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architexts ISSN 1809-6298

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Vico, conhecido crítico de Descartes, autor da epígrafe do manifesto que Koolhaas redige para Nova York como crítica ao modernismo europeu, ilumina, ao colocar a imagem e a poesia ao centro do conhecimento, o método que Koolhaas nomeia crítico-paranoico.


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SAMMER, Renata. Rem Koolhaas, um viquiano. Arquitextos, São Paulo, ano 16, n. 188.04, Vitruvius, jan. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/16.188/5916>.

Madelon Vriesendorp, Après l'amour, ilustração do livro Nova York delirante, de Rem Koolhaas

A excelente tese de doutorado do arquiteto holandês Rem Koolhaas, Delirious New York: a retroactive manifesto for Manhattan, de 1978, foi traduzida por Denise Bottmann e publicada no Brasil, em 2008, pela Cosac Naify (1). Bottmann, que redigiu uma tese sobre Giambattista Vico (1668-1744), certamente não deixou passar despercebida a epígrafe selecionada por Koolhaas para introduzir seu trabalho:

“Os filósofos e os filólogos devem se ocupar em primeiro lugar com a metafísica poética, isto é, a ciência que busca provas não no mundo exterior, mas nas próprias modificações da mente que medita sobre ele. Como o mundo das nações foi feito pelos homens, esses princípios devem ser buscados dentro de suas próprias mentes”(2).

A passagem de Vico é bastante conhecida, sobretudo àqueles familiarizados com o trabalho de Erich Auerbach, que, em 1924, traduz a Ciência nova para o alemão. Ela participa da empreitada auerbachiana no Mimesis ao sugerir um conceito de realismo estendido, capaz de incluir as “próprias modificações da mente que medita” sobre o “mundo exterior”, e, desse modo, inspira uma história literária livre da fôrma historicista.

No momento em que redijo uma tese de doutorado também sobre Vico, a epígrafe escolhida por Koolhaas apenas intensifica o interesse com o qual me debruço sobre o livro. Este ensaio é o resultado dessa feliz coincidência. Houve certa indecisão, é verdade, no momento em que foi necessário escolher a forma deste texto. Uma resenha seria o mais recomendado, se a leitura não fosse motivada pelo recém-descoberto  interesse comum pela filosofia de um obscuro professor de retórica napolitano. Por isso, apenas um ensaio nos permitiria experimentar a definibilidade do adjetivo que participa do título – “viquiano”, ou, na grafia de João Guimarães Rosa, “viqueano”. Afinal, o que há de “viqueano” no trabalho de Koolhass? Naturalmente há riscos, mas esses são esperados, mesmo desejáveis, no espaço laboratorial do ensaio.

O livro de Koolhaas estabelece de maneira bastante límpida as diretrizes para o debate que animará a produção arquitetônica do século 20, traça “as linhas de batalha” entre manhattanismo e modernismo A dicotomia introduzida por Koolhaas como chave de leitura para a produção arquitetônica do século 20 não deixa de ser eficaz quando buscamos, por exemplo, tratar a filosofia de Vico. De fato, Vico é com frequência adjetivado como um pensador “fora de seu tempo”, marxista, kantiano, hegeliano, romântico e afins, sendo mesmo qualificado por Mark Lilla como um anti-modern. De todo modo, a posição paradoxal de Vico na Idade Moderna assemelha-se à postura de Koolhaas diante do modernismo. O livro de Koolhaas não é um ataque ao modernismo, mas um complemento ao que o autor identifica como limitações do movimento. Como complemento à cegueira modernista, Koolhaas apresenta o manhattanismo, como Vico apresentara a “metafísica poética”, aos seus contemporâneos. Com esta expressão, Vico não busca apenas dar voz a um conjunto de saberes tão veementemente desprezados por Descartes no Discurso do método – a história, a poesia, o aprendizado de línguas, as viagens e as metáforas –, mas, além disso, estabelecer a anterioridade da fantasia, que marca toda produção – técnica ou mimética – humana, ao conhecimento. Em sua posição antagônica na modernidade cartesiana, o método filosófico-filológico de Vico, efêmero e paradigmático como o manhattanismo de Koolhaas, não é a antítese da modernidade, mas um de seus mais saborosos frutos.

A “metafísica poética” apresentada por Vico fundamenta a sabedoria poética, da qual Vico diz terem sido dotados os antigos heróis, e sua linguagem, também poética, e, portanto, como é característico da linguagem poética, destaca-se pela produção de imagens (phantasmata). O caráter fantasmático desta metafísica calcada na produção e na veiculação de imagens não é desprovido de interesse, insiste Vico, e por isso dedica boa parte da Ciência nova (1730) a esta metafísica mais adequada, como sugere, às variações da mente humana. O escritor – ou o desenhista – fantasma deve ser capaz de ler os produtos dos homens, palpáveis e impalpáveis, sem equivalentes no mundo natural.

A artificialidade adquirida pela natureza na edificação da ilha – a reprodução de acidentes naturais na montagem do Central Park, suas elevações e suas clareiras – sugere uma nova disposição dos homens a outorgar dignidade à natura naturata, ao artifício. Na metafísica poética de Vico, é a criação humana, aqui mais próxima do verbo grego poieo (fazer, fabricar), despida de seu sentido teologizante, e apenas ela, que possibilita alguma forma de conhecimento, uma verdade, que, para evitar confusões, Vico nomeia il vero, pois trata-se de uma “verdade na ideia”.

Madelon Vriesendorp, Flagrante delito, ilustração do livro Nova York delirante, de Rem Koolhaas

O método crítico-paranoico

É sabido que Vico preocupava-se com o método. É este o tema de uma de suas mais conhecidas orações – Dos métodos de estudo de nosso tempo (De nostri temporis studiorum ratione, 1709) – presente também em todas as três edições da Ciência nova (1725, 30 e 44). Koolhaas deixa claro em alguns parágrafos de sua introdução o método de sua investigação – que, diga-se de passagem, já havia sido anunciado com a epígrafe de Vico –, isto é, a reconstituição de um manifesto “retroativo” para Nova York, a redação não apenas de um projeto prévio, mas a invenção de um modo-de-ser moderno atento às vicissitudes da existência humana, portanto resistente ao modernismo europeu.

De modo distinto dos projetos modernistas, Manhattan projeta-se à medida que cresce, o que leva Koolhaas a colocar-se como projetista a posteriori das edificações da ilha. Em suas próprias palavras, Koolhaas é o ghostwriter, o escritor cuja identidade não pode ser revelada, a personificação da mente humana que levará adiante a elaboração de um projeto já realizado. O retorno ao projeto apenas é possível pelo mapeamento dos caminhos que definiram o modo de ocupação da cidade. Por isso o manifesto de Koolhass é retroativo. De fato, o manifesto evidencia a contradição interna a toda vanguarda que busca romper com a própria concepção linear de tempo que lhe dá origem e lhe sustenta. Se uma vanguarda, o manhattanismo é uma vanguarda inconsciente, sem manifesto, bastante apta a estabelecer analogias com o modo de crescimento dos seres vivos e a compor metáforas orgânicas.

No último capítulo do livro, a questão sobre o método retorna, dessa vez personificada nas figuras de Dalí e Le Corbusier. Corbusier representa o modernismo europeu e a morte do manhattanismo – “Manhattan, esse grande linguado estendido sobre uma rocha” – e é com frequência vinculado à “abstração francesa (= francesa = racional)” (p. 284), dando já o tom do manifesto surrealista, não-cartesiano, porém viquiano de Koolhaas. Sem hesitar, Corbusier reconhece em Manhattan o “paradoxo patético” a ser superado, um excesso de sentimentalismo, ou uma valoração desmedida do sensível que teria por demérito obnubilar a visão, render vago e impreciso o debate público, que perde em agudeza, em ângulos retos e límpidos: “Contra o arranha-céu de Nova York, nós erigimos o arranha-céu cartesiano, límpido, preciso, brilhando com elegância no céu da França” (apud p. 290).

Este anti-manhattanismo declarado evoca a querelle entre franceses e italianos que mobilizou Vico e alguns de seus conterrâneos. Ao cerne do debate está o abuso da linguagem figurada, metafórica, identificada nos italianos e nos espanhóis, e a precisão da linguagem matemático-filosófica em circulação nas cortes inglesa e francesa. É ao se posicionar nesse debate, que Vico apresenta o seu método filosófico-filológico. Possivelmente patológico, sim, como Corbusier dizia ser Nova York, também turvo e impreciso, porém sempre agudo, eficientíssimo no confronto com o objeto para o qual foi desenhado: a mente humana e seus produtos, como indica a passagem de Vico.

Não é exagero aproximar o manhattanismo do método viquiano. Vico insiste na acuidade do conhecimento das coisas humanas diante do conhecimento das leis do mundo natural, alegando ser de fato impossível conhecer aquilo que não fabricamos. Dalí identifica metáforas antropomórficas que dão vida ao manhattanismo, metáforas que, em Vico, dão origem a Jove, a Hércules, a Diana e a Homero, e assim a toda cultura. O modo de ser de Manhattan, seu método, é poético, tal como descrito por Vico. Dalí mostra-se sensível também ao aspecto “poético” da cidade e diz:

“A poesia de Nova York não é a de um prático edifício de concreto que arranha o céu; a poesia de Nova York é a de um gigantesco órgão de marfim vermelho com inúmeros tubos – ele não arranha o céu, ele ressoa no céu ao compasso da sístole e da diástole do cântico visceral da biologia elementar” (apud p. 296).

Diante da ênfase dada à sabedoria poética, Vico opõe-se à dominante filosofia cartesiana, mas talvez precisamente pela posição antagônica que assume, Vico seja incisivamente moderno, como a Manhattan de Koolhaas. É esta afinal a mais contundente característica da modernidade, a ironia que faz com que o próprio “-ismo” que a engendra seja imediatamente descartado, como fica evidente no argumento falacioso de Charles Jencks que localiza na demolição de Pruitt-Igoe, de Minoru Yamasaki, o fim do modernismo.

O método crítico-paranoico de Dalí, que contrapõe, na tese de Koolhaas, o cartesianismo de Corbusier, parte de uma metáfora: aquela que lê a natureza como um livro. Entre as páginas desse livro, relações de semelhança revelam uma lógica das coincidências, permitem decifrar a escrita divina, como busca fazer, por exemplo, a doutrina galênica das assinaturas (signatura rerum). Embora o surrealismo de Dalí reproduza sinteticamente a “maneira paranoica de ver o mundo sob uma nova luz” (p. 270), ele guarda em comum com o método viquiano – mas que é também o método de Galeno e dos neoplatônicos de Florença – a ênfase dada às correspondências, às analogias e aos “padrões insuspeitados”, às metáforas inusitadas e surpreendentes. Nesse sentido, o modernismo de Manhattan, se é de fato possível usar esse oximoro, é conservador.

As metáforas antropológicas que caracterizam o modo de ocupação manhattiano, contudo, não são apenas a adequação necessária entre o que o homem produz e seu próprio corpo. Ao contrário, elas extrapolam a escala humana fazendo da própria técnica o seu objeto, celebrando-a de modo hedonista, ampliando desmesuradamente as escalas a domínios jamais dantes explorados. A escala humana, podendo então contar com a imaginação, ou, se preferirmos, com a fantasia, estabelece novas escalas metafóricas. Poder-se-ia mesmo dizer que o manhattanismo se interessa por edificar o domínio da imaginação. Tal edificação dá-se por um método de livre associação entre imagens que, paranoico, mostrando-se ao lado (para) da mente racional (nous), não é apenas delirante, mas é também crítico, à medida que busca novos sentidos pela afetação de um patos.

Madelon Vriesendorp, Freud ilimitado, ilustração do livro Nova York delirante, de Rem Koolhaas

A tecnologia do fantástico

Koolhaas abre o livro com Coney Island e com uma reflexão sobre a relação de antagonismo que a ilha, ao ser ocupada, estabelece com a ilha oposta, constituindo assim um território fantástico e absurdista.  Dream Land, por exemplo, chega a recriar as redes pelas quais se comunicam os diversos domínios do subconsciente, e uma terra de anões aristocratas, impudicos, particularmente atraente aos olhos dos turistas devido a fama adquirida. As descrições que Koolhaas desenvolve com fina ironia são suficientemente reais e fantásticas para dar o tom do manifesto que redige como autor-fantasma. Isto é, a própria relação de anterioridade que o projeto estabelece com o seu produto, tida por necessária, é posta em questão, como ocorre com frequência na “metafísica poética” de Vico. O manifesto de Koolhaas, desse modo, jamais pode ser um projeto, um plano piloto. Antes, ele busca as formas que sustentam o delírio novayorkino, como a agulha e a esfera, que permitirão a intensificação sem precedentes do espaço ocupado, e como as formas sonhadas pelos habitantes da cidade, que dormem em hotéis, por vezes onde trabalham, e partilham da atmosfera hedonista da cidade.

Estabelecidos esses axiomas, Koolhaas permite-se uma conclusão ficcional, onde finalmente desenhará projetos para um manhattanismo já defunto. De todo modo, pela própria problemática que introduz a respeito da relação que estabelecem o projeto e a sua realização, é evidente a sensualidade das edificações, também no modo como elas podem, apesar de sua característica complexidade, desaparecer em um único e fulgurante incêndio, como o que devastou Dreamland em 1911. Apesar da efêmera duração da terra dos sonhos, ali foram desenvolvidas as tubulações, fiações de todos os tipos, que otimizariam a ocupação da ilha oposta.

Como já dizia Aristóteles, é o arquiteto quem imagina a casa e a edifica. É ele quem visualiza a finalidade da matéria e quem a transforma, e, portanto, o arquiteto relaciona-se diretamente com a enteléquia. É ele quem produz a quebra entre o mundo natural que se auto-reproduz – a natura naturans – e o mundo das formas produzidas pelo homem – natura naturata. Imitando a natureza (mímesis) ou sobre ela imprimindo uma técnica (technē) com o intuito de transformá-la, o arquiteto é, ainda, em sua versão moderna e modernista, aquele que dirá ser o artifício humano tão divino quanto o artifício daquele que criou o mundo. Não se trata de reproduzir o cosmo infinitamente, mas, por ter sido feito à imagem e semelhança divina, é possível superá-lo, celebrando, desse modo, a inventividade humana. Poder-se-ia mesmo cogitar aproximar o manhattanismo de um renascimento da técnica como um capítulo importante na história do conceito que passa pelo latim ars.

A relação entre projeto e produto, representante e representado, nos moldes do modernismo europeu, em particular, é posta em xeque pela celebração sensual da técnica no manhattanismo. Manhattan é a concretização da experiência moderna – e não apenas modernista – do tempo. Uma vez fixado o número de quadras, Manhattan “não pode crescer de nenhuma maneira convencional” (p. 38). “A cidade”, conclui Koolhaas, “se torna um mosaico de episódios, cada qual com seu próprio tempo de vida, que disputam entre si por intermédio da retícula” (p. 38). Este crescimento que termina por “engolir o restante do espaço da retícula” (p. 39), é tecido a partir de ângulos retos – que definem as casas “mais baratas para construir e as mais convenientes para morar” (p. 36) – e de uma sistematização da natureza, como fica evidente na edificação do Central Park, que reproduz um “catálogo de elementos naturais”, alamedas, trilhas, lagos e demais acidentes.

Mas talvez o verdadeiro impulso dado ao manhattanismo tenha sua origem em Coney Island, onde a “conversão sistemática da natureza em serviço técnico” (p. 56) voltada à construção de uma verdadeira “plataforma de lançamento do proletariado” (p. 54), deram vasão, sem impor limites, à criatividade novayorkina. Sobre aquele que intuiu o Luna Park, Koolhaas escreve: “Ao preço de uma, Thompson criou duas cidades distintas, cada qual com sua própria personalidade, sua própria vida, seus próprios habitantes. Agora, a cidade em si é vivida em turnos; a cidade elétrica, fruto espectral da cidade “real”, é um instrumento ainda mais poderoso para a realização da fantasia” (p. 63). Dreamland também segue, de maneira explícita, essa proposta reproduzindo uma “cartografia do subconsciente” e ocupando suas edificações com meninos vestidos como Mefistófeles, treinados para dizer “brincadeiras e frases enigmáticas”. A ilha, como resume Koolhaas, é um verdadeiro laboratório para o “novo urbanismo da Tecnologia do Fantástico” (p. 88).

Rem Koolhaas, Globo cativo, ilustração do livro Nova York delirante, de Rem Koolhaas

A arquitetura da metáfora

“O debate sobre o parque”, escreve Koolhass, “é um confronto entre o urbanismo reformista das atividades saudáveis e o urbanismo hedonista do prazer. É também um ensaio das lutas futuras entre a arquitetura moderna e a arquitetura do manhattanismo” (p. 93). A ruptura entre exterior e interior identificada nos arranha-céus nova yorkinos, que Koolhaas nomeia “lobotomia”, permite a visualização de novos territórios, “[e]ntão, os territórios dessa fronteira no céu, criados pelo homem, poderão ser colonizados pelo ‘sintético irresistível’ para fundar realidades alternativas em qualquer plano.” (p. 112). Para a edificação do urbanismo fantástico, é fundamental o sistema de tubulações criado para regular a temperatura e a umidade do ar e assim possibilitar a ocupação vertiginosa do espaço vertical. É essa “irracionalidade controlada da Tecnologia do Fantástico”, que possibilita a elevação das torres, “postos avançados e disseminados de uma nova cultura” (p. 117). Para o bem e para o mal: a torre manhattiana é um “mirante” e é também o “pináculo do suicídio” (p. 117).

Os fatos que orientam o urbanismo da tecnologia do fantástico são fatos poéticos, bastante distintos dos fatos científicos. Fatos são frutos do senso comum. O fato científico pode dar-se tanto por indução, isto é, a partir de um dado, retirar–lhe todas as consequências e variações possíveis; ou por dedução, isto é, buscar pela observação de fenômenos variados o que é dado como recorrente. Fatos científicos dão o bom tom das intenções do urbanismo que Koolhass contrapõe ao urbanismo fantástico. Nos termos de Raymond Hood, contra o “urbanismo puritano das boas intenções” levanta-se o “urbanismo hedonista da congestão” (p. 235). Já os fatos poéticos do urbanismo fantástico escapam dos métodos indutivo e dedutivo com um gesto voltado à intensificação da metáfora da aglomeração. De algum modo, o urbanismo fantástico é uma reação à ruptura com a vivência cotidiana do cronotopo historicista, e, portanto, com a  projeção de fins e de meios para alcançá-los, e um sintoma de novas vivências, onde a intensificação do momento é elevada a graus nunca dantes imaginados. Em Manhattan, “o fantástico suplanta o utilitário”, dando origem a novas formas de vivenciar a vida cívica. Em cada quadra, o arranha-céu surpreende, constitui um “fragmento subutópico” (p. 131).

As quadras transformam-se, simultaneamente, com a lei de zoneamento de 1916, em ilhas isoladas. Cada uma delas oferece uma interpretação do que fora a desenfreada exploração dos limites da razão de Coney Island. A lei de 1916, que estabelece a distância de uma quadra entre os arranha-céus, é o que lhes confere legitimidade. “Mas toda tentativa, escrita ou desenhada”, de criar consciência a respeito do arranha-céu, de sua finalidade e de seu uso é, na mesma medida, um exercício de ofuscamento: sob o manhattanismo – doutrina da consciência indefinidamente protelada –, o maior teórico é o maior obscurantista” (p. 137). Não apenas, mas também “[c]omo todas as quadras de Manhattan são iguais e enfaticamente equivalentes na filosofia tácita da retícula, qualquer mudança numa delas afeta todas as outras como uma possibilidade latente: teoricamente, cada quadra agora pode se converter num enclave fechado do ‘sintético irresistível’” (p. 121).

Desse modo, Manhattan cresce à medida que seus habitantes dão forma humana ao espaço ocupado. Ela não é ocupada de forma programática, cartesiana, a poiesis do arquiteto de Manhattan é notadamente metafórica. Como se nota sobre Ferriss, um de seus idealizadores, “o grande desenhista que de auxiliar passa a líder”, “[e]le consegue injetar poesia perspectiva na composição menos promissora [...]. A melhor forma de usar seu talento seria jogar as plantas para cima, ir dormir e acordar no dia seguinte para encontrar o projeto pronto”. Um método viquiano, sem dúvida, bastante confiante no poder das imagens e na eficácia intuitiva da poética do errar humano.

A solução de Corbett para a congestão da cidade mostra um outro arquiteto operando por uma lógica metafórica. Intensificando a congestão ao invés de atenuá-la, Corbett pretende transformar Nova York em uma Veneza modernizada, “uma cidade de arcadas, praças e pontes, os canais como ruas, salvo que os canais não estarão cheios de água de verdade, e sim de um trânsito motorizado fluindo livremente, o sol brilhando no capô negro dos carros e os edifícios se refletindo nesse fluxo ondulante de veículos que rodam velozes” (p. 148). Como bem nota Koolhaas, “[u]m pragmatismo tão distorcido se torna pura poesia” (p. 148). Tal pragmatismo poético, distorcido, caracteriza o urbanismo do fantástico.

De modo semelhante, a sabedoria poética (sapienza poetica), como argumenta Vico, é um modo legítimo de abordar a filosofia, filológico porém não historicista. Sua atenção está voltada à origem da linguagem e às suas dimensões verbais, vocais e visuais. Vale citar Koolhaas:

“A ‘casa’ e a ‘vila’ da Lei de Zoneamento de 1916, os ‘edifícios-montanha’ de Ferris e, finalmente, a Manhattan de Corbett como uma ‘Veneza modernizada’ formam, juntos, uma matriz de frivolidade mortalmente séria, um glossário de fórmulas poéticas em que o planejamento objetivo tradicional é substituído por uma nova disciplina de planejamento metafórico com vistas a lidar com uma situação metropolitana fundamentalmente inquantificável. A própria congestão é condição essencial para concretizar essas metáforas na retícula. Apenas ela pode gerar a ‘supercasa’, a ‘megavila’, a ‘montanha’ e, por fim, a Veneza modernizada dos automóveis. Juntas, essas metáforas constituem as fundações de uma cultura da congestão, que é o verdadeiro empreendimento dos arquitetos de Manhattan.” (p. 151).

Esse modo de planejamento metafórico é celebrado em um baile, onde os construtores de Manhattan vestem fantasias que representam seus edifícios, compondo, em escala humana, o skyline de Nova York, assumindo assim, em seus próprios trajes, o antropomorfismo que rege a lógica de ocupação da cidade. No “planejamento metafórico” cabe o “planejamento onírico”, como acontece, por exemplo, com os “ares de antiguidade” adotados como resposta à presença de fantasmas, ou de histórias de fantasmas, na quadra do Waldorf-Astoria.

A “cultura da congestão” encontra seus próprios modos de celebração, como é evidente no caso do Downtown Athletic Club, um resultado pouco comum do planejamento metafórico novayorkino. A ideia de que um vasto edifício possa abrigar as necessidades de um clube para senhores é curiosa, pois a falta de espaço jamais pode ser alegada como limitação à implantação de novos projetos. Ao contrário, o desafio na ocupação do espaço interno do arranha-céu, guardado por uma fachada que nada anuncia, é justamente a criação de infinitos novos modos de sociabilidade ao redor de temas relacionados ao corpo, aos esportes e à saúde. A dimensão do edifício relacionada à lógica de ocupação das quadras, oferece aos arquitetos do fantástico a possibilidade, sem precedentes, de edificar variações vertiginosas sobre um mesmo tema. Naturalmente ali encontramos uma piscina noturna, um campo de golfe e mesmo técnicas bizarras de uma então dita inovadora medicina preventiva, mas o intento hedonista do projetista do fantástico é de fato evidente em “um bar com vista para o Hudson em que se servem ostras. Comer ostras com luvas de boxe, nus, no enésimo andar – tal é o ‘enredo’ do 9oandar, ou o século 20 em ação” (p. 184).

O manhattanismo chega ao fim ao perder a conexão com os desejos da população, a sua pronta resposta metafórica, seu modo de ocupação antropomórfico, quase orgânico. Mas Koolhaas, como bom viquiano, tendo descoberto os princípios da arquitetura do fantástico, dá continuidade ao manhattanismo, apesar de Manhattan, com cinco projetos. Entre eles “a cidade do globo cativo” (p. 331), que reproduz, em menor escala, o espírito da edificação dos arranha-céus de Manhattan. Koolhaas, de maneira semelhante a Vico, parece ter encontrado o método – metafórico – da arquitetura do fantástico. Os projetos fantásticos que concluem a tese de Koolhaas não serão realizados, permanecerão vivos apenas no domínio da imaginação. De todo modo, eles estão ali para lembrar, como já fez uma vez Aristóteles, que, dado que coisas improváveis acontecem, é provável que o improvável também aconteça. Por isso fechamos este ensaio com os dois primeiros parágrafos de seu projeto para a “cidade do globo cativo”, uma metáfora do manhattanismo:

“A Cidade do Globo Cativo é dedicada à fecundação artificial e ao nascimento acelerado de teorias, interpretações, construções mentais, propostas e suas respectivas imposições ao mundo. É a capital do ego, onde a ciência, a arte, a poesia e várias formas de loucura concorrem em condições ideais para inventar, destruir e restaurar o mundo da realidade fenomênica.

Cada ciência ou mania tem seu terreno próprio. Sobre cada terreno funda-se uma base igual, de pedra polida maciça. Para facilitar e induzir a atividade especulativa, essas bases – laboratórios ideológicos – estão equiparadas para suspender leis indesejadas e verdades inegáveis, assim como para criar condições físicas inexistentes. A partir desses sólidos blocos de granito, cada filosofia tem o direito de se expandir indefinidamente até o céu. Alguns desses blocos apresentam membros de total certeza e serenidade, outros mostram estruturas de conjecturas experimentais e sugestões hipnóticas.” (p. 331-32).

A forma do projeto na arquitetura da metáfora desafia os limites do possível, instiga a metamorfose e a poesia, por isso faz da arquitetura, enquanto técnica, modo de intervenção humana capaz de transformar o mundo natural de modo a gerar uma forma discursiva singular, particularmente incisiva no limite sempre tênue e instigante que separa, desde a Antiguidade, a técnica (domínio ao qual também pertence a mímesis do poeta) da filosofia.

Como não deixa de sugerir o título, Delirious New York, as imagens da fantasia podem assemelhar-se às imagens que produz o louco, e aqueles afetados pela febre ou pela bebida. A fantasia criativa, poética, que impulsiona Nova York busca, em todo seu delírio, abarcar a realidade, absoluta, de modo efetivo, tornando-a compreensível ao homem. Assim sendo, o modo de ocupação da cidade é antropomórfico. O quanto as imagens úteis da fantasia que impedem que coloquemos a mão duas vezes no fogo diferem das imagens do louco delirante, porém, é questão que permanece em aberto. De todo modo, é parte da técnica dos poetas dar forma às imagens da fantasia, particularmente às paixões, destacando assim a fabricação que distingue os homens das demais espécies. O fato poético, inefável como ele é, escorregadio, foi contudo obsessivamente cerceado pelas edificações novayorkinas como a mais pura antítese do modernismo (cartesiano, diria Koolhaas, o viquiano).

Rem Koolhaas, Piscina , ilustração do livro Nova York delirante, de Rem Koolhaas

notas

1
KOOLHAAS, Rem. Nova York delirante: um manifesto retroativo para Manhattan. Tradução de Denise Bottmann. São Paulo, Cosac Naify, 2008.

2
VICO, Giambattista. Princípios de uma Ciência Nova, 1744

sobre a autora

Renata Sammer é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura da PUC-RJ, atuou como professora substituta no departamento de História da UFRJ de 2012 a 2014.

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