Preâmbulo
O espaço cênico (1) organiza-se de diversas maneiras. Sua constituição dá-se em relação a um tempo específico do evento. Historicamente, como aponta Schechner (2), uma das possibilidades de organização é como uma sequência temporal, em que a progressão espacial equivale ao transcorrer do tempo, como o autor afirma acontecer no teatro do antigo Egito, por exemplo. Outra possibilidade dá-se quando o teatro incorpora-se à vida cotidiana, de modo que suspende o espaço e o tempo extraordinários típicos do evento cênico, como no teatro balinês. Os gregos, ao contrário, concebiam o teatro para um tempo e espaço especiais. Por fim, outra possibilidade é como nos blocos de rua que compõem o carnaval brasileiro. Neles, as pessoas ocupam as ruas para brincar e desfilar. Nesse caso, não se pensa em um espaço extraordinário, mas o evento acontece em um tempo diferenciado, transpondo o espaço ordinário para essa temporalidade distinta.
Esses vários exemplos de culturas distintas e localizadas em diversos pontos na história ilustram como o espaço-tempo próprio do evento teatral é variável. Este pode assumir características de uma formalização absoluta, que estabelece uma clara separação entre a arte e a vida cotidiana. Por outro lado, pode incorporar a vida e romper com os limites que a distinguem da arte. Nesse caso, tem-se uma possibilidade de vida totalmente teatralizada, enquanto no outro observa-se uma teatralização circunstancial.
A teatralização do espaço passa por inúmeras formas, assumindo diversas características. Lídia Kosovski (3) coloca que, historicamente, no Ocidente, até os primórdios do século 20, era possível, com razoável facilidade, identificar os lugares onde os eventos cênicos, as apresentações de espetáculos teatrais ocorriam. Segundo a autora, é possível afirmar que existia uma norma que organizava espaço e arquitetura em relação ao espetáculo. Esse lugar específico era muitas vezes definido por um edifício, o teatro, que abrigava diferentes arranjos de palco e plateia, dependendo do que se propunha. Com o passar dos tempos, o edifício teatro tornou-se, para muitos, um emblema da arte teatral,confundindo-se com a própria noção de teatro. Segundo Kosovski (4) isso se dava pois do edifício “derivaram variações espaciais e arquitetônicas engendradas pelo desenvolvimento do espetáculo teatral, como condicionaram as relações de contato entre cena e público”.
Por outro lado, o teatro tem uma profunda relação com os espaços públicos. Desde sua origem, está ligado à sociedade e aos espaços em que esta se constitui em plenitude. Seja a rua, a praça, seja a cidade, o teatro participa e ratifica o caráter público desses espaços, independentemente da escala. O teatro grego da antiguidade, os autos da Idade Média e a Comédia dell’Arte são alguns exemplos clássicos que sempre são lembrados quando se estuda essa relação entre o teatro e o espaço público. O edifício teatro é um dos capítulos da história das artes cênicas,um capítulo recente mas que repercutiu muito na história do teatro. Independente ou paralelamente ao edifício, o teatro continuou ocupando os espaços públicos, sobretudo a rua, durante toda a história,e mesmo essa trajetória encontra diversos caminhos que mostram o quão diversificadas são as alternativas.
Repensando o edifício teatral e a cidade
À medida que se questionou a arquitetura teatral tida como tradicional, buscaram-se outras possibilidades espaciais. O edifício teatro impunha limites por meio de uma topologia e uma geografia disciplinadoras, que foram repensadas. Rompendo com a estrutura da tipologia tradicional do edifício e suas possíveis limitações para a constituição das teatralidades contemporâneas, o espaço teatral (5) expandiu-se em alternativas diversas, abrangendo muito mais que uma edificação tipo. Em alguns casos, ampliou-se e abrigou a própria cidade, sobretudo em sua condição de urbanidade. Nesse sentido, Kosovski afirma:
“Criaram-se assim poéticas de auto-exílio. Um exílio, e não um degredo, sediado na realidade, na cidade e seus arredores, nas ruas ou sob tetos escolhidos e transformados a cada momento, que se armam e se desarmam como uma tenda – uma invenção de espaços, de arquiteturas móveis, voláteis e efêmeras, sem fixidez – a eliminar a política do edifício privado, seus significados simbólicos e condicionamentos prévios; a poética de teatros sem teto, ou de tetos provisórios, a transformação de qualquer lugar em palco. A proposta da aventura nômade, sem asilo, em busca de uma especificidade teatral – por uma magia sem mistérios” (6).
O teatro liberta-se, em parte, da arquitetura disciplinadora e investe no risco de apropriar-se de paisagens mais inóspitas, mais complexas e desafiadoras. Segundo Roubine (7), a arquitetura teatral convencional, que a partir de um determinado momento passou a ser abordada como um objeto estático pensado para abrigar um evento cênico, referia-se a uma noção de teatralidade que se tentou superar. As novas abordagens acerca da teatralidade produziram eventos que, de certa maneira, ultrapassaram a arquitetura.
Essas novas abordagens acerca das artes cênicas e performáticas abriram lugar para a reflexão sobre o espaço teatral e, consequentemente, sobre o espaço cênico. Assim, quando o edifício teatro é explodido, seus diversos fragmentos são lançados pela cidade. Estes se misturam ao tecido urbano e configuram-se como alternativas de constituição de espaços teatrais. O edifício teatro deixa de ser predominante, e os espaços diversos que existem na cidade, bem como a rua, tornam-se possibilidades diferentes dentro dessa noção contemporânea de teatralidade. Ou seja, o teatro sai do edifício institucionalizado e segue para os mais diversos espaços da cidade, e não somente para a rua propriamente dita.
Pelo menos duas abordagens sobre a cidade são possíveis ao se sair do edifício teatro. Uma delas é produzir o teatro em espaços ao ar livre, seguindo uma lógica próxima àquela definida no uso recorrente dos edifícios institucionalizados. Muitas vezes, o cognominado teatro de rua obedece a essa lógica. Por outro lado, existe a possibilidade de se abrir para a negociação e o diálogo com os elementos que conformam o espaço da cidade que se está apropriando para o evento. Dentro das possibilidades apontadas nessa segunda vertente, é possível encontrar várias experiências no intuito de conceber o espaço cênico segundo uma noção contemporânea de teatralidade. Trabalhos como os dos grupos Teatro da Vertigem, Cia XIX de Teatro e Zikzira, no Brasil, e Punchdrunk e Shunt, no Reino Unido, são exemplos evidentes de experimentações nessa vertente.
Vale ressaltar, que este retorno à rua, ao contato com a cidade, não representou o abandono do teatro do edifício especificamente desenhado para ele. Este contato possibilitou a contaminação das diversas práticas, promovendo uma renovação geral, o que abriu diversas possibilidades de atuação, sem necessidade de eliminar as demais existentes. O espectro de opções tanto de ocupação quanto de proposição de espaços cênicos amplia-se, criando uma grande variedade de práticas espaciais distintas.
Teatro na rua/ teatro de rua
Aronson (8) pondera que uma das características marcantes da produção das artes cênicas e performáticas contemporâneas é o uso de espaços não institucionalizados para a constituição do espaço cênico. Além do teatro propriamente dito, vê-se o uso recorrente da rua, de espaços públicos e de espaços alternativos para a realização de eventos. A cidade deixou de ser eminentemente um pano de fundo para a ação cênica e se tornou um elemento de participação ativa no evento. O chamado teatro de rua, que podia ser considerado a apresentação de uma peça ao ar livre, foi retomado e renovado. Do mesmo modo, o teatro sai do edifício rumo à cidade. Esse encontro de diferentes propostas teatrais gera outras possibilidades e alternativas. Duas das mais significativas seriam o teatro de rua renovado (9) e o teatro urbano (10). Apesar das sutis diferenças, os dois possuem pontos em comum. Os aspectos espaciais que os conformam são os fatores que os distinguem em suas análises.
No teatro de rua renovado, a cidade não é considerada apenas como pano de fundo, mas sua contaminação muda o modo como a ação é recebida pelo público, ela contamina o espaço e abre os pontos de vista da recepção. Trabalhos como os dos grupos Génerik Vapeur, La Fura del Baus e Royal De Luxe definem o espaço teatral através da apropriação do espaço urbano em uma escala de bairros e regiões. O público é considerado em termos de grandes aglomerações, em alguns casos multidões. Outro exemplo emblemático, mas que opera em outra escala, é a montagem de Romeu e Julieta, do Grupo Galpão, que trabalha no limite entre o espetáculo de palco e o de rua, trazendo para o ambiente da cidade uma experiência diferente do que é um espetáculo ao ar livre. No caso do trabalho do Galpão, a escala é a do indivíduo, e a cidade é tomada como um pequeno fragmento que é transformado pela ocupação da cenografia, que consiste em um carro antigo todo ornamentado.
No teatro urbano, o espaço da cidade é apropriado de modo a criar um vínculo semântico com o espaço cênico que é criado.Este seria algo além do teatro de rua, pois se apropria de espaços da cidade e estabelece algum tipo de vínculo com o lugar onde realiza seu evento. Os elementos constituintes do sítio de inserção contaminam a cena e introduzem nela novos sentidos. Desse modo, o espaço ocupado também participa, trazendo mais camadas de sentido ao lugar e à ocasião do evento. Na construção do espaço cênico, em geral,o público tem liberdade para se deslocar e experimentar as diversas possibilidades de pontos de vista da cena. O espaço cênico confunde-se com o espaço teatral, e a escala é muito mais a do edifício ou da rua,onde os indivíduos ainda possam ser reconhecidos como tais, sem se perder na massa. Na referida dissertação, analisaram-se alguns casos, sobretudo alguns trabalhos do grupo Teatro da Vertigem, que se notabilizou por desenvolver trabalhos em espaços alternativos, como igreja, presídio, hospitais e diversos espaços diferentes na cidade.
Uma das diversas abordagens do teatro considerava a rua apenas como um lugar em que encontro com o público era mais fácil, como coloca Carreira. Essa abordagem levava em consideração os aspectos temáticos do teatro, deixando de lado um trabalho mais sistematizado sobre os sentidos dos espaços da cidade. Aos poucos, como afirma o autor, essa abordagem foi sendo substituída por propostas que incorporaram a cidade e seus diversos sentidos no contexto das encenações. “Assim, a rua não seria um lugar para o contato com o público apenas no sentido da difusão de ideias políticas, mas sim da constituição de práticas de ressignificação dos referentes culturais, da ruptura das distâncias impostas pelas instituições” (11).
Apropriando-se da cidade
O entendimento do teatro que se faz na rua aproxima-se do entendimento da própria cidade. Este seria o resultado da relação que se estabelece entre a experiência de habitar a cidade e sua construção imaginária, feita por seus habitantes. O teatro de rua atuaria diretamente nesses dois fatores constituintes da cidade,primeiro porque sugere modos alternativos de experimentação do urbano,segundo porque opera na representação imaginária que é feita da cidade. O argumento do autor defende que o teatro de rua consegue essa atuação na cidade porque conforma comunidades temporárias que estabelecem vínculos durante o acontecimento de uma determinada peça, o que determina sua experiência. Assim, a cidade não é compreendida como um objeto único e monolítico. Ela emerge das múltiplas experiências que produzem diversos imaginários que a fabricam. “Neste sentido, um teatro de ocupação se formula necessariamente como uma proposta que repensa esse imaginário que constitui a cidade como espaço desejado, sonhado, isto é, como um espaço a ser deformado pela ação da ficção” (12).
Nessa possibilidade de cidade fragmentada, que nunca é tomada como todo, pode-se observar que o teatro ocupa-a em termos de regiões. Cada região é habitada permanentemente por alguns indivíduos. Estes, com seu habitar habitual, caracterizam a região. Serão grandes responsáveis pela construção de algo posterior à apropriação eventual do teatro, bem como poderão incrementar a experiência no momento do evento. Mas o mais certo é que constituem elemento fundamental de tensão entre o seu habitar habitual e o habitar eventual da peça teatral. “O teatro que ocupa a rua e busca criar novos vetores no uso da rua pode ser uma força que agrega à rua novas imagens e ao mesmo tempo coloca o transeunte frente à oportunidade de ser partícipe dessa construção de imagens” (13). A condição de anonimato oferecida pela rua favorece a tensão entre o habitual e o eventual, pois ela se abre a possibilidades para que o indivíduo participe do jogo teatral. A liberdade é estimulante e permite que os indivíduos ocupem papéis diferentes dos habituais. Desse modo:
“A rua, como espaço multifuncional – que contém desde a atividade cotidiana e repetitiva até os movimentos mais violentos e transformadores da sociedade – potencializa as manifestações culturais de tipo político e lúdico. E, enquanto espaço de convivência, permite que o cidadão desfrute de um anonimato que o libera do peso do compromisso pessoal. No espaço aberto e em comunidade, o homem urbano se sente mais capaz de atuar. Este é um comportamento que facilita que na rua exista uma predisposição para a participação e o jogo” (14).
A cidade passa a ser, então, uma construção baseada nas imagens que os indivíduos dela extraem. O olhar daqueles que habitam a cidade é um elemento fundamental na sua construção. Isso implica que as dinâmicas da cidade estão relacionadas a aspectos simbólicos, fruto da relação dela com os que a habitam. O teatro seria outra possibilidade de olhar a se superpor nas diversas camadas de vida que compõem a cidade. Seu jogo propõe outros modos de apropriá-la e experimentá-la e, geralmente, traz consigo a abordagem eventual. Segundo o autor,
“O teatro de rua se inscreve nesse terreno e representa uma fala artística que nomeia inúmeras formas teatrais que tomam a silhueta da cidade e implicam na instalação de diversos modos de relacionamento com a cidade. Um teatro que ocupa a silhueta da cidade propõe a construção de novos lugares políticos para aqueles cidadãos usuários das ruas, praças e outros espaços públicos, por isso é importante refletir sobre essa modalidade teatral considerando a construção de espaços de convivência” (15).
O teatro que ocupa a rua explora diversas possibilidades que ela oferece, mas que são pouco exploradas. Cotidianamente, vivem-se as possibilidades que são colocadas de modo mais simples, ou seja, segundo as normas de conduta e circulação propostas pelas leis. Por conta da normatização, a rua não é um lugar hospitaleiro, e o teatro é visto como um ato subversivo, transgressor, pois foge ao estabelecido.
Comunidades transitórias
Por outro lado, o teatro que ocupa as ruas, na maioria das vezes, está explorando as diversas possibilidades de ocupação e atuando dentro do que é posto pela norma. Há, sim, de se concordar com o Carreira quando afirma que um dos desafios colocados ao teatro que se propõe a ocupar a rua é o diálogo com indivíduos que normalmente não seriam o público natural do teatro. A diversidade de sujeitos impõe pensar maneiras alternativas de interlocução com a recepção, sobretudo aquela que habita habitualmente o espaço apropriado.
Quando o teatro ocupa a rua, ele propõe a constituição de comunidades provisórias. Elas surgem quando o indivíduo que habita o cotidiano migra para a realidade eventual, mudando seu comportamento. Essa mudança é essencialmente transgressiva, pois contrasta com as normas que estabelecem o comportamento da cidade. Nesse sentido, as comunidades provisórias constituem-se politicamente, pois o teatro de ocupação provoca um atrito entre a ordem estabelecida e uma outra dinâmica mais lúdica e rica em possibilidades fruto desse teatro. Contudo, a transgressão é momentânea, e suas fraturas podem permanecer abertas e catalisar outros modos de se viver nas cidades, ou então se fechar e tudo continuar como antes. O teatro politiza a rua ao revelar “comportamentos inusitados no quadro do ordenamento geral da cidade, e ao criar tensões com as regras da rua ainda que mais não seja de modo fugaz” (16).
Para que essa ocupação do teatro consolide uma comunidade transitória, é preciso que o ambiente urbano seja transformado. As interferências teatrais precisam assumir aspectos ambientais. O ambiente fruto da ocupação do teatro imprime uma dinâmica alternativa que se contrapõe às normas que regem o espaço cotidiano. A partir dessa tensão ambiental entre o cotidiano e o eventual, é possível inscrever um outro olhar sobre a cidade, um olhar que seja capaz de oferecer outra perspectiva para além da cotidiana, que amplie os modos de se experimentar a cidade. Enquanto o teatro está acontecendo, uma nova rede de relações instala-se e é compartilhada por aqueles que participam do evento. Nesse caso, demanda-se um engajamento da recepção, pois é preciso que se mobilizem espontaneamente para que adentrem o jogo que propõe o teatro que ocupa a cidade. Quando se vai ao edifício teatro assistir a uma peça, o deslocamento e a preparação constituem rituais que conduzem o indivíduo a engajar-se segundo um processo gradual. No instante em que o espetáculo começa, inicia-se o jogo, e o público desloca-se para outra realidade proposta pelo teatro. Uma vez na rua, esses passos não são necessariamente seguidos, sobretudo porque não se está mais em um espaço dedicado exclusivamente ao teatro. É necessário que o público tome a iniciativa de adentrar a realidade teatral e se engaje no evento. Esse engajamento pode ser espontâneo ou promovido pelos envolvidos com a realização do evento, da ação cênica. Carreira pondera que:
"A comunidade do teatro de ocupação estará conformada, necessariamente, pelos cidadãos e pelos atores no processo de utilização da cidade a partir de uma nova lógica. Neste momento a própria noção de tempo – tempo de circulação – estará ameaçada pela decisão de criar formas alternas de fruição da cidade. A comunidade que se pretende estabelecer será uma comunidade que se definirá pelo prazer do jogo teatral, pelo gozo de se observar ou de se protagonizar atritos entre o real e o ficcional. Desse modo o sujeito na rua estará ocupando o duplo lugar de usuário da cidade e espectador-ator de uma forma teatral que sempre funciona como uma microrruptura lúdica dos ritmos operacionais da urbe, ou de zonas dessa urbe (17).
Dentro das várias possibilidades que a cidade oferece, o teatro inscreve-se como outra camada que se superpõe. O teatro de ocupação proposto associa-se aos habitantes habituais, às normas que regem a conduta do cidadão e ao imaginário que povoa a mente dos indivíduos. Segundo Ferreira,
“Cada novo espaço oferece múltiplas possibilidades e potencializa novas relações. A decifração de signos, sentidos e a criação de mundos dependem desses espaços existentes. [...] Mais do que criar uma instalação autônoma, cada montagem em um novo local se apropria e habita o lugar. O novo local é ocupado e experimentado através de práticas que consideram a presença dos materiais do espaço escolhido e recriam a relação entre os elementos inseridos e encontrados” (18).
A análise de Carreira baseia-se, fundamentalmente, no que tradicionalmente se chama de teatro de rua, ou seja, um teatro que acontece na rua. Seu texto demonstra uma renovação nessa tradição, sobretudo porque a cidade torna-se cada vez maior e mais complexa. Isso inscreve uma nova série de variáveis que são consideradas ao se propor um evento cênico na rua. Sendo assim, “esse espetáculo ainda trabalha com uma noção de audiência funcional como uma ferramenta decisiva na articulação dos espaços cênicos que propõe a encenação a partir do conceito de dramaturgia da cidade” (19). A cidade é o lugar onde acontece o evento, mas não constitui, necessariamente, o seu tema, tampouco é parte constituinte da peça. O teatro de rua renovado, caracterizado pelo autor e por ele cognominado teatro de ocupação, é um teatro que ocupa a cidade, estabelecendo diálogos com ela.
Relações entre teatro e cidade e reflexos na prática espacial cênica
A análise proposta neste texto vai além, pois se desdobra em busca de práticas teatrais que se apropriam da cidade e fazem-na se tornar um dos elementos constituintes do evento. A contaminação é de mão dupla. Esse teatro, cognominado teatro urbano (20), convive com esse teatro de rua renovado e, em alguns casos, a ele mistura-se. Nesse sentido, a análise do teatro de rua é válida, pois aponta para questões comuns ao teatro urbano. Um dos denominadores comuns constitui o caráter eventual do teatro. Assim,
“É essa condição extraordinária – no sentido mais simples do termo – que potencializa seu papel. Ao não pertencer naturalmente à rua, ao se fazer novidade, ao trazer o inesperado e muitas vezes desconhecido, para a rua o teatro de ocupação gera uma nova condição de recepção onde a presença do lúdico permite a fabricação de tramas de jogo mais livres” (21).
Essencialmente, um dos pontos que distingue a constituição do espaço cênico do teatro de rua renovado do que é concebido no teatro urbano é a diversidade de possibilidades de experimentação oferecida à recepção. No teatro urbano, percebe-se uma maior investigação no que tange aos modos de envolvimento do público com a cena. Diferentes escalas, diferentes graus de proximidade e de detalhes tornam a relação entre cena e público mais densa. Essa relação altera substancialmente o modo como o espaço cênico é concebido. No teatro de rua renovado, percebe-se ainda a manutenção de uma percepção próxima àquela presente no auditório, mesmo o público, em vários casos, como nos trabalhos do Génerik Vapeur, por exemplo, possa seguir um cortejo pela cidade. Os modos de constituição do espaço cênico mudam e ampliam as suas possibilidades estratégicas à medida que o teatro migra do edifício com seu palco tradicional para os espaços comuns da cidade. Existem várias possibilidades de construção espacial do espaço cênico. Uma das mais corriqueiras é a que se apropria de espaços fechados, em que as relações entre cena e público já estão previamente estabelecidas espacialmente. Outra possibilidade, menos usual, mas que se apresenta como a mais profícua para aqueles que migram do edifício teatro, são os lugares encontrados cidade afora. No caso específico do teatro urbano, esses lugares encontrados, cujas características remetem à ideia de locações cinematográficas, abrigam eventos site-specific, que em sua maioria refutam qualquer possibilidade de adequação do evento a condições impostas pela arquitetura.
Isso altera o modo de se pensar a arquitetura teatral. Ela deixa de se deter apenas na concepção de novos edifícios que seguem algumas normas estabelecidas para a criação de um bom auditório. A arquitetura que concebe o teatro passa a encarar novas demandas, como a adaptação a realidades já existentes e a adequação de realidades estabelecidas a solicitações eventuais típicas de cada peça teatral, por exemplo. Mas uma das principais mudanças reside na relação entre cena e público, que se altera à medida que o modelo recorrente de auditório deixa de ser usado. A mudança na arquitetura teatral consequentemente traz consigo mudanças na concepção da cenografia.
Normalmente, um cenário é criado para servir de suporte para o acontecimento de uma peça ou cena que, em geral, constitui a representação de alguma realidade. Diversos efeitos especiais são desenvolvidos utilizando-se as mais diferentes técnicas no intuito de acrescentar mais informações a essa ambiência cênica pretendida. Em minha dissertação de mestrado (22) verificou-se que, ao migrar para a cidade, o teatro inscreve-se na paisagem urbana, e uma das possibilidades que esta lhe oferece é estabelecer algum tipo de diálogo com ela. Os elementos urbanos, carregados de seu sentido de uso habitual, contaminam a cena e acabam por apresentar novas possibilidades de sentido para o acontecimento cênico e para o espaço que se configura. Ao estabelecer um diálogo com a cidade, o evento cênico introduz novas variáveis que aumentam as possibilidades de conformação da teatralidade. Uma dinâmica diferente é estabelecida na concepção da cenografia. O cenário deixa de ser, então, um elemento acessório e passa a ser entendido como uma espécie de sítio de inserção do evento, que abrigará ação e recepção conjuntamente. Como seus elementos são apropriados pelo evento no intuito de atribuir-lhe sentido, eles já não são dispensáveis, pelo contrário, auxiliam na ativação das relações entre cena e público.
Assim, a cidade não é abordada como um espaço neutro, uma entidade que funcionaria apenas como um mero suporte que receberia um palco para a cena. Pelo contrário, ela passa a ser encarada como um elemento vivo que interfere diretamente na leitura e na experiência viva da cena. Ela desenvolve, amadurece e transforma para aprofundar ainda mais a relação com a cena. Esse teatro emancipado do edifício considera os lugares em que se instala. A cidade não é apenas uma paisagem urbana que invade o teatro, mas também um elemento fundamental na ação cênica, sobretudo no que ela pode significar no jogo que se estabelece na ocasião e no lugar do evento cênico. Esse jogo cria os vínculos relacionais entre cena e público que edificam o espaço teatral. O espaço urbano, com suas características específicas e seu contexto maior, a cidade, também passa a conformar parte do trabalho artístico, transformando-se em um participante ativo na obra como um todo. O sentido que emerge no evento encontra-se na tensão gerada entre a experiência dos que habitam a realidade concreta em uma situação determinada pelo cotidiano do lugar encontrado e a experiência própria do espectador, catalisadas pelo evento cênico e seus elementos constituintes.
notas
NA – O presente texto constitui-se um extrato da tese de doutorado do autor intitulada Cenografia: um outro modo de experimentar e praticar, defendida em 2013. RODRIGUES, Cristiano Cezarino. Cenografia: um outro modo de experimentar e praticar. Tese de doutorado. Belo Horizonte, Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, 2013. Ver a sequência deste artigo em: PANET BARROS, Amélia de Farias; ANDRADE, Patrícia Alonso de. Uso do raciocínio analógico na concepção projetual em ensino introdutório de projeto arquitetônico.Arquitextos, São Paulo, ano 15, n. 180.01, Vitruvius, maio 2015 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.180/5551>.
1
Pavis define o termo espaço cênico como “o espaço concretamente perceptível pelo público na ou nas cenas, ou ainda os fragmentos de cenas de todas as cenografias imagináveis. É quase aquilo que entendemos por ‘a cena’ de teatro. O espaço cênico nos é dado aqui e agora pelo espetáculo, graças aos atores cujas evoluções gestuais circunscrevem este espaço”. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. Tradução de Jacob Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo, Perspectiva, 1999, p. 133.
2
SCHECHNER, Richard. Environmental Theater. 2. edition. Nova York, Applause Books, 1994.
3
KOSOVSKI, Lídia. A casa e a barraca. In: TELLES, Narciso; CARNEIRO, Ana (Org.). Teatro de rua: olhares e perspectivas. Rio de Janeiro, E-Papers, 2005. p. 8-19.
4
Idem, ibidem, p. 11.
5
Pavis define o termo espaço teatral como aquele que substitui atualmente o termo teatro: “Com a transformação das arquiteturas teatrais – em particular o recuo do palco italiano ou frontal – e o surgimento de novos espaços – escolas, fábricas, praças, mercados, etc. –, o teatro se instala onde bem lhe parece, procurando antes de mais nada um contato mais estreito com um grupo social, e tentando escapar aos circuitos tradicionais da atividade teatral. O espaço cerca-se por vezes de um mistério e de uma poesia que impregnam totalmente o espetáculo que aí se dá”. PAVIS, Patrice. Op. cit., p. 138
6
KOSOVSKI, Lídia. Op. cit., p. 11
7
ROUBINE, Jean-Jacques. A linguagem da encenação teatral. 2. edição. Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
8
ARONSON, Arnold. Looking into the Abyss: Essays on Scenography. 5. edition. Ann Arbor, The University of Michigan Press, 2011.
9
Os textos de André Luiz Antunes Netto Carreira abordam as mudanças entre o teatro de rua, que consiste basicamente em apresentações teatrais ao ar livre, e o teatro de ocupação ou, em alguns textos do autor, teatro de invasão. Neste estudo, utiliza-se o conceito de teatro de rua renovado, que se estabelece sobre os mesmos fundamentos dos teatros de ocupação e invasão desenvolvidos por Carreira. Ver: CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como apropriação da silhueta urbana: hibridismo e jogo no espaço inóspito. Trans/Form/Ação, São Paulo, n. 24, 2001, p. 143-152; CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como ocupação da cidade: criando comunidades transitórias. Urdimento: Revista de Estudos em Artes Cênicas, Florianópolis, v. 1, n. 13, set. 2009, p. 11-22.
10
Ver: RODRIGUES, Cristiano Cezarino. Espaço do jogo: espaço cênico teatro contemporâneo. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, 2008.
11
CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como apropriação da silhueta urbana (op. cit.), p. 144.
12
CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como ocupação da cidade (op. cit.), p. 12.
13
Idem, ibidem, p. 14.
14
CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Reflexões sobre o conceito de teatro de rua (op. cit.), p. 28.
15
CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como ocupação da cidade (op. cit.), p. 14
16
Idem, ibidem, p. 19-20.
17
Idem, ibidem, p. p. 17.
18
FERREIRA, Inês Karin Linke. Inter/loc/ação: a concepção da obra e suas dependências espaciais. 2007. 135 f. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, Escola de Belas Artes, Universidade Federal de Minas Gerais, 2007, p. 25.
19
CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como ocupação da cidade (op. cit.), p. 15.
20
Idem, ibidem, p. 15.
21
RODRIGUES, Cristiano Cezarino. Espaço do jogo (op. cit.).
22
CARREIRA, André Luís Antunes Netto. Teatro de rua como ocupação da cidade (op. cit.), p. 18.
sobre o autor
Cristiano Cezarino Rodrigues é cenógrafo e arquiteto. Doutor em Arquitetura e Urbanismo pela Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais (EAUFMG). Professor no curso de Arquitetura e Urbanismo na EAUFMG. Líder do Grupo de Pesquisa Cenografia e outras práticas espaciais cênico-performáticas.