Aspectos iniciais
A discussão do ensino da disciplina de Projeto de Arquitetura não é algo novo, tampouco inédita. Apesar de o processo operativo ser muito particular para cada arquiteto, a abordagem do ensino do repertório necessário para o desenvolvimento da prática do projeto de arquitetura é um tema consolidado, e de certa forma compreendido no âmbito acadêmico. Nesse contexto do desafio do projeto, Mahfuz (1) caracteriza três importantes aspectos intrínsecos à problemática: a técnica, o lugar e o programa; e um quarto vinculado à teoria da arquitetura, a estrutura formal. Este artigo tem como foco discutir a dimensão da técnica no ensino e na prática do projeto de arquitetura. Essa discussão é proposta em decorrência de estarmos vivendo um momento de transformações profundas na prática de projeto, respondendo a um conjunto de fatores originados nos últimos anos, tais como as novas ferramentas de modelagem com tecnologia BIM, os novos regulamentos de eficiência energética e as normas de desempenho de edificações por um lado, e a efervescência do mercado da construção civil por outro. Essas novas demandas cobram dos arquitetos um conhecimento maior e mais aprofundado da tecnologia no que diz respeito ao desenvolvimento do projeto de arquitetura, e é nessa linha que o artigo pretende se inserir, abordando desde a consolidação do cenário de transformação até os desafios em termos pedagógicos necessários para responder às questões levantadas, enfatizando também as dimensões da tecnologia no ensino e na prática do projeto de arquitetura.
A técnica no contexto do projeto arquitetônico
Com o objetivo de estruturar a discussão do ensino da técnica no que tange tanto à prática do projeto de arquitetura, como também o ensino na disciplina de Projeto de Arquitetura, utilizam-se os conceitos propostos por Mahfuz (2) para a definição da pertinência formal do objeto construído, e dentro desse contexto, situa-se a técnica como uma das dimensões a serem enfrentadas no desafio de projeto. Sabemos que nem toda a obra construída pode ser chamada de arquitetura, e fazendo uso novamente dos conceitos de Mahfuz (3), entendemos a arquitetura como a construção com significado. O significado do edifício relaciona-se ao lado subjetivo da composição, ou seja, das diferentes formas do usuário vivenciar o espaço. A escala, a cor, os materiais, a presença de determinados elementos de arquitetura (4), a transparência, a opacidade, as relações espaciais, geram diferentes apreensões por parte do usuário. Além dos aspectos de percepção espacial, as definições tecnológicas estão vinculadas a questões de desempenho e eficiência, abarcando diferentes dimensões como a estrutural, a térmica, a lumínica, a acústica, a econômica, entre outras. As dimensões estética e funcional da tecnologia no desenvolvimento do projeto de arquitetura são tratadas nos tópicos a seguir.
A discussão estética
No projeto
A dimensão estética da técnica é inerente ao caráter da edificação, definido como o lado subjetivo da composição, e manifestando-se de várias formas. A dimensão estética não é o foco do artigo, porém, faz-se necessário como contribuição discuti-la sob a ótica de quem a ensina e de quem a define na prática do projeto de arquitetura. A escolha e definição de elementos de arquitetura e de materiais construtivos, considerando aqui que o edifício projetado possui um conceito, uma imagem transformadora que lhe dá significado, diferenciando-o de uma construção qualquer, seguindo uma lógica conceitual, implica em duas situações bem claras. Na primeira, a não valorização estética da tecnologia conduz a uma edificação de caráter mais tradicional podendo assumir diferentes fenótipos, mas sem uma valorização da técnica, como é o caso do Polo Cultural de Erechim por exemplo. Uma proposta de definição dos materiais de construção baseada nas pré-existências, na formação do território, valorizando a pedra, a telha cerâmica e a madeira, materiais de construção utilizados pelos imigrantes que ocuparam a região norte e nordeste do RS.
Na segunda possibilidade, a valorização da dimensão técnica, implica numa edificação que prioriza materiais que remetam à tecnologia como o metal, o vidro, ou enfatiza compositivamente elementos de arquitetura como sistemas de proteção solar, coberturas, vigas, pilares, painéis fotovoltaicos, que ora podem virar até superfície de fachada, ou em outros momentos sistemas de proteção solar, como é o caso do edifício administrativo em Berlim. Nesses casos, existe um cuidado exaustivo com o detalhe arquitetônico. A valorização compositiva do sistema estrutural é outra característica marcante da proposta de valorização tecnológica no âmbito da composição arquitetônica. Além do sistema estrutural encontramos em muitos exemplos painéis fotovoltaicos sendo utilizados ora como sistemas de proteção solar, ora como planos de fachadas em edificações comerciais, de serviços e públicas.
Ainda nesse contexto de valorização estética do caráter tecnológico das edificações, podemos destacar na atualidade os edifícios ditos sustentáveis. Coloco da forma “dito sustentáveis” em decorrência de presenciarmos duas diferentes abordagens, ambas com o excessivo uso do vidro, e consequente menor eficiência se comparados a edifícios com menores percentuais de fechamentos transparentes. A utilização excessiva dos fechamentos transparentes está bem longe da Arquitetura Passiva (5), ou Bioclimática, mesmo que a indústria do vidro ofereça um conjunto de soluções bem mais eficientes em comparação a duas décadas atrás. Nessa abordagem, encontramos edifícios que valorizam o caráter tecnológico com base, principalmente, na valorização de materiais que remetam à tecnologia como os metais e vidros por exemplo. Por outro lado, encontramos soluções que valorizam compositivamente elementos de arquitetura que aumentam o desempenho termoenergético das edificações, tais como sistemas de proteção solar, elementos de geração de energia solar e eólica que ao mesmo tempo mitigam os impactos do ambiente construído no natural, e por outro dinamizam a composição da edificação, conforme a figura abaixo.
No ensino
A falta de contextualização do papel da tecnologia na prática do projeto de arquitetura é a maior dificuldade do tratamento deste no âmbito acadêmico. Essa contextualização não é abordada apenas nas disciplinas da área tecnológica, o que certa forma é até esperado em decorrência da formação específica dos profissionais que lidam com o ensino das cadeiras da área, principalmente nas disciplinas de Sistemas Estruturais, Instalações Hidráulicas, Elétricas e Sanitárias. O maior problema é o fato de não encontrarmos uma contextualização mais profunda e pertinente nas disciplinas de síntese. Independentemente do quão particular é o processo operativo de desenvolvimento da prática do projeto de arquitetura, a partir da conceituação inicial de um projeto, onde definimos os princípios que vão nortear a ocupação do terreno, a relação com o contexto local observando o ambiente natural e construído, as relações espaciais entre o interior e o exterior, é importante um entendimento inicial do papel e da ênfase da tecnologia na composição. Com base numa análise inicial e na definição da ênfase tecnológica uma série de decisões de forma estruturada são tomadas, como por exemplo: a ênfase do sistema estrutural (escolha dos materiais e da forma da estrutura). A Figura 4 ilustra uma menor ênfase do caráter tecnológico, com uma estrutura de concreto armado. Nas Figuras 5, 6 e 7 observamos uma maior ênfase do caráter tecnológico com base na forma e na estrutura metálica externa ao edifício. A proposta ressalta o sistema estrutural na composição do edifício, estando externo à pele de vidro, como também marcando o acesso. Na Figura 6 observa-se uma cobertura atirantada de um espaço exterior qualificando espacialmente o contexto local. No edifício administrativo em Dresden, Alemanha, visualiza-se uma estrutura formada por pilares de seção circular inclinados, gerando dinamismo na composição arquitetônica.
A consolidação dessa discussão no âmbito do lançamento de um partido arquitetônico só é possível a partir das experiências no Atelier de Projeto. A discussão estética da dimensão da técnica no âmbito da prática do projeto de arquitetura é tema para uma discussão mais profunda já abordada no periódico Arquitextos (6).
A falta da discussão estética
A falta de contextualização inicial do papel da técnica no projeto como também o despreparo de alguns professores nas cadeiras de Projeto de Arquitetura consolidam em muitos alunos uma processo operativo de concepção incompleto, deixando de lado muitas vezes importantes aspectos decisivos na composição das edificações. Mencione-se o caso de se incorporar elementos de arquitetura que não são condizentes com a proposta arquitetônica como seria o caso, por exemplo, de implantarmos um sistema estrutural e cobertura de Calatrava num projeto de uma escola com tecnologia convencional de alvenaria. Além disso, a falta de cuidado com a técnica no desenvolvimento de um projeto de arquitetura pode também criar problemas compositivos na edificação. Dois exemplos bem simples são caracterizados a seguir: os reservatórios superiores – “botões de detonação do edifício”, e dos aparelhos de condicionamento de ar de janela, ou unidades condensadoras de sistemas Split - “as verrugas da fachada”. Em ambos os casos, exemplificados nas Figuras 8, 9 e 10 , observa-se a falta de cuidados com aspectos que são necessários para que uma edificação possa ser utilizada. No caso dos reservatórios, muitas vezes os arquitetos esquecem que existe “algo” acima da laje de cobertura do último pavimento, criando uma composição com a adição de um “botão”.
No caso da Figura 9 observa-se o impacto da falta da compatibilização do sistema de climatização artificial com a fachada da edificação, descaracterizando a pele de vidro. Na Figura 10 a falta de compatibilização do projeto de condicionamento de ar (se existir) com a edificação gera problemas com a drenagem do aparelho de expansão direta.
A discussão funcional
No projeto
Na dimensão funcional a preocupação é “fazer o edifício funcionar”, ou seja definir as resoluções tecnológicas necessárias para que o edifício tenha uma envoltória, fechamentos transparentes, sistema estrutural, elétrico, hidrossanitário, de climatização, entre outros possíveis. É nesse aspecto o foco deste artigo. As novas demandas do mercado da construção civil e os novos marcos regulatórios-normativos estão gerando impactos profundos na gestão do projeto, enquanto gestão de pessoas e de conhecimentos tecnológicos. No caso dos regulamentos de eficiência energética, os quais apresentam metodologias de análise do nível de eficiência energética de edificações, verifica-se que o edifício eficiente é aquele que além possuir uma envoltória eficiente possui também sistemas e equipamentos eficientes (iluminação, ar condicionado e aquecimento de água). Esses sistemas não são os mesmos para edifícios residenciais e comerciais. No caso da eficiência dos sistemas de iluminação, ar condicionado e aquecimento de água, uma série de aspectos devem ser considerados nos projetos complementares. Além de o arquiteto ter de possuir um repertório sólido no âmbito dos sistemas mencionados, é necessária também a orientação dos projetistas que atuam no desenvolvimento de projetos complementares no que diz respeito a um conjunto de pré-requisitos específicos dos sistemas de iluminação, ar condicionado e aquecimento de água. Ou seja, a atuação do arquiteto na gestão dos projetos complementares é fundamental na obtenção de um edifício eficiente energeticamente. A abordagem da definição e integração dos sistemas é aprofundada na sequência com uma discussão no âmbito da eficiência energética. Já a norma de desempenho de edificações residenciais cobra do projetista um conhecimento aprofundado no que tange o desempenho de componentes e sistemas da edificação. Além disso, preconiza um maior grau de detalhamento e especificação no projeto. A nova norma define de forma mais clara as responsabilidades do projetista, do executor e do usuário, e conduz à prática do projeto, no que tange a tecnologia, a uma especificação do desempenho desejado para elementos de arquitetura e sistemas da edificação.
No ensino
De início, é pertinente caracterizar a dinâmica no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas, representando o paradigma de ensino da área tecnológica de parte das escolas de arquitetura no Brasil...Em boa parte das escolas existe uma distância muito grande entre as disciplinas da área tecnológica e as disciplinas de síntese, ou de projeto de arquitetura. A organização das unidades acadêmicas das universidades federais em departamentos é responsável por uma separação histórica entre a teoria e a prática no que diz respeito à tecnologia. Os departamentos de Tecnologia e de Projeto de Arquitetura criaram ao longo do tempo barreiras muitas vezes apenas transponíveis com base em projetos pedagógicos que preveem atividades interdisciplinares nos Ateliers de Projeto. Em outros casos, como boa parte das unidades acadêmicas de universidades particulares e comunitárias, a organização em colegiados promove uma maior integração dos docentes favorecendo as atividades pedagógicas de interdisciplinaridade. Além da caracterização da estrutura atual do ensino da tecnologia nos cursos de Arquitetura e Urbanismo podemos observar o problema da necessidade de adequação dos currículos às novas demandas oriundas dos novos regulamentos e das novas demandas do mercado da construção civil. A carência de laboratórios da área tecnológica nos cursos de arquitetura, UFPel e UFSM, sul do RS, por exemplo, e a consequente fragilidade no ensino da construção civil é uma realidade que por si só direciona a uma formação incompleta e não adequada ao atendimento das demandas nos canteiros de obras. Os profissionais precisam de um tempo de atuação para complementar a formação e poder atender às necessidades da prática de arquitetura observando a dimensão da técnica. Além dessas dificuldades, observa-se o descompasso entre o que é ensinado e os novos regulamentos que exigem dos projetistas um maior domínio da técnica e um maior grau de aprofundamento nas especificações técnicas.
Desafios do ensino e da gestão da tecnologia no projeto de arquitetura
A necessária abordagem Interdisciplinar: o aspecto pedagógico 1
Uma das formas de promover a consolidação do conhecimento da tecnologia da edificação é a viabilização da integração horizontal entre as disciplinas da grade curricular. Essa integração caracterizada como horizontal por estar vinculada às disciplinas que ocorrem no mesmo período (semestre), deveria consolidar o conhecimento da área tecnológica nas disciplinas de projeto de Arquitetura e Paisagismo. Disciplinas da Área de Construção Civil, Materiais de Construção, Conforto Ambiental, nesse contexto, poderiam ser exploradas nas cadeiras de projeto.
Outra forma de promover a integração horizontal nas próprias disciplinas da área tecnológica é avaliar os conteúdos desenvolvidos em atividades direcionadas às disciplinas de projeto arquitetônico. Além da integração das disciplinas, a definição da grade curricular e dos temas a serem desenvolvidos nas disciplinas de projeto de arquitetura e urbanismo e compatibilização com as disciplinas da área tecnológica é também pressuposto básico para integrar horizontalmente os conteúdos.
Ou seja, é necessária no projeto pedagógico a atualização das disciplinas e dos temas das disciplinas de projeto arquitetônico e urbanístico promovendo também a atividade interdisciplinar.
A atualização do corpo docente frente às novas demandas: o aspecto pedagógico 2
Com relação à atualização do corpo docente, caracteriza-se na sequência as novas normas de desempenho e eficiência energética, as quais impactam tanto na prática do projeto de arquitetura como também na gestão dos projetos complementares.
NBR 15575
A NBR 15575 (7) – Edificações Habitacionais – Desempenho, que passou a vigorar em julho de 2013, define o nível de desempenho mínimo ao longo de uma vida útil dos elementos principais de edificações habitacionais (como estrutura, vedações, instalações elétricas e hidrossanitárias, pisos, fachadas e cobertura). Além disso, a norma deixa claras as incumbências dos projetistas, do incorporador, do construtor e dos usuários, define prazos de vida útil de partes da construção, prazos de garantia, condições de manutenção, requisitos e critérios de avaliação do desempenho dos principais sistemas de uma edificação. Em termos práticos observamos dois impactos diretos na prática profissional: necessidade de um maior grau de detalhamento e especificação técnica no projeto, observando o desempenho mínimo desejado para as partes da edificação (caderno de encargos); e um maior domínio da tecnologia no projeto de arquitetura.
Por exemplo, para atendermos ao desempenho acústico mínimo de lajes entrepisos observando o ruído de impacto, teremos de prever nos projetos lajes flutuantes. É prática bem diferente da maioria das soluções implementadas nas superfícies horizontais de edifícios em altura na atualidade. Alguns conceitos e variáveis de desempenho passam a ser de domínio obrigatório na definição de elementos de arquitetura. Transmitância térmica de paredes e coberturas, capacidade térmica de paredes (desempenho térmico), diferença padronizada de nível ponderado (desempenho acústico) entre ambientes, entre muitas outras variáveis, são pressupostos básicos na escolha de paredes e coberturas de edifícios residenciais por exemplo.
O Manual do usuário com informações de garantias e manutenção, por exemplo, ilustra a transformação no que diz respeito à definição de direitos e deveres do projetista, do incorporador, do construtor e do usuário.
Embora os desafios no ensino e na prática de projeto no âmbito da dimensão funcional da tecnologia sejam muito novos e complexos, a abordagem estética da técnica deve ser fomentada no ambiente acadêmico com o intuito de valorizar uma prática projetual com um processo operativo mais abrangente, de melhor qualidade conceitual no projeto de arquitetura.
Regulamentos de eficiência energética
Os regulamentos de eficiência energética para edifícios comerciais, de serviços, públicos e residenciais são recentes, publicados em 2009 (RTQ-C) e 2010 (RTQ-R). O RTQ-C, regulamento para edifícios comerciais, de serviços e públicos, passou a ser obrigatório para edifícios públicos federais em agosto de 2014. Ou seja a partir dessa data, para prédios novos ou em processos de retrofit, é necessária a etiquetagem da edificação, e esta deve atingir o Nível “A”, ou a faixa mais alta de eficiência energética. Para as demais edificações comerciais, de serviços e públicas em nível estadual e municipal o regulamento ainda é voluntário. No caso do RTQ-R, destinado a edifícios residenciais, o regulamento é ainda em caráter voluntário. Ambos os regulamentos definem as condições para a classificação do nível de eficiência energética das edificações. Projetar edifícios eficientes requer um cuidado muito especial com a envoltória, incluindo aí os fechamentos opacos, transparentes e sistemas de proteção solar, como também com a eficiência de sistemas (aquecimento e refrigeração, aquecimento de água, iluminação, como também vinculados à racionalização do consumo de água e geração de energias renováveis). Nos itens a seguir apresenta-se os regulamentos como também discorre-se sobre o impacto no desenvolvimento e gestão do projeto arquitetônico.
Edifícios comerciais, de serviços e públicos
O RTQ-C (8) (Regulamento Técnico para a Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos), conforme já caracterizado, apresenta as condições de avaliação do nível de eficiência energética de edifícios comerciais, de serviços e públicos. Possui dois métodos de avaliação: o prescritivo e o de simulação. O método de simulação computacional é complexo, e executado por profissionais com larga experiência em modelagem energética. É desenvolvido a partir da comparação dos resultados da simulação computacional de um edifício real com a simulação de 4 edifícios de referência com características específicas para níveis de eficiência “A”, “B”, “C” e “D”. Numa simulação computacional de eficiência energética recriamos o edifício de forma simplificada em um software de simulação termoenergética, configurando as condições de uso, os sistemas de ar condicionado, iluminação e outros existentes, o envelope, e definimos um clima externo. Com base no balanço térmico da edificação verificamos o seu consumo energético. Fazemos o mesmo procedimento para 4 edifícios com a mesma volumetria, porém, com características diferenciadas com relação ao percentual de aberturas na janelas, presença de sistema de proteção solar, desempenho dos sistemas de iluminação e ar condicionado, como também características específicas do envelope construído.
O método prescritivo é mais simplificado, definido com base na avaliação do nível de eficiência geral da edificação, observando 30% de peso para o nível de eficiência energética da envoltória, 30% para o sistema de iluminação e 40% para o sistema de ar condicionado. Para a envoltória a avaliação é realizada a partir de uma equação que considera o percentual de fechamentos transparentes, a presença de proteção solar, a relação entre a área de envoltória e o volume do edifício, como também a área da projeção do edifício e a área construída total. Nessa avaliação são pré-requisitos específicos a transmitância e absortância térmica das paredes e cobertura. Nesse sentido, a presença de sistema de proteção solar, ou o próprio auto-sombreamento do edifício, a compacidade, a cor e o isolamento térmico das paredes e coberturas, são fundamentais na obtenção de uma envoltória eficiente energeticamente.
O sistema de iluminação artificial é avaliado com base na observação da densidade de potência de iluminação (DPI – W/m2) do edifício, ou de partes do edifício. Além da DPI outros pré-requisitos específicos são fundamentais na avaliação tais como: o aproveitamento da iluminação natural, o controle de presença e setorização do acionamento do sistema de iluminação. No caso do aproveitamento da iluminação natural (lateral), o regulamento considera a presença da radiação solar (difusa e/ou direta) que entra pela janela criando zonas com maiores valores de iluminância (9) próximo das esquadrias ao longo do dia. O projeto elétrico deve prever o acionamento das fileiras de luminárias de forma independente observando o afastamento das janelas. No caso do controle de presença, para ambientes maiores que 200 m2, o compartimento deve possuir algum sistema que garanta que quando estiver vazio, estará com o sistema de iluminação artificial desligado. Sensores de presença com desligamento automático por exemplo garantem o desligamento. O terceiro pré-requisito específico é a setorização das luminárias para o acionamento do sistema de iluminação, limitando a área de acionamento de um interruptor e a necessidade do mesmo ser visível no ambiente.
A avaliação final é definida por um equivalente numérico de 1 a 5, indicando um nível de eficiência energética de “E” a “A”. Além disso é possível obter até 1 ponto com base na utilização de bonificação obtida a partir de estratégias de racionalização do consumo de água e de energia, e a utilização de energias renováveis.
No caso do RTQ-C, para obtermos um edifício eficiente não basta apenas termos uma arquitetura eficiente, entendendo nesse contexto a composição do edifício ou mais precisamente o envelope construído. A presença de sistemas de proteção solar, o isolamento da cobertura e das paredes, a utilização de vidros especiais e eficientes não é o bastante. É necessária também a eficiência dos sistemas que compõem o edifício como o de iluminação, aquecimento do ar e da água e de refrigeração. E é no contexto dos sistemas que existe uma necessidade de aprofundamento do conhecimento técnico dos arquitetos, e consequentemente o maior impacto do regulamento na prática profissional. Além disso, os pré-requisitos específicos dos sistemas de iluminação e ar condicionado exigem uma gestão do projeto a fim de evitar que mesmo que a envoltória, o sistema de iluminação e ar condicionado sejam eficientes, o nível final de eficiência energética do edifício seja reduzido. O arquiteto deve orientar os demais profissionais acerca de especificidades do regulamento que devem ser atendidas para termos um edifício eficiente.
Em ambos os métodos a etiqueta nacional de conservação de energia (ENCE) é fornecida por um organismo de inspeção de eficiência energética em edificações acreditado pelo INMETRO (10).
Edifícios residenciais
No caso de edifícios residenciais, o regulamento de eficiência energética é o RTQ-R (11) (Requisitos Técnicos do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Residenciais). O edifício residencial eficiente deve também, além de possuir uma envoltória eficiente, possuir sistemas eficientes, como por exemplo: aquecimento de água, ar condicionado e iluminação. No caso do RTQ-R a ENCE pode ser obtida para unidades habitacionais autônomas (UH) ou presentes em edifícios multifamiliares, como também no segundo caso, para áreas de uso comum transitória (salões de festa e saunas) e permanente (circulações e garagens). No caso de UH, tanto em edifícios em altura como em residências unifamiliares, a ENCE é determinada pela eficiência da envoltória da edificação e do sistema de aquecimento de água. O nível de eficiência energética da UH é caracterizado por um equivalente numérico de 1 a 5, que expressa um nível de eficiência energética que vai de “E” a “A”. Existem ainda bonificações que podem chegar a um ponto englobando ventilação e iluminação natural, uso racional de água, condicionamento artificial de ar, iluminação artificial, ventiladores de teto, refrigeradores e medição individualizada.
Como no caso do RTQ-C, o RTQ-R preconiza a eficiência da envoltória e dos sistemas que compõem o edifício residencial. Além dos sistemas de ar condicionado, aquecimento de água e iluminação artificial, o regulamento possibilita que estratégias de arquitetura bioclimática, como também eletrodomésticos eficientes sejam bonificados aumentando a avaliação do nível de eficiência energética da unidade habitacional. O arquiteto além de conceber a envoltória eficiente deve observar, e no caso especificar, sistemas e equipamentos a serem utilizados na unidade habitacional eficientes.
No caso das áreas de uso comum, a eficiência do sistema de iluminação, das bombas de recalque e dos elevadores determina a classificação da ENCE. Nesses casos a especificação de lâmpadas eficientes com elevado índice de fluxo luminoso por potência consumida (lm/W), bombas eficientes com selo PROCEL, e elevadores com baixo consumo e com boa classificação acordando com a norma alemã VDI 4707 são fundamentais para alcançar nível de eficiência energética “A”. A bonificação para as áreas de uso comum é caracterizada pela ventilação e iluminação natural e racionalização do consumo de água.
No caso das áreas de uso comum observa-se também, que a eficiência energética está atrelada à implementação de estratégias bioclimáticas (caso das bonificações) e eficiência de equipamentos (elevadores e bombas) e sistemas (iluminação).
A gestão dos projetos complementares: a prática profissional
Observando os novos desafios da norma de desempenho (para edifícios residenciais) e de eficiência energética (para edifícios residenciais, comerciais, de serviços e públicos), observa-se que o papel do arquiteto na gestão dos profissionais que atuam em projetos de infraestrutura da edificação é fundamental. Obviamente, os profissionais que atuam em toda a cadeia de desenvolvimento dos projetos de arquitetura e de infraestrutura devem atualizar-se, e conhecer o teor das normas e regulamentos, porém, é muito importante a gestão integrada dos projetos para que seja possível o projeto da envoltória, dos sistemas, e especificação dos equipamentos eficientes. Principalmente na especificação de equipamentos, o profissional arquiteto deve orientar o construtor/incorporador na aquisição. Um exemplo típico que ilustra essa necessidade é o caso da compra de sistemas de ar condicionado split. É muito comum encontrarmos equipamentos que fazem parte do PBE (Programa Brasileiro de Etiquetagem) com ENCE nível “C” e “D” com preços mais baixos no mercado. E na maioria dos casos o cliente/incorporador é responsável pela compra do equipamento. Um edifício comercial, de serviço ou público com os condicionadores de ar etiquetados pelo INMETRO com nível “C” ou “D” terá como nível de eficiência energética do sistema de condicionamento de ar nível “C” ou “D”. No caso de um projeto de um edifício público em nível federal, nas especificações do projeto teremos que definir o condicionador de ar nível “A”. Ou seja, o papel do arquiteto é fundamental, tanto na orientação para o cumprimento de pré-requisitos específicos da envoltória (transmitância, absortância e capacidade térmica dos diferentes elementos), iluminação (aproveitamento de iluminação lateral, controle de presença, setorização de luminárias), ar condicionado (isolamento de tubulações, coeficiente de desempenho dos aparelhos), aquecimento de água (dimensionamento do volume de água quente observando o RTQ-R), entre outros, como também na especificação de equipamentos (bombas de recalque, elevadores, refrigeradores, ventiladores de teto, entre outros) e sistemas (iluminação – lâmpadas, luminárias, reatores e sistema de dimerização).
Considerações finais
Neste artigo, procurou-se caracterizar os desafios do ensino e da prática de projeto de Arquitetura observando a dimensão tecnológica enfatizando, por um lado, a dimensão estética, por outro a dimensão funcional, ênfase deste artigo (12). O desafio da incorporação do novo repertório na prática e na gestão do projeto passa tanto pela formação dos futuros arquitetos e urbanistas, onde o fortalecimento da prática da abordagem interdisciplinar nos projetos pedagógicos dos cursos é fundamental, como também na atualização profissional e no fortalecimento do papel do arquiteto como gestor dos projetos de infraestrutura das edificações. O domínio da dimensão tecnológica é pressuposto básico para o desenvolvimento de projetos de edifícios com desempenho que atendam à nova norma NBR 15575 como também para o desenvolvimento de projetos eficientes com envoltória, equipamentos e sistemas eficientes acordando com os novos regulamentos de Eficiência Energética de Edificações.
notas
1
MAHFUZ, Edson da Cunha. Reflexões sobre a construção da forma pertinente. Arquitextos, São Paulo, ano 04, n. 045.02, Vitruvius, fev. 2004 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/04.045/606>.
2
Idem
3
MAHFUZ, Edson da Cunha. Ensaio sobre a razão compositiva: uma investigação sobre a natureza das relações entre as partes e o todo na composição arquitetônica. Belo Horizonte: UFV, 1995.
4
Corona Martinez define elementos de arquitetura como partes sólidas do edifício, que podem ser tocadas, como portas, janelas, sacada, telhado, entre muitas outras.
5
Edna Shaviv apresenta uma análise crítica dos edifícios certificados com selo LEED, identificando que a certificação ambiental não garante um edifício bioclimático, ou seja, adaptado ao contexto climático. SHAVIV, Edna. 371: Passive and Low Energy Architecture (PLEA) VS Green Architecture (LEED). In: PLEA 2008 – 25th Conference on Passive and Low Energy Architecture, Dublin, 22nd to 24th October 2008. Disponível em : <http://architecture.ucd.ie/Paul/PLEA2008/content/papers/oral/PLEA_FinalPaper_ref_371.pdf>. Consultado em 10 de Maio de 2015.
6
GRALA DA CUNHA, Eduardo. Discussão sobre o papel da tecnologia no processo de concepção arquitetônica contemporânea: o caso Norman Foster. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 118.00, Vitruvius, mar. 2010 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.118/3369>.
7
ABNT. ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE NORMAS TÉCNICAS. NBR 15575 - Desempenho. Rio de Janeiro: ABNT, 2013.
8
INMETRO. INSTITUTO NACIONAL DE METROLOGIA. RTQ-C. Regulamento Técnico para a Qualidade do Nível de Eficiência Energética de Edifícios Comerciais, de Serviços e Públicos. INMETRO, 2009.
9
Iluminância é caracterizada pela quantidade de fluxo luminoso disponível por unidade de área (lumens/m2). Digamos numa linguagem coloquial que a iluminância está relacionada com a claridade do ambiente.
10
INMETRO - Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia
11
Iluminância é caracterizada pela quantidade de fluxo luminoso disponível por unidade de área (lumens/m2). Digamos numa linguagem coloquial que a iluminância está relacionada com a claridade do ambiente.
12
Edna Shaviv apresenta uma análise crítica dos edifícios certificados com selo LEED, identificando que a certificação ambiental não garante um edifício bioclimático, ou seja, adaptado ao contexto climático. SHAVIV, Edna. 371: Passive and Low Energy Architecture (PLEA) VS Green Architecture (LEED). In: PLEA 2008 – 25th Conference on Passive and Low Energy Architecture, Dublin, 22nd to 24th October 2008. Disponível em : <http://architecture.ucd.ie/Paul/PLEA2008/content/papers/oral/PLEA_FinalPaper_ref_371.pdf.> Consultado em 10 de Maio de 2015.
sobre o autor
Eduardo Grala da Cunha possui graduação em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Pelotas (1994), especialização em Engenharia de Produção pela Universidade Católica de Pelotas (1995), Mestrado em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (1999), Doutorado em Arquitetura pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2005) e pós-doutorado (Universidade de Kassel, 2007/2008). É revisor dos Periódicos Ambiente Construído, Journal of Civil Engineering and Architecture, Oculum Ensaios, Arquitextos, Revista Brasileira de Ciências Ambientais, Revista de Arquitetura Imed, e Tecnologia e Sociedade. Atualmente é professor Adjunto da Universidade Federal de Pelotas e Pesquisador com Bolsa Produtividade CNPq.