Cunha e Silva

180.06 história

Agosto de 1944: as jornadas da liberação de Paris

A reflexão e o testemunho de Sartre e de Simone de Beauvoir

Adson Cristiano Bozzi Ramatis Lima

180.07 espaço cênico

Novas casas

Possíveis relações entre a cidade e o teatro

Cristiano Cezarino Rodrigues

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