O objetivo deste ensaio é desenvolver e aprofundar a pesquisa apresentada noutro que o antecedeu, publicado nesta revista (1). Tal trabalho tinha como foco, além de discutir a presença da repetição em todas as formas de arte, apresentar a discussão deste tema em vários autores. Aqui, trata-se de investigar relações profundas e discretas entre processos psíquicos fundamentais e o prazer estético que, em todas as formas de expressão artística, é extraído da fruição de composições baseadas na repetição. De modo diferente do anterior, aqui toda a discussão esta centrada na obra de Sigmund Freud, e os outros autores adotados servem apenas como apoio ou entrada para aspectos específicos desta obra.
Partimos aqui de um aforismo de Friedrich Nietzsche, na Gaia Ciência (1882 – 1887), intitulado Da origem da poesia, no qual ele se refere a uma “sujeição elementar que o ser humano experimenta ao escutar música”. Segundo ele, “o ritmo é uma coação; ele gera um invencível desejo de aderir, de ceder; não somente os pés, a própria alma segue o compasso” (2).
É nessa sujeição elementar, capaz de capturar a própria alma, aqui entendida no sentido mais nietzscheano do termo, isto é, como espaço interior subjetivo, produzido pela introjeção da agressividade natural, impedida de exteriorização pelos valores morais e estéticos da vida social, que buscamos encontrar, através desta investigação, as discretas mas insuperáveis relações entre o prazer estético e a repetição, que se dão ao nível da estrutura psíquica do sujeito.
Segundo o filósofo, “todos os instintos que não se descarregam para fora, voltam-se para dentro – isto é o que chamo interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que depois se denomina sua ‘alma’” (3). Também Freud pensa o que Nietzsche define como alma em termos semelhantes e chegou a declarar em sua autobiografia de 1925 que só o leu tardiamente por receio de deixar-se influenciar (4). Para Freud, o que Nietzsche chama de má-consciência é designado como consciência moral e esta é “a agressividade introjetada e internalizada”, que é devolvida ao próprio Eu e lá convertida em Supereu, uma “consciência moral (Gewissen) (5) que dispõe-se a exercer contra o Eu a mesma severa agressividade que o Eu gostaria de satisfazer em outros indivíduos” (6).
A “alma” é para ambos uma construção movida pelo retorno da agressividade e esta (Wille zur Macht, para Nietzsche) é uma pulsão essencial da vida humana. No entanto, para Freud o que move o sujeito para a arte é um impulso erótico. Uma pulsão de natureza sexual, em seus termos. Mais precisamente, para ele a atividade artística é o fruto de um desvio que sofre esta pulsão na busca de sua satisfação. Ele designa este desvio como sublimação (7).
“Outra técnica de afastar o sofrimento recorre aos deslocamentos da libido [...]. A tarefa consiste em deslocar de tal forma as metas das pulsões (Trieb) (8) que elas não podem ser atingidas pela frustração a partir do mundo externo. A sublimação das pulsões empresta aqui a sua ajuda. O melhor resultado é obtido quando se consegue elevar suficientemente o ganho de prazer a partir das fontes de trabalho psíquico e intelectual. Então o destino não pode fazer muito contra o indivíduo. A satisfação desse gênero, como a do artista no criar, [...] tem uma qualidade especial, que um dia poderemos caracterizar metapsicologicamente” (9).
A relação entre aparelho psíquico, felicidade, beleza, sexualidade, prazer estético e expressão artística é pouco abordada na obra de Freud, que considera a arte um paliativo pouco eficaz contra o sofrimento psíquico que provém da não satisfação de pulsões.
“Entre essas satisfações pela fantasia se destaca a fruição de obras de arte [...]. Quem é receptivo à influência da arte nunca a estima demasiadamente como fonte de prazer e consolo para a vida. A suave narcose em que nos induz a arte não consegue produzir mais que um passageiro alheamento às durezas da vida, não sendo forte o bastante para fazer esquecer a miséria real” (10).
Embora ele tenha abordado estes temas em Os dois princípios do funcionamento psíquico de 1911 e os tenha retomado na 23ª das Conferências introdutórias à psicanálise de 1917, os desdobramentos mais interessantes possivelmente estão em O mal-estar na civilização” (11) de 1929, quando toda a sua teoria das pulsões, embora sempre inconclusa, estava mais amadurecida. Embora considere que a psicanálise tem pouco a dizer sobre a beleza, afirma que esta é derivada “do terreno das sensações sexuais”, e que “seria um exemplo perfeito de um impulso inibido em sua meta”. A “beleza” e a “atração”, segundo ele, ”originalmente são características do objeto sexual”. Porém, relaciona a qualidade da beleza a “certas características sexuais secundárias”, pois é digno de nota “que os genitais mesmos, cuja visão tem efeito excitante, quase nunca sejam tidos como belos” (12).
Sobre esse tema, um dos momentos mais interessantes desta obra é a caracterização do que é a civilização (Kultur) (13). Inicialmente, Freud coloca em relevo todas as criações humanas no campo da técnica e tudo o que serve para a exploração da terra e para a proteção frente às forças da natureza (14). Sugere que nessas criações o homem seguiu o ideal cultural de seus deuses. Mas alerta que nesta condição, pela dependência de seus dispositivos, o homem acaba por tornar-se o que designa como um “deus prótese” (15). Questiona-se, assumindo a contradição com o valor utilitário de tais criações, quanto ao fato “de que saudamos também como civilizado o fato de as pessoas se preocuparem com coisas que absolutamente não são úteis e que, antes, parecem inúteis”. Logo notamos, segundo ele, “que a coisa que esperamos ver apreciada na civilização é a beleza”. Segundo ele, “exigimos que o homem civilizado venere a beleza onde quer que ela lhe surja na natureza, e que a produza em objetos, na medida em que for capaz de fazê-lo” (16).
Os dois outros ideais essenciais e não utilitários da cultura são, segundo Freud, a limpeza e a ordem. Não nos surpreendemos, segundo ele, “se alguém coloca o uso do sabão como medida direta do grau de civilização”. O mesmo sucede com a ordem que “tal como a limpeza está inteiramente ligada à obra humana” (17).
De fato, há intensa relação entre estes valores e a beleza. O conceito de beleza está intrinsecamente ligado ao de ordem e é comum que seja definida como um certo estado de ordem ao qual, segundo Leon Batista Alberti, por exemplo, nada pode ser acrescido, subtraído, ou mudado sem que se desfaça a qualidade da qual a beleza emana (18). Relações ordenadas de proporção, ou relações harmônicas entre as partes, definem, para muitos autores (ver artigo anterior) o que é a beleza de uma dada composição e isso em todas as artes, como vimos através de Agostinho de Hipona (idem). Deste modo, podemos entender a beleza das composições artísticas como um certo estado de ordem (idem), ao qual convencionou-se, muitas vezes, designar como harmonia.
Mas se não podemos encontrar na natureza o modelo para os ideais de limpeza, “a ordem”, segundo Freud, “nós copiamos dela”. A observação das grandes regularidades astronômicas e das recorrências cósmicas da natureza “deu ao ser humano não apenas o modelo mas o ponto de partida para a introdução da ordem na sua vida”. A ordem, segundo ele, “é uma espécie de compulsão à repetição que, uma vez estabelecida, resolve onde, como e quando algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico”. Para a psicanálise, ordem é repetição. Neste âmbito, através da repetição, encontramos a relação entre ordem e beleza. De fato, “assim como a beleza, limpeza e ordem ocupam claramente um lugar especial dentre as exigências culturais” (19).
Os benefícios da ordem são tão inegáveis, em particular no que diz respeito “ao melhor aproveitamento do espaço e tempo” que, segundo Freud, seria de esperar “que se impusesse à atividade humana desde o princípio sem dificuldades” (20). No entanto, segundo ele,
“é de espantar que isso não aconteça, que as pessoas manifestem um pendor natural à negligência, irregularidade e frouxidão no trabalho, e a duras penas tenham que ser educadas na imitação dos modelos celestes” (21).
Naturalmente, não foi fácil, no processo de desenvolvimento da cultura, a supressão, o controle e a renuncia à satisfação pulsional exigidas para o desenvolvimento de tais aptidões. A violência deste processo é bem descrita por Nietzsche na segunda dissertação da Genealogia da moral e no O nascimento da tragédia no espírito da música através de narrativas bastante perturbadoras. Em O erotismo, Georges Bataille sugere que dele decorreu o fracionamento da vida em suas duas faces antropológicas, a sagrada e a profana (22). Freud concorda com estas dificuldades e, segundo ele, tampouco é fácil compreender como se pode privar uma pulsão de sua satisfação, o que é algo que “tem seus perigos; se não for compensado economicamente, podem-se esperar graves distúrbios” (23).
Parece evidente, que grandes esforços foram, de qualquer modo, necessários para a obtenção de tal grau de desenvolvimento cultural. Se são indiscutíveis as vantagens da limpeza, cujas relações com a saúde deveriam ser de algum modo conhecidas mesmo antes da época da prevenção científica das doenças, e igualmente as vantagens e as utilidades da ordem, o fato de a civilização considerar tais esforços diante da beleza já demonstra, segundo Freud, que suas motivações não eram de caráter estritamente utilitário (24).
De qualquer modo, a esta altura já é possível perceber que tanto a beleza como a limpeza e a ordem custaram um alto preço em termos de contenção pulsional. Não se pode desprezar que são manifestações culturais intrinsecamente relacionadas com as pulsões humanas e que, de algum modo, se pode encontrar a repetição ou mesmo a compulsão a repetir em sua constituição. Outra característica que parece saltar à vista é que as pulsões – contidas ou desviadas de suas metas originais – que parecem estar envolvidas com o desenvolvimento da cultura são de caráter erótico.
No entanto, pulsões de outra natureza estão também envolvidas nos processos de repetição e, de um modo inusitado, com a expressão artística, com a beleza e com o prazer estético. É possível discerni-las, desde que sejamos capazes de relativizar e reconceber o que compreendemos como prazer. Tal perspectiva se encontra também presente na obra freudiana e uma das mais interessantes entradas nesta parte de tal obra é proposta por Walter Benjamin, num pequeno mas precioso texto intitulado “O brinquedo e o jogo” (25), geralmente tido como obrigatório entre educadores e pedagogos.
Certamente, não podemos desprezar as relações entre o prazer e o jogo. É pacífica a estreita relação lúdica entre a arte, o jogo e o prazer estético. A partir desta relação, encontramos, em Walter Benjamin, a idéia de que a “lei da repetição” é “a grande lei que rege acima de todas as regras e ritmos individuais o grande mundo do brinquedo”. Sabemos, segundo ele, que esta “’lei da repetição’ é, para a criança, a alma do jogo e que nada a torna mais feliz do que ‘outra vez’” (26).
O quanto desta alma infantil não reverbera no adulto que frui no texto poético o prazer das consonâncias e ressonâncias, que fazem de uma seqüência rítmica a poesia? O quanto dela ainda rege a expectativa, ânsia, com que, na audiência musical, aguardamos o refrão para, juntos e em uníssono, cantá-lo a plenos pulmões? Para nos encantarmos diante das simetrias arquitetônicas e urbanísticas, dos ritmos que ordenam as fenestrações e colunatas dos edifícios? O que torna especialmente aguardadas e coletivamente comemoradas as noites de passagem de ano e todas as festas que se repetem nos ritmos de suas estações? Não estamos, ainda, diante do “outra vez”, da lei da repetição enunciada por Benjamin?
Segundo ele, o “escuro impulso para a repetição é no jogo quase tão forte, quase tão ardiloso na sua atuação, como o é no instinto sexual”. Não foi em vão, segundo Benjamin, que Freud julgou descobrir, nesse impulso à repetição, um “além do princípio do prazer” (27). De fato, segundo ele, cada uma de nossas experiências mais profundas “anseia insaciavelmente, anseia até o fim, por repetição e retorno, pela reconstituição da situação primitiva de onde proveio” (28).
“Tudo seria perfeito se o homem pudesse fazer as coisas duas vezes”. É em conformidade com este pequeno ditado de Goethe, segundo Benjamin, que a criança age. “Só que a criança não quer apenas duas vezes, mas sempre mais, centenas de milhares de vezes”. Isso não é, segundo ele, apenas o caminho para se “dominar experiências primárias terríveis através do embotamento, do exorcismo maligno e da paródia”. É também “o caminho para a experiência cada vez mais intensa de triunfos e vitórias” (29).
O adulto, com o coração liberto do medo, goza, segundo Benjamin, uma felicidade redobrada, quando narra uma experiência. É distinto na criança, que “recria toda a situação”. Não um “fazer-de-conta-que”, mas um “fazer-sempre-de-novo”. “A transformação da experiência comovente em hábito, esta é a essência do jogo” (30).
Na verdade, segundo Benjamin, o jogo não é mais do que a origem de todos os hábitos. ”O comer, o vestir, o lavar, tem que ser inculcados no pequeno traquina sob a forma de jogo, ao ritmo de versinhos que acompanham este jogo”. É diante daquela “sujeição elementar que o ser humano experimenta ao escutar música”, mencionada por Nietzsche, desta “coação”, que gera aquele “invencível desejo de aderir, de ceder”; não somente dos pés, mas “da própria alma”, por ele mencionado, que Benjamin vê, através do jogo e das brincadeiras baseadas na repetição, o modo como o hábito entra em nossas vidas e como as suas formas mais rígidas “conservam um restinho de jogo até o fim”. Os hábitos, segundo ele, “são formas irreconhecivelmente petrificadas de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro desgosto” (31).
Seria excessivo imaginar que, mesmo quando já totalmente esquecidas, o ressurgimento destas experiências ou de fragmentos delas seja em si uma causa de prazer estético? Mais, imaginar que, em certas situações ou condições, a simples impressão da ressurgência de situações possa produzir prazer, independentemente de se as experiências primárias a elas associadas estivessem ligadas ao prazer ou ao desprazer? Que o simples reconhecimento, a ressonância ou nada mais do que a pura sensação ou percepção da repetição, em si, o “on the road again” (32), o “play it again, Sam” (33), já seja capaz de despertar o sentimento de prazer estético, independentemente de qualquer rememoração de fatos ou vivências originais? Este é, mesmo que lateralmente, um tema da pesquisa freudiana que tem início no título citado por Benjamin, Para além do princípio do prazer, em direção à qual proponho direcionar esta investigação.
Este texto de Freud é paradigmático e introduz, pela primeira vez em sua obra, pelo menos formalmente, a investigação sobre a eventual existência de uma pulsão de morte, à qual ele veio a associar uma compulsão à repetição. É um de seus textos mais complexos e muito provavelmente aquele no qual ele se apresenta mais hesitante nas formulações que propõe. É pouco praticável a entrada neste texto sem antes uma pequena discussão introdutória ao conceito Pulsão. Tal dificuldade reside em parte na difícil distinção entre os conceitos Pulsão (Trieb) e Instinto (Instinkt). Esta dificuldade se amplia na língua portuguesa, visto que todas as traduções da obra freudiana para esta língua verteram o termo alemão Trieb para o termo português Instinto.
O tradutor da primeira versão das obras completas para o português feita diretamente a partir do alemão, que estamos adotando na maior parte deste ensaio, o professor Paulo Cesar de Souza, alerta para os problemas desta versão de Trieb para Instinto e enfrenta dificuldades, principalmente em palavras compostas, sempre muito corretamente assinaladas nas notas do tradutor. Alerta também, no texto introdutório de cada volume, para que:
“No tocante aos termos considerados técnicos, não existe a pretensão de impor as escolhas aqui feitas como se fossem absolutas. Elas apenas parecem as menos insatisfatórias para o tradutor e os leitores e psicanalistas, [...], devem sentir-se à vontade para conservar suas opções. Ao ler essas traduções, apenas precisarão fazer o pequeno esforço de substituir mentalmente instinto por pulsão, instintual por pulsional” (34).
O tradutor tem inclusive um interessante livro (35) dedicado à questão. Optamos por não adotar suas opções devido aos motivos evidentes, que nos levaram a adotar a versão de Pulsão para Trieb e que serão expostos no desenvolvimento do texto a seguir. Para esta escolha, nos apoiamos também na tradução das professoras Vera Ribeiro e Lucy Magalhães para o “Dicionário de psicanálise” de Elizabeth Roudinesco e Michel Plon, além dos motivos citados no verbete relativo ao termo. Deste modo, nas citações das obras completas, traduzidas pelo professor Paulo Cesar, tomamos a liberdade, por ele autorizada, de fazer as substituições por ele sugeridas.
O termo Pulsão surge na França em 1625, derivado do latim Pulsio, para designar o ato de impulsionar. O termo alemão Trieb, que Pulsão tenta traduzir, foi pela primeira vez adotado por Freud em 1905 na coletânea intitulada Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. A inadequação da versão de Trieb para o português, pelo termo Instinto, já ficava clara em um acréscimo a este texto datado de 1910, onde ele forneceu uma definição geral que, em sua essência, não sofreu modificações ao longo de sua obra. Tal definição é a seguinte:
“Por Pulsão (Trieb), antes de mais nada, não podemos designar outra coisa senão a representação psíquica de uma fonte endossomática de estimulações que fluem continuamente em contraste com a estimulação [instintual] produzida por excitações esporádicas externas. A pulsão é, portanto, um dos conceitos de demarcação entre o psíquico e o somático” (36).
Em 1933, na 32ª de suas Novas conferencias introdutórias à psicanálise, intitulada Angustia e pulsões (37) Freud retoma o conceito para reafirmá-lo:
“Uma pulsão diferencia-se de um estímulo [instintual] pelo fato de originar-se de fontes de estímulo do interior do corpo, de operar com uma força constante e de a pessoa não poder subtrair-se a ele mediante a fuga, como é possível fazer com o estímulo externo” (38).
É com base nessa compreensão que Roudinesco & Plon, em seu “Dicionário de psicanálise”, abrem o primeiro parágrafo do verbete pulsão (Trieb) com o seguinte esclarecimento:
“A escolha da palavra Pulsão para traduzir o alemão Trieb correspondeu à preocupação de evitar qualquer confusão com Instinto e Tendência. Esta opção correspondia à de Sigmund Freud, que, querendo marcar a especificidade do psiquismo humano, preservou o termo Trieb, reservando Instinkt para qualificar os comportamentos animais” (39).
Na obra freudiana, a teoria das pulsões passa por um longo e tortuoso desenvolvimento. Na época pré-psicanalítica e do Projeto para uma psicologia científica (1895), Freud desenvolveu a idéia de uma “libido psíquica” forma de energia situada na origem da atividade humana. Já aí, estabeleceu uma distinção entre este “impulso”, cuja origem interna o tornava irrefreável pelo indivíduo e as excitações originados do mundo externo, das quais o sujeito podia se esquivar (40).
Em 1897, Freud abandona essa teoria e empenha-se em reformular sua concepção de sexualidade, mas mantém a idéia de que o recalque (repressão) das moções sexuais era a causa de um conflito psíquico que conduzia à neurose. Em 1898, a idéia da existência de uma sexualidade infantil torna-se explícita em sua obra. Posteriormente, utiliza pela primeira vez o termo Trieb, no já citado Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, publicado em 1905 e revisado várias vezes. Desde a primeira edição deste texto, o que está em pauta é essencialmente a pulsão sexual. Para ele, a pulsão sexual, diferente do instinto sexual, não se reduz às simples atividades sexuais que costumam ser repertoriadas com seus objetivos e seus objetos, mas é um impulso do qual a libido constitui a energia. Ainda neste texto, esboça uma distinção entre as pulsões sexuais e as outras, ligadas à satisfação de necessidades primárias (41).
Cinco anos depois, em A concepção psicanalítica da perturbação psicogênica da visão, enuncia seu primeiro dualismo pulsional, opondo as pulsões sexuais, cuja energia é de ordem libidinal, às pulsões de autoconservação, que tem por objetivo a conservação do indivíduo (42). Segundo ele, “todas as pulsões orgânicas atuantes em nossa alma podem ser classificadas, segundo as palavras do poeta, como ‘fome de amor’” (43). Essa classificação, não deve obscurecer, segundo Roudinesco & Plon, o que contrasta estes dois tipos de pulsões, uma vez que as pulsões de autoconservação, também denominadas de pulsões do Eu, participam da defesa do Eu contra sua invasão pelas pulsões sexuais (44).
Em 1911, Freud publica suas Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico, no qual distribui estes dois grupos de pulsões de acordo com as modalidades de funcionamento do aparelho psíquico: as pulsões sexuais encontram-se sob o domínio do princípio de prazer, enquanto as de autoconservação ficam a serviço do desenvolvimento psíquico determinado pelo princípio de realidade. Em 1914, com a publicação de Sobre o narcisismo: uma introdução, o conceito de narcisismo subverte este dualismo, com a constatação de que, nestas formas patológicas, estamos na presença de uma retirada da libido dos objetos externos e de uma reversão desta libido para o Eu, que assim se transforma, ele próprio, em objeto de amor. Essa reformulação freudiana, segundo Roudinesco & Plon, constitui numa redistribuição das pulsões sexuais, por um lado alocadas no Eu (a libido narcísica) e, por outro, nos objetos externos (libido objetal) (45).
Freud retoma o tema em 1915, em um artigo específico de seus textos metapsicológicos, intitulado As pulsões e suas vicissitudes (46). Neste texto, Freud pondera que um conceito convencional básico como pulsão (Trieb), ainda que um pouco obscuro, não pode ser dispensado pela psicologia, pelo menos provisoriamente. A seguir, discute o conceito de estímulo e o esquema do arco reflexo da fisiologia. Mas diferencia uma pulsão de um estímulo, por este se originar no mundo exterior, embora considere que existem para a psique outros estímulos além dos pulsionais e que se comportam de modo semelhante aos estímulos fisiológicos. Segundo ele, “quando uma luz bate forte no olho, por exemplo, não se trata de um estímulo pulsional, mas tal é o caso quando se nota um ressecamento na mucosa da faringe ou uma irritação na mucosa do estômago”. Deste modo, “o estímulo pulsional não provém do mundo exterior, mas do interior do próprio organismo” (47).
Um estímulo, segundo Freud, age com um impacto único e é possível esquivar-se dele com uma única ação apropriada. A pulsão, por sua vez, não atua jamais como uma “força momentânea de impacto”, mas sempre como uma força “constante”. Como se origina no interior, “nenhuma fuga pode servir contra ele”. É sentido como “necessidade”. “E o que suprime esta necessidade é ‘satisfação’” (48). A satisfação ou a redução do estímulo pulsional se traduz sob a forma de prazer e o aumento à de desprazer (49). Deste modo, através da consideração da vida psíquica pelo ângulo da biologia a pulsão aparece como um
“conceito limite entre o somático e o psíquico, como um representante psíquico dos estímulos oriundos do interior do corpo e que atingem a alma, como uma medida do trabalho imposto à psique por sua ligação com o corpo” (50).
As quatro características da pulsão são, segundo Freud, ainda neste texto de 1915, o impulso (Drang), que é o “elemento motor”; a “meta” (Ziel), que “é sempre a satisfação”, o objeto, que “é aquele com o qual, ou pelo qual, a pulsão pode alcançar sua meta”; a fonte, que é “o processo somático num órgão ou parte do corpo, cujo estímulo é representado na psique pela pulsão” (51). Ainda neste texto, ele considera que as pulsões sexuais podem ter quatro destinos ou vicissitudes (dependendo da tradução): a inversão (sadismo / masoquismo; voyeurismo / exibicionismo); a reversão (amor e ódio, embora ressalte que o ódio não pode ser reduzido exclusivamente à imagem invertida do amor, donde deduz a existência de uma configuração pulsional mais antiga que o amor, arquétipo do que depois viria a ser a pulsão de morte em sua teoria das pulsões); a reversão para a própria pessoa (o narcisismo); a sublimação, à qual não abordou neste texto e o recalque ou repressão (dependendo da tradução), ao qual dedicou texto específico em sua obra metapsicológica (52).
Por fim, em 1920 Freud publica Além do princípio do prazer. Inaugura com este texto o que, segundo Roudinesco & Plon, se denominou como a “grande reformulação” ou “grande virada” dos anos vinte. Trata-se de uma reorganização teórica fundamental, à qual dois outros livros, Psicologia das massas e análise do eu e O eu e o isso confeririam dimensões definitivas (53). Segundo Jean Laplanche, trata-se do “texto mais fascinante e mais desnorteante da obra freudiana”, visto, segundo Roudinesco & Plon, a “tamanha ousadia e a liberdade nele evidenciadas”. Daí decorreu também a rejeição desta obra por numerosos psicanalistas, que consideraram tal ousadia como falta de rigor e tal liberdade como deriva especulativa (54).
O texto situa-se, pela amplitude de uma descrição que considera os fatores topológicos, dinâmicos e econômicos, no âmbito do que Freud designa como “metapsicologia”. Seu percurso examina, acima de tudo, o princípio de prazer. Já no primeiro parágrafo, Freud enuncia que “na teoria psicanalítica não hesitamos em supor que o curso dos processos psíquicos é regulado automaticamente pelo princípio do prazer”. Tal princípio afirma que a missão primordial do aparelho psíquico é manter o mais baixo possível o nível de excitação presente (55).
“Sobre o significado das sensações de prazer e desprazer que tão imperativamente agem sobre nós [...]. Decidimos relacionar prazer e desprazer com quantidade de excitação – não ligada de nenhuma maneira – existente na vida psíquica, de tal modo que o desprazer corresponde a um aumento e o prazer a uma diminuição dessa quantidade” (56).
Tal conclusão o leva a abraçar o “princípio de constância”, enunciado por Gustav Theodor Fechner, segundo o qual,
“Na medida em que os impulsos conscientes sempre se acham em relação com o prazer ou desprazer, pode-se também pensar o prazer ou desprazer em relação psicofísica com situações de estabilidade e instabilidade, podendo fundamentar-se nisso a hipótese, [...], de que todo movimento psicofísico que supera o limiar da consciência é acompanhado de prazer enquanto, além de um certo limite, aproxima-se da plena estabilidade, e de desprazer enquanto, além de um certo limite, afasta-se dela, havendo entre os dois limites, que podem ser descritos como limiares qualitativos de prazer e desprazer, uma certa margem de indiferença estética” (57).
No entanto, suas observações o levam a questionar esta perspectiva. A discussão deriva então para os limites da dominação do princípio do prazer.
“A rigor não é correto dizer que o princípio do prazer domina o curso dos processos psíquicos. [...] a experiência geral contradiz energicamente esta ilação. O que pode então suceder é que haja na psique uma forte tendência ao princípio do prazer, à qual se opõem determinadas forças ou constelações, de modo que o resultado final nem sempre corresponde à tendência ao prazer” (58).
A primeira limitação ao predomínio do princípio de prazer é o princípio de realidade, enunciado em 1911 no artigo sobre os dois princípios do funcionamento mental já citado.
“O primeiro caso de uma tal inibição do princípio do prazer nos é familiar [...]. Por influência das pulsões de autoconservação do eu [o princípio do prazer] é substituído pelo princípio de realidade, que, sem abandonar a intenção de obter afinal o prazer, exige e consegue o adiamento da satisfação, a renúncia a várias possibilidades desta e a temporária aceitação do desprazer, num longo rodeio para chegar ao prazer” (59).
A segunda limitação é o recalque ou a repressão das pulsões, que contraria a desenvolvimento unitário do eu.
“Uma outra fonte de origem do desprazer, não menos regular, acha-se nos conflitos e cisões dentro do aparelho psíquico, enquanto o Eu perfaz seu desenvolvimento rumo a organizações mais complexas. [...] sempre volta a suceder que determinadas pulsões ou partes de pulsões resultem incompatíveis nas suas metas ou exigências, com os restantes, capazes de unir-se na abrangente unidade do Eu. Então eles são segregados desta unidade por meio do processo da repressão, [...] e tem cortadas, de início, as possibilidades de satisfação” (60).
Até o momento, Freud havia considerado apenas a organização psíquica referente a pulsões e conflitos internos. A observação da reação psíquica aos perigos externos, principalmente nas neuroses resultantes da exposição a guerras e catástrofes, o levam a reconsiderar inteiramente a questão. Curiosamente, considerando que em “A interpretação dos sonhos” de 1900 já havia definido que os sonhos correspondem a realizações dos desejos, os sonhos que acompanham este tipo de neurose remetem os sujeitos às situações traumáticas que não podem ser consideradas prazer. O problema, segundo ele, é que
“a maior parte do desprazer que sentimos é desprazer de percepção, seja percepção da premência dos instintos insatisfeitos ou percepção externa, que é penosa em si ou que provoca expectativas desprazerosas no aparelho psíquico, sendo por ele reconhecidas como perigo” (61).
Das observações sobre o comportamento de seu neto, Freud decorreu uma segunda forma de perigos externos. Na ausência da mãe, o menino costumava divertir-se, atirando para fora da cama os objetos que lhe estivessem à mão. Quando fazia isso, expressava satisfação através de uma forma vocal na qual se podia entender o significado da palavra alemã fort. Fora, em português. Certa vez, o menino usou um carretel de madeira atado a um barbante. Atirava o carretel com o som de forth, puxando-o depois pelo barbante e saudando-o alegremente com o som da, aqui, em português. Parecia transformar uma situação em que era passivo e sentia perigo ou o desprazer causado pela partida da mãe em numa situação na qual exercia domínio e da qual era senhor, fosse qual fosse o caráter doloroso do que se repetia nela.
“Vê-se que as crianças repetem, brincando, o que lhes produziria uma forte impressão na vida, que nisso reagem e diminuem (ab-reagem) a intensidade da impressão e tornam-se, por assim dizer, donos da situação [...]. Observa-se também que o caráter desprazeroso da vivência não a torna sempre inadequada para o brinquedo” (62).
A esta primeira interpretação, Freud acrescentou uma complementar: O menino, através daquela brincadeira, encontrava um modo de exprimir sentimentos hostis, inconfessáveis na presença da mãe, mas capazes de satisfazer seu desejo de vingança decorrente da partida dela. Ocorre uma compensação econômica: o menino não conseguiria suportar o desprazer acarretado no jogo pela repetição de uma separação, senão sendo compensado por um ganho de prazer de outra natureza, porém direto, ligado a esta separação.
“o jogo e a imitação artística dos adultos [...] não poupam a este (o espectador) as mais dolorosas impressões – na tragédia, por exemplo –, e, no entanto, são por ele percebidos como elevada fruição. Assim nos convencemos de que também sob o domínio do prazer há meios e caminhos para tornar objeto de recordação e elaboração psíquica o que é em si desprazeroso. Uma estética que considere a economia [psíquica] pode lidar com esses casos e situações que terminam na obtenção final de prazer” (63).
Freud alerta, porém, que esses casos “não atestam a operação de tendência além do princípio de prazer, isto é, que seriam mais primitivas do que ele e independentes dele” (64). Ele considera esta brincadeira de repetição das crianças uma forma de compulsão à repetição, tal qual a que observa na resistência do analisando e na transferência que este realiza com o analista.
“A resistência do analisando vem do seu Eu, e logo percebemos que a compulsão à repetição deve ser atribuída ao reprimido inconsciente. [...] Sem dúvida, a resistência do Eu consciente e pré-consciente está a serviço do princípio de prazer, pois ele quer evitar o desprazer que seria gerado pela liberação do reprimido [...]. É claro que a maior parte do que a compulsão à repetição faz reviver causa necessariamente desprazer ao Eu, pois traz à luz atividades de pulsões reprimidas, mas é um desprazer que já consideramos, que não contraria o princípio de prazer, é desprazer para um sistema e, ao mesmo tempo, satisfação para outro. Mas o fato novo e digno de nota, [...], é que a compulsão à repetição também traz de volta experiências do passado que não possibilitam prazer, que também naquele tempo não podem ter sido satisfações” (65).
Deste modo há na vida psíquica uma compulsão à repetição, que é capaz de fazer o sujeito perceber desprazer como prazer, e este é o impulso que leva as crianças a brincar do modo descrito como “lei da repetição” por Benjamin.
“Quanto às brincadeiras infantis, [...]. Compulsão à repetição e direta satisfação prazerosa do instinto parecem aí entrelaçados em íntima comunhão” (66).
Na verdade, não sentimos nunca prazer ou desprazer. O que ocorre é que as percepções que chegam à nossa consciência, tanto do mundo externo quanto do interno, são mediadas pelo aparelho psíquico primário (67), que lhes atribui a qualidade de serem prazerosas ou desprazerosas. Isso ocorre porque,
“Em termos metapsicológicos, [...] a consciência fornece, essencialmente, percepções de excitações vindas do mundo externo e sensações de prazer e desprazer que podem se originar apenas do interior do aparelho psíquico, pode-se atribuir ao sistema P-Cs [percepção – consciência] uma localização espacial. Ele deve estar localizado na fronteira entre interior e exterior” (68).
As manifestações de uma compulsão à repetição, como as descritas por Freud nas primeiras atividades da vida psíquica infantil e nas vivências da terapia analítica, exigem, segundo ele, em alto grau um caráter impulsivo ou pulsional (Triebhaft) e “quando se acham em oposição ao princípio do prazer, um caráter demoníaco” (no sentido do daimon grego e não do católico) (69). No caso do jogo infantil a criança também repete a vivência desprazerosa porque sua atividade lhe permite lidar com a forte impressão de maneira mais completa do que se apenas a sofresse passivamente. Cada nova repetição, segundo Freud, parece melhorar o controle que ela busca ter sobre a impressão. Também nas vivências prazerosas, a criança não é saciada pelas repetições. Insiste implacavelmente para que a impressão seja igual. Esse traço de caráter, segundo Freud, desaparecerá com o tempo (70).
“A novidade sempre será a condição para se fruir algo. Mas a criança não se cansará de exigir do adulto a repetição de uma brincadeira que este lhe mostrou ou realizou com ela, até que ele se recuse a fazê-lo, exausto; e ao lhe contarem uma bela história, quer sempre ouvir de novo aquela mesma, em vez de outra, insiste que a repetição seja idêntica e corrige qualquer alteração [...]. Nisso não é contrariado o princípio de prazer; obviamente a repetição, o reencontro do idêntico, é em si mesma fonte de prazer” (71).
Estabelecido que a repetição em si mesma, o reencontro com o idêntico, per si, são fontes de prazer – e o quanto compositores, poetas, arquitetos sabem disso, quase desde sempre -, Freud passa à questão mais difícil e polêmica de seu texto. Esta, identifica nessa fonte de prazer uma pulsão de morte de natureza conservadora, que age sempre no sentido do restabelecimento de um estado anterior de organização da vida. Anterior mesmo à própria organização da vida.
“Mas de que modo se relacionam o caráter impulsivo (pulsional) e a compulsão à repetição? [...]. Uma pulsão seria um impulso, presente em todo organismo vivo, tendente à restauração de um estado anterior, que esse ser vivo teve de abandonar por influência de perturbadoras forças externas, uma espécie de elasticidade orgânica ou, se quiserem, a expressão da inércia da vida orgânica” (72).
Freud lembra que nos “fenômenos da hereditariedade e nos fatos da embriologia” estão as provas mais formidáveis de uma orgânica compulsão a repetir (73). Freud refere-se à Lei da Recapitulação de Ernst Haeckel, segundo a qual a ontogênese recapitula a filogênese, isto é, o embrião, ao desenvolver-se, reproduz os estádios da evolução da vida das espécies. A tendência à conservação é uma marca da ação pulsional, e se a pulsão de morte é conservadora, também o são as de vida. Assim o são, segundo Freud, no mesmo sentido que as de morte, ao trazerem de volta estados anteriores da substância viva.
“Mas não em medida maior, ao se revelarem peculiarmente resistentes aos influxos externos, e também num outro sentido ainda, pois conservam a vida mesma por períodos mais longos. Elas são propriamente as pulsões de vida; pelo fato de agirem contra a intenção de outras pulsões – que devido a sua função conduzem à morte -, insinua-se numa oposição entre elas e as demais, cuja importância foi reconhecida pela teoria das neuroses” (74).
Deste modo, segundo Freud, todas as pulsões orgânicas são conservadores, historicamente adquiridas e orientadas para a regressão, o restabelecimento de algo anterior. Deste modo, e na linha da evolução das espécies de Darwin, o desenvolvimento orgânico deve ser debitado na conta de “influências externas, perturbadoras e desviantes”. O ser vivo elementar, segundo ele, “não pretendia mudar desde o início; permanecendo iguais as condições, ele repetiria sempre o mesmo curso de vida” (75).
“Os pulsões orgânicas conservadoras acolheram cada uma dessas mudanças impostas [pelo processo evolutivo] e as preservaram para repetição, e assim produzem a enganadora impressão de forças que aspiram a transformação e ao progresso, quando apenas tratam de alcançar uma antiga meta por vias antigas e novas. Também essa meta final de todo esforço orgânico pode ser indicada. Seria contrário à natureza conservadora das pulsões que o objetivo da vida fosse um estado nunca antes alcançado. Terá de ser, isso sim, um velho estado inicial, que o vivente abandonou certa vez e ao qual ele se esforça por voltar, através de todos os rodeios de seu desenvolvimento. Se é lícito aceitarmos, como experiência que não tem exceção, que todo ser vivo morre por razões internas, retorna ao estado inorgânico, então podemos dizer que o objetivo de toda a vida é a morte, e, retrospectivamente, que o inanimado existia antes que o vivente” (76).
Assim, a compulsão à repetição atende a esta meta conservadora das pulsões, de vida ou sexuais e de morte, e só perturbações exteriores nos podem levar a mudanças e transformações.
Uma discussão mais completa e exaustiva do tema nos levaria a outras obras de Freud, e a um percurso bastante mais extenso do que aquele que é possível abranger no espaço de um pequeno ensaio. Dentre outros importantes textos, que aqui não foram abordados, situam-se Recordar, repetir e elaborar de 1914 (77) (abordado no ensaio anterior já mencionado), Luto e melancolia de 1917 (78), O inquietante de 1919 (79) (Das Unheimliche, também traduzido como O estranho), O problema econômico do masoquismo de 1924 (80), o notável Mal-Estar na civilização de 1929, já mencionado e a partir do qual abordamos algumas questões introdutórias, além da 32ª das Novas conferencias introdutórias à psicanálise, também intitulada Angústia e pulsões de 1933 (81).
Neste momento, desta investigação sobre as relações profundas e discretas entre processos psíquicos fundamentais e o prazer estético que é extraído de composições baseadas na repetição, às quais já discutimos amplamente no ensaio anterior (já mencionado e citado), cabe relacionar a marca mais significativa e conservadora da cultura humana com este caráter conservador das pulsões anunciado por Freud. Nos referimos ao significante supremo da estabilidade estética e da harmonia que é a linha reta.
A linha reta pode ser considerada a marca do humano na paisagem. Ela, exceto nos cristais, não é produzida pela natureza. Em Clássico anti-clássico de 1984 (82), analisando o afresco Alegoria do bom governo de Ambrogio Lorenzetti (1305-1348), afrescado no Palazzo Pubblico de Siena em 1338-39, Giulio Carlo Argan destaca que esta oposição cidade versus. natureza já era evidente desde o século 14. Nesta obra, a cidade era composta por linhas retas com prevalência das verticais e o campo por linhas curvas e onduladas com tendência para a horizontal. A cidade, segundo Argan, “era o que os homens erguiam, com a razão e a técnica, acima do chão” (83) ou “o lugar dos volumes arquitetônicos geométricos nítidos e o campo o lugar da natureza com suas linhas docemente onduladas” (84).
Interpretamos esta presença da linha reta como um sinal da razão humana. O que é racional é, via de regra, reto. Le Corbusier, para quem “A reta é rainha, sinal do espírito” (85), associa a geometria em geral, e a ortogonalidade em particular, à racionalidade. Isso tanto em seu caráter cultural quanto instrumental. Segundo ele,
“O homem caminha em linha reta porque tem um objetivo; sabe aonde vai. Decidiu ir a algum lugar e caminha em linha reta. // A mula ziguezagueia, vagueia um pouco, cabeça oca e distraída. Ziguezagueia para evitar os grandes pedregulhos, para se esquivar dos barrancos, para buscar a sombra; empenha-se o menos possível. // O homem rege seu sentimento pela razão; refreia os sentimentos e os instintos em proveito dos objetivos que tem” (86).
Do que se trata, do ponto de vista da repetição, ou da conservação, a linha reta? Muito claramente, ela é o produto da repetição precisa de uma mesma direção no espaço ao longo do tempo. Ela é regular, estável, previsível, constante e, por isso, conservadora. Nenhum significante plástico poderia atender melhor o princípio de constância enunciado por Theodor Fechner que citamos anteriormente ou o princípio de nirvana, denominação proposta por Barbara Low e retomada por Freud para designar a tendência do aparelho psíquico em reduzir ou eliminar toda a excitação de origem externa ou interna, levando-o a um estado de quietude e felicidade perfeita.
Esta idéia que relaciona a qualidade do que é reto à razão, à ausência de excitação, à quietude, à beleza, ao prazer e à felicidade e até mesmo a valores da natureza moral não é de modo algum nova. Encontra-se amplamente difundida nas narrativas e na filosofia grega. A encontramos na “Ética a Nicômaco” de Aristóteles, por exemplo. Neste texto, a idéia de ortogonalidade, ou retidão, como expressão do que é belo, bom, certo, adequado, conveniente, apropriado etc., percorre todo o texto. Assim, encontra-se orthon logon (1103b30) ou orthos logos (1114b30 e 1119a20) como regra ou norma justa; orthos leguei (1138b20), orthôi logôi (1147b1) como reta razão; orthê paideia (1104b13) como educação correta; krinei orthôs (1113a30) kritikê orthê (1143a20-25) krisis orthê (1143a20) como escolha, discernimento, crítica, ou discriminação retos; orthêi dosei (1120a25) como quantia correta; oute orthôs (1124a28) como fora do reto ou incorreto; orthôs poiei (1126a34) como feito ou produzido corretamente; horôsin orthôs (1143b12) como percepção ou visão reta e, até mesmo orexin orthên (1139a25), literalmente reto desejo (87).
Mas é nos hedonistas e eudemonistas com o seu princípio da euthymía que encontramos uma terapêutica da razão, mais precisamente em Demócrito. Michel Onfray lembra, no volume 1, dedicado às sabedorias antigas, de seu Contra história da filosofia (88), que o hedonismo comporta uma parte freqüentemente esquecida. O aspecto positivo de busca do prazer eclipsa quase sempre seu correlato: a evitação do desprazer. Esse prazer negativo, segundo Onfray, supõe a possibilidade de “sentir uma real satisfação em não sofrer” (89). A ausência de perturbação como geração de alegria é muito apreciada nas éticas eudemonistas e hedonistas gregas. Demócrito, segundo ele, confere ao aumento do saber uma função terapêutica. Seu trabalho enciclopédico visava o acumulo dos conhecimentos não por si mesmos, mas com o objetivo de conseguir produzir “causalidades racionalistas e imanentes a fim de que as inquietações e os temores desaparecessem” (90). Não espanta, que seja na arquitetura clássica e em seu cânon e suas ordens que esta arte tenha mais se aproximado da idéia da razão através da quietude e regularidade compositiva. Ali imperou a geometria mais simples e sofisticada, a mais tranqüila razão. Pode-se pensar que havia uma euthymía em seus ritmos e em suas regularidades.
Tudo parece conspirar para que a simples repetição seja causa de prazer e para que o seu simples reconhecimento seja objeto de fruição. Freud bem intuiu ao notar que foi através da observação das grandes regularidades astronômicas e das recorrências cósmicas da natureza que o homem encontrou “não apenas o modelo mas o ponto de partida para a introdução da ordem na sua vida”. Toda a arte é uma arte de por algo em ordem. Uma composição é uma disposição de partes ou elementos em uma dada ordem e pouco importa se estas partes são sons e silêncios, palavras, cores, movimentos, colunas. Dispô-los ao longo do espaço e do tempo como dias, meses, anos, estações, lunações, nascimentos e mortes e como tudo o mais que se repete, que se reflete, que se reconhece: isso é compor.
A ordem, segundo Freud, é isso: “uma espécie de compulsão à repetição que, uma vez estabelecida, resolve onde, como e quando algo deve ser feito, de modo a evitar oscilações e hesitações em cada caso idêntico”. A arte, ousaria dizer, de certo modo também é isso. É isso, pelo menos, que ela oferece à fruição, com suas colunatas, suas estrofes, suas rimas e ritmos, suas harmonias, seus cânones, seus estilos, suas fases clássicas e anticlássicas, como diria Argan, suas regras e modelos, como diria Françoise Choay (91).
No entanto, é fato notável que o novo ocorre e que a cultura humana passou e continua a passar por radicais transformações. Como pode ocorrer tal coisa diante do caráter tão radicalmente conservador das pulsões humanas? Este é um tema complexo e que mereceria investigações mais detalhadas no âmbito da metapsicologia. Além da adaptação aos fatores externos, já mencionada por Freud, certamente as pulsões agressivas. A agressividade que caracteriza o homem é parte fundamental desse processo de transformações. As diversas fases ou momentos históricos pelos quais passaram todas as artes trouxeram sempre uma carga de negação e mesmo repulsa ao que lhes antecedeu. Sem dúvidas as descobertas no campo da técnica estiveram no fundo instrumental desses processos de transformação. Não discutimos aqui que a técnica é mais do que instrumento e nem há espaço para a discussão heideggeriana sobre a gestell, ou o modo de ser da técnica moderna. Tampouco discutimos a visão marxista, no que diz respeito ao papel do trabalho na formação dos costumes e da cultura. Mas, se há uma causa eficiente, do ponto de vista do que move o homem na aplicação da técnica, essa se situa no campo de sua vida pulsional.
Certamente a influência de perturbadoras forças externas, como Freud justifica o processo evolutivo ao nível embriológico, as transformações no e do meio, as mudanças na forma de organização social, a necessidade, enfim. As diferentes formas que ela assume por fatores internos e externos ao sujeito e às sociedades. E nesse âmbito, certamente o erro. A errância, a perdição espaço temporal, técnica, moral e estética possibilitaram o novo. A deriva criativa, a especulação, a curiosidade, a inquietação, a insatisfação pulsional, enfim.
notas
1
SILVA, Luiz Felipe da Cunha e. Repetição, ritmo, transferência e revelação. Articulações entre estética e psicanálise. Arquitextos, São Paulo, ano 12, n. 136.06, Vitruvius, out. 2011 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/12.136/4063>.
2
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (1882-1887). Gaia ciência, II: 84. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 2001, p. 112.
3
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm (1887). Genealogia da moral, II: 16. Tradução Paulo Cesar de Souza. São Paulo, Companhia das Letras, 1998, p. 73. Grifos do autor.
4
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Tradução Vera Ribeiro e Lucy Magalhães. Supervisão da edição brasileira Marco Antônio Coutinho Jorge. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998, p. 628.
5
Na tradução do prof. Paulo Cesar de Souza das Obras Completas que estamos adotando consta “consciência”. Esta é uma das polêmicas da tradução das obras de Freud para o português. Em nota do tradutor o professor esclarece o duplo sentido do termo: a percepção que o indivíduo tem de seus atos e sentimentos e a capacidade de fazer distinções morais. Também propõe a paráfrase “consciência moral” para traduzir Gewissen.
6
FREUD, Siegmund (1930). O mal-estar na civilização. In: Obras Completas, vol. 18. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 92.
7
Idem, ibidem, p. 35 e 60.
8
Instintos, na tradução de Paulo Cesar de Souza. O tema da tradução de Trieb será discutido mais adiante.
9
Idem, ibidem, p. 35.
10
Idem, ibidem, p. 37.
11
Kultur no original. A versão de Kultur para civilização é uma das polêmicas na tradução da obra freudiana para o português. Ver nota 13.
12
Idem, ibidem, p. 40.
13
O tradutor faz uma extensa e interessante discussão sobre a versão de Kultur como civilização para o português, em nota de tradução na página 48 da referida edição, visto o idioma alemão dispor, também, do termo Zivilisation. Na tradução para o espanhol da Editora Amorruto de Buenos Aires consta Cultura. Concordamos com a opção do tradutor com base em seus argumentos.
14
Idem, ibidem, p. 52.
15
Deus protético na tradução citada. Optamos pela tradução do professor José Otavio de Aguiar Abreu, da editora Imago neste caso específico.
16
Idem, ibidem, p. 53.
17
Idem, ibidem, p. 54.
18
No De re aedificatoria, de 1452, consta que a beleza é um ajuste de todas as partes proporcionalmente de tal forma que não se pode adicionar ou subtrair ou modificar sem prejudicar a harmonia do todo
19
Idem, ibidem.
20
Idem, ibidem
21
Idem, ibidem
22
BATAILLE, Georges. O erotismo. Porto Alegre, L&PM, 1987.
23
FREUD, Siegmund (1930). O Mal-Estar na Civilização (op. cit.), p. 60.
24
Idem, ibidem, p. 55.
25
BENJAMIN, Walter (1928). O brinquedo e o jogo. Tradução Maria Amélia Cruz. In: BENJAMIN, Walter. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa, Relógio D’Água, 1992.
26
Idem, ibidem, p. 175.
27
Título de um livro de Sigmund Freud que será discutido mais adiante.
28
Idem, ibidem.
29
Idem, ibidem.
30
Idem, ibidem, p. 176. Benjamin retoma este tema sob outra perspectiva em outro texto da mesma coletânea intitulado Teoria das semelhanças. (p. 59-92).
31
Idem, ibidem.
32
Música de Willie Nelson.
33
Fala do personagem de Humphrey Bogart para o pianista do Rick's Café no filme “Casablanca”.
34
Obras Completas, volume 14, p. 12.
35
SOUZA, Paulo Cesar de. As palavras de Freud: o vocabulário freudiano e suas versões. São Paulo, Cia das Letras, 2010.
36
Apud: ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Op. cit., p. 629.
37
“Angústia e instintos”, na tradução de Paulo César de Souza.
38
FREUD, Siegmund. Angústia e instintos, novas conferencias introdutórias à psicanálise. In: Obras Completas, volume 18. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 243.
39
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Op. cit., p. 628.
40
Idem, ibidem, p. 628.
41
Idem, ibidem, p. 629.
42
Idem, ibidem, p. 629.
43
Idem, ibidem, p. 629.
44
Idem, ibidem, p. 629.
45
Idem, ibidem, p. 629.
46
Vertido como “Os instintos e seus destinos” por Paulo Cesar de Souza nas Obras completas da Companhia das Letras e como “Os instintos e suas vicissitudes” na tradução da Imago, feita a partir da tradução para o inglês de James Strachey por Themira Brito, Bruno Brito e Christiano Oiticica.
47
FREUD, Siegmund. Os instintos e seus destinos. In: Obras completas, volume 12. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 53-54.
48
Idem, ibidem, p. 54.
49
Idem, ibidem, p. 56-57.
50
Idem, ibidem.
51
Idem, ibidem.
52
Idem, ibidem, p. 64-78.
53
ROUDINESCO, Elisabeth; PLON, Michel. Op. cit., p. 484.
54
Idem, ibidem, p. 485.
55
FREUD, Siegmund. Além do princípio do prazer. In: Obras completas, volume 14. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 162.
56
Idem, ibidem.
57
Idem, ibidem, p. 163 e 164.
58
Idem, ibidem, p. 164 e 165.
59
Idem, ibidem.
60
Idem, ibidem, p. 166 e 167.
61
Idem, ibidem, p. 167.
62
Idem, ibidem, p. 175.
63
Idem, ibidem, p. 175 e 176. Grifos meus.
64
Idem, ibidem, p. 175 e 176.
65
Idem, ibidem, p. 179.
66
Idem, ibidem, p. 183.
67
Idem, ibidem, p. 199.
68
Idem, ibidem, p. 184.
69
Idem, ibidem, p. 200.
70
Idem, ibidem.
71
Idem, ibidem, p. 200-201. Grifos meus.
72
Idem, ibidem, p. 201-202.
73
Idem, ibidem, p. 202-203.
74
Idem, ibidem, p. 207-208.
75
Idem, ibidem, p. 203-204.
76
Idem, ibidem, p. 203-204.
77
FREUD, Siegmund (1914). Recordar, repetir e elaborar. In: Obras completas, volume 10. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 193-209.
78
FREUD, Siegmund (1914). Luto e melancolia. In: Obras completas, volume 12. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 1170 a 194.
79
FREUD, Siegmund (1914). O inquietante. In: Obras completas, volume 14. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 328 a 378.
80
FREUD, Siegmund (1924). O problema econômico do masoquismo. In: Obras completas, volume 19. Rio de Janeiro, Imago (edição padrão).
81
FREUD, Siegmund (1914). 32ª das Novas conferencias introdutórias à psicanálise. In: Obras completas, volume 18. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 224-262.
82
ARGAN, Giulio Carlo. (1984). Clássico e anticlássico. O Renascimento de Brunelleschi a Brueguel. São Paulo, Cia. Das Letras, 1999.
83
Idem, p. 152.
84
Idem, p. 62.
85
LE CORBUSIER. Os três estabelecimentos humanos. São Paulo, Perspectiva/USP, p. 198.
86
LE CORBUSIER. Urbanismo. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 6.
87
A pesquisa etimológica e semântica foi realizada no Henry George Liddell, Robert Scott, A Greek-English Lexicon no Perseus Digital Library da Tufts University em http://www.perseus.tufts.edu/ e os textos consultados no original na “Classics colection” da mesma instituição.
88
ONFRAY, Michel. Contra história da filosofia. 1. As sabedorias antigas. Tradução Monica Stahel. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2008.
89
Idem, ibidem, p. 68.
90
Idem, ibidem, p. 68.
91
CHOAY, Françoise. A regra e o modelo. São Paulo, Perspectiva, 1985.
sobre o autor
Luiz Felipe da Cunha e Silva é arquiteto (Universidade Sta. Úrsula), mestre em Saúde Pública (ENSP-Fiocruz), doutor em psicologia (PUC-Rio) e doutor em urbanismo (ProUrb – FAU UFRJ) e professor adjunto (DPA FAU UFRJ).