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architexts ISSN 1809-6298

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Artigo trata da modernização da zona portuária como eixo da transformação da Cidade do Rio de Janeiro que se realizou, em sua plenitude, no início do século 20 com a reforma implementada pelo engenheiro e prefeito interventor Pereira Passos.


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REIS, Paulo Cesar dos. O porto do Rio de Janeiro no contexto das reformas urbanas de fin du siècle (1850-1906). Arquitextos, São Paulo, ano 17, n. 196.00, Vitruvius, set. 2016 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/17.196/6219>.

“Raras vezes a creação de uma cidade é resultado de causas fortuitas. Quer tenha sido rapida, quer lentamente desenvolvido, o grande centro de população é quasi sempre consequencia de circumstancias locaes favoraveis ao commercio, à industria, ou a uma e outra conjuntamente...”
Luiz Raphael Vieira Souto

Carregando um navio com café no Rio de Janeiro, gravura de Herbert Huntington Smith
Imagem divulgação [Imagem Arquivo Nacional / www.exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br]

Início este artigo com uma indagação: que tipo de cidade queremos para os próximos anos, tendo em vista o processo histórico de constituição física, social, política, econômica e cultural do Rio de Janeiro. As questões que hoje movem os urbanistas, sociólogos, geógrafos, economistas e historiadores estão contidas no tipo de cidade que temos e nos meios para superação dos problemas que são recorrentes, como violência, mobilidade, educação, saúde, moradia, esgotamento sanitário, lazer, cultura etc. Diante destas questões faz-se necessário reflexões acerca do processo histórico de construção da Cidade Rio, entendê-la sob o ponto de vista de sua totalidade é essencial para o debate que se coloca hoje sobre a Cidade que temos e a Cidade que desejamos.

O porto e a cidade

A região portuária é de grande importância para as reflexões acerca da questão da Cidade do Rio de Janeiro e seu processo histórico de transformação/modernização (1850-1906). A cidade pensada, a partir da segunda metade do século 19, tem na região portuária sua maior preocupação que se revela no número de intervenções urbanísticas – o Bota Abaixo, reforma do Porto, estruturação das linhas de bonde etc.

Foi uma região de grande densidade populacional e igualmente densa em volume de mercadorias que transitavam por este Porto, principalmente a partir da produção cafeeira do Vale do Paraíba, que em 1831 ultrapassou a produção do complexo açucareiro nacional (1), representando assim 26% do total das exportações do Brasil.

O complexo cafeeiro mudou a Cidade do Rio de Janeiro, assim como o complexo açucareiro (1640-1690) e o complexo do ouro (1690-1790) igualmente mudaram a Cidade e sua gente (2). Seja do ponto de vista político com a transferência da capital de Salvador para a Cidade Rio (1763) ou do territorial com o adensamento da população que traz reformas urbanísticas importantes com os Vice-reis Marquês do Lavradio (1759-1779) e Conde de Figueiró (1779-1790). Este último responsável pela grande reforma da Cidade capitaneada por Mestre Valentim em 1787 (3).

A dita reforma de 1786/87 teve como foco a região central da Cidade. O construtor/arquiteto Mestre Valentim foi escolhido para chefiar esta reforma, que visou uma modernização da cidade Rio que consolidou-se como capital do Vice-reino do Brasil. Havia pelo menos três preocupações que moveram esta reforma: 1. adequação das casas e dos prédios públicos ao novo momento da cidade, 2. solucionar o problema crônico de abastecimento de água através de uma rede de chafarizes, e 3. embelezamento da cidade através, principalmente da construção do Passeio Público.

  1. A adequação das casas a nova proposta de cidade deu-se de maneira tímida, com poucas casas privadas construidas ou reformadas dentro deste ideal de arquitetura e sociedade. As construções públicas terão como referencia o estilo Neoclássico através, principalmente do Mestre Valentim que estabeleceu construções com referencial moderno europeu, contudo sem nunca ter ido a Europa. O Paradigma continua sendo o classicismo recheado de barroquismos próprios da socieade carioca que via a Europa de longe e com um olhar pouco crítico, limitando-se a cópia do modo de vida no velho continente.
  2. A Cidade Rio tinha um problema crônico de falta de água limpa para  consumo humano. Desde o estabelecimento do primeiro sítio em 1565 a escacez de água permeia a história desta cidade. Os chafarizes eram escassos e os aguadeiros dominavam um mercado lucrativo de água limpa/potável. A reforma de Mestre Valentim teve como ponto nevrálgico a cobertura de distribuição de fontes públicas de água por toda cidade. A principal fonte era a da Carioca, que através do aqueduto do mesmo nome trazia um volume grande de água do morro de Santa Tereza até o coração da cidade e de lá, por uma rede de encanamento chegava à Praça do Paço até o chafariz da piramide (Hoje Chafariz do Mestre Valentim).
  3. A questão do embelezamento da cidade envolveu mais do que a construção de belos monumentos arquitetônicos ou de jardins deslumbrantes, havia a questão da transformação urbanística da cidade que precisava superar o paradigma barroco ao incorporar todo o ideal Neoclassicista de cidade. O programa neoclássico não foi empregado em sua totalidade, neste momento, temos, de fato, algumas construções públicas e privadas que utilizarão o programa neoclassico, além do Passeio Público que foi o maior exemplo urbanistico deste estilo de cosntrução e organização da sociedade. Cabe lembrar que os ventos do iluminismo sopravam em Portugal e por conseguinte no Rio de Janeiro, há um pensamento modernizador correndo pela Cidade que se reflete um pouco nas construções deste período.  Cabe ainda frisar que o Mestre Valentim era perito no entalhe em madeira e no trabalho com ferro fundido, sendo autodidata em ambas as técnicas.

Com a chegada da Família Real Portuguesa em 1808 a Cidade Rio experimentou novos ventos no que pese a questão urbanística, deixando de ser uma cidade mercantil para ser a nova sede do Império Luso-brasileiro (4). Prédios públicos imponentes foram construídos, dezenas de ruas foram calçadas, novas freguesias foram criadas ou transformadas em urbanas, enfim a elite brasílica veio para a Cidade Rio e com ela uma Corte foi criada, para além da questão urbanística as festas foram cruciais para a constituição de uma nobiliarquia tropical (5). A região central e portuária foram as mais beneficiadas com esta nova política de melhoria urbana e arquitetônica da Cidade e o Paço dos Vice-reis, atual Paço Imperial foi a chave para a legitimação do poder da família bragança no Brasil. O Passeio Público também teve sua importância nesta cidade que se converteu em capital do Império Ultramarino Português.

Com o avançar dos anos a Cidade Rio foi se consolidando como capital e eixo econômico e cultural do Império Luso-brasileiro. Podemos identificar dois eixos de expansão da Cidade: a) São Cristóvão, Engenho Velho e Andaraí e b) Glória, Flamengo, Catete e Botafogo.

Jaime Larry Benchimol, em obra clássica sobre a temática, constatou que na segunda metade do século 19, o Porto do Rio de Janeiro já era um dos três mais importantes da América e o mais importante do Brasil (6). Assim sendo, não é por obra do acaso que a partir da década de 1840 houve um esforço por parte das autoridades políticas brasileiras em modernizar o Porto e, por conseguinte, a região do seu entorno, entendida como eixo dinâmico de expansão da Cidade e do Império.

Desde, pelo menos, a chegada da Família Real Portuguesa os Negociantes de Grosso Trato (7) estabeleceram-se na praça mercantil do Rio de Janeiro, exercendo o controle do transporte de cabotagem, consolidando as ligações da Cidade Rio com as praças/portos da região sul e da região norte em um sistema agregador destes espaços. Soma-se ainda as tropas de mulas vindas de São Paulo, Mato Grosso, Goiás e Minas Gerais que fazem do Porto do Rio o ponto de maior confluência de produtos do Império Português e portanto um importante espaço de legitimação do projeto de modernização conservadora do Império Brasileiro (8).

Cumpre exaltar que neste período há um processo de modernização da economia brasileira, consoante ao movimento mundial do capitalismo no que se convencionou chamar de 2ª Revolução Industrial. Podemos sintetizar esta modernização conservadora pela aprovação do Código Comercial de 1850 e a criação do segundo Banco do Brasil em 1853, tendo o empresário Irineu Evangelista (Barão de Mauá) como principal articulador do novo Banco e um dos grandes partícipes da construção do Código Comercial, junto com o ministro da Justiça Eusébio de Queirós. Cabe ainda ressaltar a Lei que impôs o fim ao trato negreiro em 1850, cujo autor é o mesmo Eusébio de Queirós. Com esta lei abriu-se o caminho para a modernização da matriz de trabalho brasileira, pari passo com o processo de transformações do modo de produção capitalista industrial em curso nas regiões mais dinâmicas economicamente (Inglaterra, França, EUA etc).

Com o fim do tráfico negreiro e a regulação comercial uma parte considerável do capital mercantil foi liberada para outras finalidades (9), como investimento em infraestrutura (logística para a produção e transporte do café), crédito para a produção agrícola, fomento de novas indústrias etc. A Lei de Terras de 1850 também contribuiu para esta segurança jurídica do complexo produtivo brasileiro, garantindo o fluxo de crédito para a expansão da produção cafeeira através de instituições bancárias nacionais e internacionais, principalmente inglesas (10). É neste período que ocorre o inicio da política de migração europeia com vistas a substituuição dos braços para a lavoura de café e para os setores de serviço e da industria nascente, principalmente nas cidade Rio e Santos.

Nas décadas de 1850 e 1860 a tônica será a modernização urbana da Cidade Rio, com ênfase na região mais dinâmica economicamente: a zona central e portuária. Contudo, somente a partir de 1871, os primeiros resultados dos debates acerca da modernização da zona portuária saíram do papel com o lançamento da pedra fundamental do Armazém Docas D. Pedro II. Seguidamente, temos a instalação da Comissão de Melhoramentos em 1874 (11), que veio atender a demanda por obras de modernização/adequação da cidade ao novo momento que se abriu. Havia capital e havia pessoas qualificadas para pensar a cidade, neste contexto de modernização.

Esta comissão foi formada sob os auspícios do ideal de higienização e limpeza das cidades, em conformação com o discurso europeu de cidade asséptica, racional, organizada, bonita, funcional e utópica (Hausmann). Esta visão segundo Lucia Silva (12), foi reforçada pelo discurso dos médicos que atuavam na cidade Rio. Estes médicos atribuíam ao clima úmido a proliferação de diversas doenças. Para o bom combate as pestilências as autoridades deveriam abrir a cidade para os bons ares, isto é, “arrasando” os morros do entorno da malha urbana da cidade, abertura de ruas largas e construção de casas mais arejadas (13). Este discurso é confirmado no Relatório da Junta de Higiene para melhoramentos sanitários de 1878. Cabe ainda salientar que o primeiro código de postura da cidade foi aprovado pela Câmara Municipal do Rio em 1830 (14), isto é, o discurso higienista, pela ordenação, limpeza da cidade está presente há décadas, contudo ganhou força a partir dos anos de 1870.

A cidade e o café: notas expressas

Havia um clima para 'modernizações' em todos os sentidos, incluindo as mudanças no campo urbanístico e logístico, que não previa apenas obras para o embelezamento e limpeza da cidade. Havia toda uma concepção de utilização racional dos espaços para incremento da economia, basilada então no complexo cafeeiro do Vale do Paraíba, que não viu uma modernização das técnicas produtivas (15), contudo a logística de transporte e acondicionamento foram amplamente modificados e melhorados dentro das concepções tanto da Comissão de Melhoramentos quanto da Junta de Higiene, que em conformação, formularam um verdadeiro Plano Urbanístico (16).

Estas modificações ou modernizações contribuíram diretamente na cadeia produtiva do café, resultando em mais rapidez, mais qualidade e mais lucratividade do produto da origem ao consumidor final. O galpão construído por André Rebouças para a Companhia Docas D. Pedro II, é revelador destas novas técnicas de armazenagem importadas da Inglaterra. Até a inauguração deste galpão as mercadorias ficavam espalhadas pelas ruas da região portuária ou em pequenos galpões. Relatos de época apontam para grandes disperdícios de mercadorias que ficavam expostas as intempéries, atraíndo insetos e pequenos animais ditos pestilentos como ratos e morcegos (17).

A construção da malha ferroviária, ligando a região cafeicultora do Vale do Paraíba ao Porto foi outro fator importante. Chegou-se a construir uma estação de integração entre a ferrovia e o Porto, dita Estação da Gamboa, hoje abriga parte da Vila Olímpica da Gamboa, com aproveitamento de parte do prédio da estação que foi restaurado e requalificado.

Estação Marítima da Gamboa
Imagem divulgação [Website Associação Ferroviária Trilhos do Rio / www.trilhosdorio.com.br]

Estação Marítima da Gamboa
Imagem divulgação [Website Centro Oeste Brasil / http://vfco.brazilia.jor.br>]

Cabe frisar que cerca de 20% da mão-de-obra escrava do complexo cafeeiro, era comprometida com o transporte realizado por mulas que atravessavam o Vale do Paraíba em direção a Baixada Fluminense tendo, entre outras paragens Iguaçu, que era um importante empório e entreposto comercial. Com o advento da ferrovia (1850/1860), este contingente de trabalhadores pôde ser deslocado para a atividade-fim do complexo cafeeiro: a lavoura. Já Iguaçu entrou em decadência, pois já não havia mais os tropeiros e com sua ausência o comércio minguou, principalmente a venda de produtos de subsistência produzidos nos arredores de Iguaçu.

A Cidade do Rio de Janeiro passou a se estruturar a partir do café, na adequação/modernização da região portuária e central, além da ampliação dos bairros nobres como Botafogo que abrigou dezenas de palacetes neoclássicos e ecléticos dos barões do café. A nobiliarquia brasileira morava na capital, assim como os grandes empresários que construíam casas suntuosas nas franjas do poder.

As questões como habitação, trabalho, produção, administração pública, cultura, lazer são colocadas à luz de um novo momento que se abre para o Rio de Janeiro, uma 'janela de oportunidades' cujos pilotos do processo de modernização da cidade são, em essência, engenheiros e médicos.

Corroborou com este clima uma série de intelectuais que refletiram sobre este momento a partir do papel que a Cidade Rio-capital já exercia no contexto nacional, integrando as regiões. No contexto internacional, como porto de recepção e distribuição de mercadorias nacionais e estrangeiras, portanto era preciso ampliar e modernizar o processo mediante a escala produtiva do novo momento do capitalismo internacional.

Sérgio Lamarão resume bem a questão da dinâmica econômica do Rio de Janeiro deste momento:

“Centro exportador e importador, o Rio torna-se também ponto quase obrigatório de transferências e trânsito de mercadorias européias e norte-americanas, alimentando um ativo comércio de cabotagem” (18).

Considero o engenheiro André Rebouças um destes intelectuais. Ele pensou de maneira integrada o processo produtivo e a logística de transporte desta produção, a partir de um sistema complexo que envolvia ferrovias e portos que se voltavam para o Porto do Rio de Janeiro. Rebouças, dentre vários trabalhos realizados, foi o responsável pela concepção e construção do armazém Docas D. Pedro II (19), que seguiu o modelo inglês dos armazéns das Docas Príncipe Albert construído em 1846, a qual conheceu in loquo em viagem realizada a Londres.

O edifício era constituído de dois pavimentos, linhas simétricas que remetiam ao classicismo da época, pé direito elevado, janelas largas para manter o espaço arejado, os pavimentos tinham destinação diferenciada de tipos de mercadorias. A fachada foi construída com tijolo maciço de alta resistência, os frontões românicos se harmonizam com a simetria e a geometrização da fachada em uma referência a arquitetura vitoriana.

Docas D. Pedro II inaugurada em 1850
Imagem divulgação [Blog do Rio antigo]

Docas Príncipe Albert inaugurada em 1846
Foto Emijrp [Wikimedia Commons]

Este modelo foi o precursor de um processo de modernização que envolveu a construção de galpões grandes e arejados rentes ao mar e com um atracadouro horizontal, que permitia a chegada de embarcações de grande calado. Foi realizado também, o rebaixamento do calado do mar e criou-se um sistema de guindastes movidos à vapor que substituíram o moroso processo de carga e descarga através de chatas e saveiros (20).

Como já mencionado anteriormente, o sistema férreo foi integrado ao Porto para facilitar o grande fluxo de mercadorias, assim como todo o complexo de estaleiros (21) foi modernizado para atender a demanda crescente, na fabricação de embarcações ou na manutenção das naves que aportavam. Neste período (1850-1890) chegou-se a marca de 3 mil naves ao ano adentrando o Porto do Rio, consolidando-o como o principal porto brasileiro (22). Assim sendo, o complexo portuário não dava mais conta do volume de mercadoria, precisando de uma intervenção modernizadora que alavanca-se o processo de transporte, armazenagem, atracagem de naves maiores, carregamento das mercadorias, desburocratização para o despacho, enfim toda dinâmica do Porto precisava ser modernizada. O mundo estava acelerando, na medida em que a economia ganhava uma escala jamais vista.

Além de Rebouças, cabe destaque para a Comissão de Melhoramentos da Cidade instalada em 1874. Esta comissão propôs uma reforma urbanística a partir do bairro Cidade Nova, tendo como base o Canal do Mangue, foco de diversos tipos de pestilências e via de integração dos importantes bairros de São Cristóvão, Engenho Velho e Andaraí, e da região portuária, que contava com uma população proletária crescente e excluída. O Plano Urbanístico que resultou do trabalho desta comissão previa o crescimento da cidade a partir de três grandes áreas: 1) Região Central e Portuária, 2) São Cristóvão, Andaraí e Engenho Velho, 3) Glória, Catete, Botafogo e Flamengo.

Na década de 1870, o complexo cafeeiro já ultrapassava 50% das exportações brasileiras, concomitantemente foi inaugurada uma linha permanente de paquetes à vapor que fazia o trajeto Londres-Rio de Janeiro. Mais do que a pontualidade, quase britânica, que os navios à vapor promoveram ao transporte, esta 'nova' forma de geração de energia foi essencial em uma conjuntura de escassez de mão de obra negra escravizada no Rio de Janeiro, lembrando que além da cessação do trato africano em 1850, no ano de 1871 instituiu-se a Lei do Ventre Livre. Os braços dos africanos, em essência, foram deslocados para a produção cafeeira devido ao fim do tráfico negreiro e do real término da escravidão africana reforçada pela Lei do Ventre Livre, um processo inexorável em um mundo capitalista em desenvolvimento.

Portanto, era preciso adequar à nova realidade que se abrira em um Brasil capitalista e com uma matriz de trabalho livre. Este processo de libertação gradual dos africanos abriu uma questão importante, o fluxo de libertos para a Cidade Rio, mais precisamente, para a região portuária aumentava exponencialmente ano a ano. Redundando em uma concentração paulatina de negros/pobres nesta região que adensou sua população rapidamente e de maneira desordenada a margem de qualquer tipo de estrutura habitacional digna.

Já sobre o ponto de vista tecnológico a energia à vapor consolidou, assim, a necessidade premente de modernização do processo de transporte de mercadorias que não cabia a penas ao Porto e sim a toda logística que envolvia este processo: estrada de ferro, galpões, maquinário, indústria naval etc. Logística esta, essencialmente movida pelos braços de trabalhadores livres e assalariados.

Já na virada do século 20 a energia elétrica provocou outro salto em termo de desenvolvimento da região com a adoção da rede de bondes que consolidou os vetores da expansão da cidade, além dos guindastes elétricos. Neste momento o Rio de Janeiro não é mais a cidade do café, passa ser a cidade da indústria têxtil por excelência, destacadamente a Fábrica Bangu é o grande exemplo deste processo que contou com todo o aparato logístico do Porto que vem sendo modernizado desde 1870 e teve seu ápice durante o governo de Pereira Passos com a reforma de 1906 que transformou por completo o Porto e a Cidade.

Projeto de melhoramento do porto do Rio de Janeiro, armazéns de exportação tipo A, Rio de Janeiro, 1863. Ministério da Viação e Obras Públicas
Imagem divulgação [Arquivo Nacional / www.exposicoesvirtuais.arquivonacional.gov.br]

notas

1
Cabe lembrar que o Rio de Janeiro possuía uma quantidade significativa de engenhos açucareiros, chegando a 3 posição na produção nacional, perdendo apenas para Pernambuco e Bahia.

2
As três conjunturas apresentadas retratam três momentos distintos da Cidade Rio. 1. Complexo açucareiro, em relação a estruturação física da cidade e do seu entorno (Baixada da Guanabara ou Recôncavo da Guanabara – atualmente Região Metropolitana), 2. Complexo do Ouro das Minas Gerais, torna a cidade mais densa populacionalmente, mais rica economicamente e mais complexa urbanisticamente, pois o ouro é escoado para Europa, via Cidade do Rio através do Caminho Novo. 3. O Café sedimenta e amplia a importância da Cidade Rio enquanto eixo logístico e econômico do Brasil.

3
Cf. CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da corte. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2004.

4
Idem, ibidem.

5
Jurandir Malerba trabalhou com a questão das festas, comemorações como meio de legitimação do poder da família real portuguesa. Os laços de identidade com a elite brasileira foram seladas a partir destes festejos que faziam parte do calendário religioso. Carros alegóricos, pórticos, procissões, festas, bailes, entre diversas outras formas de comemorações foram cruciais para a aproximação da família bragança com os melhores da terra (comerciantes, fazendeiros e funcionários régios). Logo uma multidão de possoas se deslocaram das principais cidades do Brasil para o Rio de Janeiro, novas casas e novos bairros surgiram, assim como novas necessidades urbanísticas foram colocadas. Cf. MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808 à 1821). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000.

6
Cabe frisar que a importância do Porto do Rio de Janeiro dar-se-á a partir da conjuntura da ruptura de Portugal do Império Espanhol (1640-1650) constituindo-se assim no eixo logístico do Brasil. Cf. FRANÇA, Eduardo D’Oliveira. Portugal na época da Restauração. São Paulo, Hucitec, 1997; BOXER, Charles R. O império marítimo português (1415-1825). Tradução Anna Olga de Barros Barreto. São Paulo, Companhia das Letras, 2002.

7
Negociantes de Grosso Trato. Terminologia de época, para designar os comerciantes atacadistas, isto é, que negociavam com todo tipo de mercadoria. Cf. FRAGOSO, João L. R. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na Praça Mercantil do Rio de Janeiro (1790-1830). 2a edição revisada. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1992.

8
O conceito “modernização conservadora” de Berrington Moore Jr. é utilizado aqui para justificar a política de modernização econômica, social, cultural e urbanística da Cidade do Rio de Janeiro que foi colocada como paradigma de cidade 'moderna' brasileira. O esforço do Imperador em 'modernizar' o Brasil teve como síntese a Cidade Rio, isto é, o grande espelho do Brasil para a Europa. O Rio foi um misto de Paris e Londres. Contudo esta modernização não significou mudanças na esfera do exercício político, por este motivo conservadora no sentido de conservação do status quo ante da política.

9
Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Tradução Jussara Simões. Bauru, Edusc, 2001.

10
Com o registro de propriedade fundiária os agricultores passaram a ter condições legais para contrair empréstimos a partir de um sistema de hipoteca, cuja garantia era a terra e suas benfeitorias.

11
Fizeram parte desta Comissão de Melhoramentos os engenheiros Jerônimo Rodrigues de Moraes Jardim, Marcelino Ramos da Silva e Francisco Pereira Passos.

12
SILVA, Lucia. Memórias do urbanismo na cidade do Rio de Janeiro (1778-1878): Estado, administração e práticas de poder. Rio de Janeiro, E-Papers/Faperj, 2012.

13
A Companhia Evoneas Fluminense foi uma das responsáveis pela concepção de casas populares que atendessem as recomendações sanitárias, pois a Cidade Rio era conhecida como tumbeiro pelo número de doentes e pelo cheiro fétido de suas ruas. Cabe ainda citar que o código de postura da cidade foi aprovado em 1830, contudo foi de difícil execução.

14
Neste mesmo ano foi aprovado o Código Penal brasileiro, importante agente regulador dos hábitos, da cultura e dos costumes sociais. É bastante claro que estas leis tiveram um propósito disciplinador para a sociedade brasileira. 

15
As técnicas de plantio, cuidado, colheita e beneficiamento dos grãos são mantidos, assim como o trabalho escravo.

16
Lucia Silva traz esta discussão ao colocar que tanto o relatório da Comissão de Melhoramentos quanto o relatório produzido pela Junta de Higiene, previam, em conjunto, uma série de modificações urbanisticas nas regiões portuária e central da cidade, além de apontarem os possíveis vetores de crescimento da cidade. Cf. SILVA, Lucia. Op. cit., p. 131-151.

17
Cf. LAMARÃO. Sérgio T. N. Dos trapiches ao porto: um estudo sobre a área portuária do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 2006.

18
Idem, ibidem, p. 55.

19
Inaugurado em 1871, foi o primeiro armazém do Porto construído para guardar grãos, principalmente de café. Obra realizada totalmente com trabalho livre, algo raro para época.  Localizado enfrente ao cais do Valongo hoje abriga o Comitê Ação da Cidadania. Fonte Site do Porto maravilha <http://portomaravilha.com.br/materias/armazem-docas-pedro/a-d-p.aspx>.

20
As chatas, saveiros e outras embarcações de pequeno porte atracavam ao lado dos grandes navios de carga para efetuar o traslado de mercadorias e passageiros, seja para  embarque ou desembarque. Os trapiches do porto do Rio de Janeiro não permitiam que os navios de grande porte atracassem devido ao calado (profundidade).

21
Cabe frisar que neste período (1864-1870) o Brasil se envolveu em uma contenda militar contra o Paraguai. Uma das consequências desta guerra foi a modernização da marinha de guerra brasileira e da logística. Novos barcos à vapor foram construídos sob encomenda aos estaleiros brasileiros, principalmente do Rio de Janeiro e de cidades próximas como Niterói. Houve uma modernização radical no fabrico de navios de grande porte, para combate ou para transporte.

22
Cf. BENCHIMOL, Jaime Larry. Pereira Passo: um Hausmann tropical. Rio de Janeiro, Biblioteca Carioca, 1992.

sobre o autor

Paulo Cesar dos Reis é doutorando do Instituto de Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional/UFRJ. Professor do Curso de Arquitetura da Universidade Estácio de Sá. Membro do Laboratório Observatório de Estudos sobre o Rio de Janeiro – FND/UFRJ.

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