Introdução
A obra da arquiteta mineira Freusa Zechmeister é constituída de um vasto e múltiplo repertório formal, desde edificações comerciais que ser tornaram referência na cidade de Belo Horizonte a peças de design derivadas de seus projetos arquitetônicos.
A régua em que se mede esta trajetória profissional não considera escala e metros quadrados, considera a significância da produção arquitetônica inserida em seu contexto. Motivado por este princípio, escolhemos um dos menores projetos comerciais da arquiteta, precisamente 260m2 de área construída, como objeto de estudo à luz da Teoria de Projeto. A Casa Bonomi, pequena panificadora belo-horizontina, projetada em 1995 e construída no ano seguinte, é testemunho do tempo deste entendimento.
A motivação da pesquisa se valida tendo em vista o rarefeito conteúdo historiográfico a respeito de Freusa Zechmeister frente ao protagonismo de sua obra no cenário arquitetônico nacional, bem como cumpre a função de destacar os 20 anos do feitio de seu projeto arquitetônico.
A teoria do restauro de Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc (1814-1879), ao estabelecer o verbete restauração e fundamentar as teorias de restauro modernas, parece-nos a mais adequada como fio condutor teórico nesta análise de composição projetiva que envolveu a reforma de conversão da residência unifamiliar em estilo eclético na Padaria Casa Bonomi. O produto final de projeto não considerou, em primeira instância, fundamentação nas teorias de restauro, entretanto pautou os princípios inventivos em uma ampla reforma predial vislumbrando a retomada da temporalidade da antiga edificação que, nesta oportunidade, trataremos por restauro.
“A palavra e o assunto são modernos. Restaurar um edifício não é mantê-lo, repará-lo ou refazê-lo, é restabelecê-lo em um estado completo que pode não ter existido nunca em um dado momento” (1).
Metodologicamente, construímos este artigo por meio de quatro frentes: entrevistas, levantamentos fotográficos, visitas ao local e catalogação de material técnico disponibilizado. As entrevistas foram realizadas com os arquitetos chefes colaboradores do projeto, Luciana Czechmeister e José Nilton Rodrigues, bem como junto à autora do projeto. As visitas ao local permitiram a verificação de sua dinâmica de funcionamento, bem como tornou latente a peculiaridade do local frente ao contexto urbano no qual se insere. Por fim, o arquivo profissional do escritório, até então restrito e não publicado, foi-nos disponibilizado com vistas a alcançar os intentos desta investigação.
Para entendermos o sentido do tempo nesta edificação é preciso delinear o verbete “atemporalidade” e, para tanto, recorreremos ao dicionário Aurélio que assim o define: Que não é afetado pelo tempo ou que o transcende. Parece-nos adequado tal entendimento, paralelo ao sentido de perenidade.
Busca-se, nesta oportunidade, o entendimento de quais elementos garantiram a perenidade da edificação de 1925 ao longo das estilísticas arquitetônicas e ao longo do processo de crescente urbanização e transformação da região central de Belo Horizonte. Por que, frente à lógica imobiliária contemporânea, delineadora do perfil de nossas cidades, esta edificação consolida-se, cada vez mais, como uma referência na cidade?
A feição interiorana da jovem capital mineira, inaugurada em 1897, construída sob a escolástica arquitetônica do ecletismo reinventa-se como uma das maiores metrópoles do país. Esse acelerado processo pode ser percebido vivamente na Avenida Afonso Pena, artéria central que costura toda a região, em cujo percurso é revelado o palimpsesto dos estilos arquitetônicos: do ecletismo, passando pelo Art Nouveau, Art Deco, Proto-modernismo, Modernismo e Arquitetura Contemporânea.
Raras são as edificações de caráter histórico que fizeram a travessia do tempo, mais raras ainda aquelas que se encontram íntegras e vívidas na dinâmica da moderna metrópole, assim como a Casa Bonomi.
Do contexto histórico urbano
Às vésperas de completar duas décadas de existência, a Casa Bonomi é referência gastronômica e arquitetônica na capital de Minas Gerais. Localizada na espinha dorsal da cidade, a Avenida Afonso Pena, a pequena edificação de estilo eclético vence o tempo e a especulação imobiliária do contexto urbano no qual se insere através da conjugação de suas atribuições comerciais e pelo fato de ser, atualmente, reconhecida como patrimônio local.
O passeio arquitetônico pelo trajeto da Avenida Afonso Pena revela-nos, provavelmente, a maior variedade de tipologias arquitetônicas no estado de Minas Gerais. Do estilo eclético destacam-se o Edifício Automóvel Clube, o Conservatório de Música e o conjunto rarefeito do casario na região de transição entre o centro e os bairros nobres em cota altimétrica mais elevada; o Art Deco, expressão institucional por meio da Prefeitura Municipal, dos arquitetos Luiz Signorelli e Raffaello Berti e o Cine Theatro Brasil, do arquiteto Alberto Murgel; o Proto-modernismo vanguardista do Edifício Sulacap, do arquiteto italiano Roberto Capelo; o modernismo do Palácio das Artes, cujo projeto original atribui-se a Oscar Niemeyer e a produção arquitetônica contemporânea nos edifícios comerciais que absorveram terrenos desocupados que, em maior escala, fadaram a demolição do casario original.
Um breve panorama histórico da macrorregião comercial da Savassi nos conduz aos anos 40, quando o então bairro Funcionários foi reduto residencial do alto funcionalismo advindo da antiga capital Ouro Preto. Na Praça Diogo de Vasconcelos, ponto convergente do bairro, instalou-se a Padaria e Confeitaria Savassi, cujo proprietário Almicare Savassi, padeiro italiano, anos mais tarde cede o sobrenome para designar a região comercial
Notamos, neste instante, que a gênese da região advém de vocação comercial assim como deriva, intrinsecamente, da atividade panificadora por lá estabelecida. A Padaria encerrou suas atividades no bairro em 1977, quando a família vende o terreno e se transfere para outro local. Entretanto, até hoje os bairros Santo Antônio, São Pedro, Serra, Funcionários, Boa Viagem, Lourdes e Serra são tratados pelo sobrenome do senhor Almicare e sua lendária padaria.
O projeto urbanístico do engenheiro e urbanista Aarão Reis para a nova capital de Minas Gerais, inaugurada em 1897, sobrepôs transversalmente duas malhas quadrangulares, a de menor escala destinou-se a receber as vias secundárias e a maior, cruzando a outra, cumpriu a função de gerar deslocamentos mais rápidos por meio das vias arteriais e principais.
A pequena edificação residencial da Casa Bonomi, localizada em um terreno triangular conformado pelas Avenidas Afonso Pena e Rua Cláudio Manuel (sem saída), está implantada em uma destas praças informais. As árvores, a rua sem saída, os bancos, e porque não o mineiro corroboram juntos com a atmosfera pacata, à margem da grande cidade ao redor, criada no bordo de entrada do terreno da edificação.
A Casa Bonomi localiza-se no limiar da região compreendida como Savassi, em uma zona de ocupação original residencial que, progressivamente, transformou-se em uma zona mista, abrigando residências e comercio. A Lei de Uso e Ocupação do Solo vigente à época do projeto (LUOS/85) estabeleceu um zoneamento baseado nos usos e, ao classificar o quarteirão da antiga edificação eclética como Zona Central 05 – ZC 05, potencializou a conversão do imóvel residencial em uso comercial.
De uma maneira geral, o zoneamento proposto fundamentou-se em maiores permissividades de ocupação e utilização do solo em toda a área central, decrescendo essa potencialidade no sentido centrífugo a esta área. Ou seja, à medida que se afasta da área central, tem-se potenciais construtivos menores (2).
A interpretação dos condicionantes legais em vigor permite-nos concluir que a vocação comercial da Avenida Afonso Pena, em sua função precípua, foi reforçada por meio do zoneamento eminentemente comercial estabelecido. Todo o percurso se conforma e homogeneíza-se como um grande corredor comercial, desconsiderando, desta forma, peculiaridades locais, como locais de interesse patrimonial. Nesse sentido ocorre uma despersonalização dos terrenos da avenida, ou seja, todos são pautados sobre os mesmos princípios legais do município, a parte de caráter intrínseco passível de salvaguardas. Os demais quarteirões lindeiros constituem uma gradação para o interior dos bairros, cuja vocação residencial torna-se mais evidente, ou, ao menos, mescla-se com os usos comerciais ou especiais a medida que se interioriza o percurso, como podemos observar no zoneamento de 1985.
O perfil horizontal das residências, sobretudo as ecléticas originais, cedeu lugar à especulação imobiliária por meio dos edifícios em altura, seja em uso comercial, seja residencial. A linha do horizonte não possui regularidade, perfilam-se parcas edificações térreas e edifícios comerciais não raro com mais de vinte andares.
Denomina-se Praça Benjamim Guimarães o cruzamento das Avenidas Afonso Pena e Getúlio Vargas, outra importante artéria viária na zona. Materialmente, o espaço praça não se consolida em uma unidade, na medida em que parte do princípio do fracionamento, por vias urbanas de um espaço. Esta situação tem como resultante três praças menores, que trataremos por praças residuais, implantadas no fim dos quarteirões fechados correspondentes. Fato é que das três praças residuais apenas a praça da Padaria Bonomi reveste-se do caráter de praça em conceitos urbanísticos tradicionais no que diz respeito ao uso. Ou seja, ela permite o estar urbano, o local de encontro, um ponto nodal na malha. Em uma dialética de usos verifica-se, portanto, que há uma simbiose entre praça, enquanto elemento urbano, e edifício; mutuamente um reforça, potencializa e justifica o outro no espaço citadino.
Aproximando a escala de análise no contexto do quarteirão, observamos que a morfologia triangular resultante se deriva da conformação das ruas Cláudio Manoel, Professor Mascarenhas de Moraes e Avenida Afonso Pena, que, por sua vez, reverbera no lote da Padaria Bonomi, acomodada em um dos estremos do vértice triangular. Curiosamente, o outro vértice do quarteirão, diametralmente oposto, também é ocupado por edificação eclética reminiscente do período eclético, entretanto, observamos que a mesma se encontra em situação de abandono e subuso, semelhante ao estado da Padaria na década de 1990.
Do projeto arquitetônico
A reconversão de uso de edificação residencial, no caso concreto em estilo eclético, para novo uso comercial não é tarefa projetiva simples, haja vista as limitações de espaço, condições estruturais por vezes comprometidas ou restritivas, restrições de afastamentos laterais, além das adaptações das disciplinas complementares como de elétrica e hidráulica, por exemplo. Ao considerarmos o juízo estético, na seara da arquitetura propriamente, verificamos que se faz necessária uma delicada congruência entre a edificação existente, representante da linguagem de uma época e de um uso, com a nova edificação reinterpretada. Por vezes essa simbiose fracassa resultado em edifícios híbridos cuja linguagem arquitetônica não encontra uma temporalidade precisa, algo como um hiato estilístico.
As questões da problemática arquitetônica da Padaria Bonomi originam-se a partir da necessidade de converter a pequena edificação de 1925, ausente de afastamentos laterais, em um estabelecimento comercial cujo programa é inteiramente alheio à conformação espacial. A edificação residencial térrea, abrigando porão e quintal, deveria converter-se em uma padaria sem absorver terrenos lindeiros já ocupados.
A situação do imóvel à época do projeto desconsiderava qualquer valor patrimonial específico, haja vista seu uso como depósito de uma loja de brinquedos situada ao lado do terreno. Pisos de madeira em avançado estado de decomposição, infiltrações e comprometimento do madeiramento do telhado, esquadrias não originais e vãos vedados em alvenaria, caracterizavam o estado da edificação. A parte das patologias descritas e descaracterizações, identificou-se risco de iminente desabamento uma vez que o solo da região, possuindo lençol freático elevado, comprometeu as fundações e, por conseguinte, a integridade do edifício.
Originalmente, o núcleo da residência unifamiliar ocupou o terreno a partir da esquina em direção ao que se conformou como fundos do terreno. Neste espaço encontrava-se um pequeno anexo não original que permitia acesso ao quintal, permeável, em nível abaixo. Este apêndice concentrava o núcleo hidráulico e possuía acesso independente por meio de escada. O pavimento inferior possuía três pequenos compartimentos conformados em paredes baldrames, cujos usos não foi possível identificar, mas que, possivelmente, seriam áreas de serviço em apoio à residência ou espaços equivalentes.
O conceito do projeto arquitetônico pautou-se em intervenções pontuais no sentido de manter a integridade edificada da construção eclética no limiar de funcionalidade para operação como panificadora e, ao mesmo tempo, propunha um resgate de uma temporalidade perdida. Temporalidade esta que não necessariamente vincular-se-ia à uma ou outra edificação em estilo eclético, mas sim resgata um espírito de uma época passada, aquela em que o tempo passava mais lentamente, das fazendas mineiras.
Nesse sentido, a estratégia de projeto articula três momentos: demolições de elementos não originais, adições de novos elementos construtivos e a recomposição de elementos históricos originais, sendo estes últimos o fio condutor desta nova história. Os novos elementos desenvolvidos, em grande parte, foram oriundos de materiais disponibilizados por demolições de outras edificações mineiras como veremos adiante. Esta ótica nos leva acreditar que a estratégia propositiva constrói um “novo” por meio do rearranjo do “antigo” resignificado.
O projeto arquitetônico propôs a demolição do anexo e, simultaneamente, o acréscimo de mais um módulo de fachada que compreenderia a outra esquadria. Este recurso permitiu dotar o pavimento térreo de mais 1/4 de área de modo absorver o núcleo hidráulico, compreendendo os banheiros masculino e feminino de uso comercial. Essa intervenção pontual revelou-se extremamente oportuna uma vez que livrou o corpo da edificação original íntegro, sem necessidade de acréscimos ou intervenções de maior porte. O módulo acrescido considerou o ritmo, proporção e estilística da fachada original, buscando mimetizar àquela externamente (3). O tema do acréscimo será retomado e interpretado a partir da teoria de projeto.
Em 1995, o rigoroso levantamento realizado, prestou-se como base para a elaboração do projeto de arquitetura. A parte térrea original, que possuía compartimentação típica de programas residencial distribuídas em áreas sociais e área íntima, converteu-se em um amplo salão sem divisões internas.
A reforma resultante distribuiu o programa de necessidade da padaria em dois níveis. O superior, cujo acesso é realizado pela praça frontal, ocupou-se do salão com expositores, mesas para refeições, balcões de atendimento e caixa e instalações sanitárias masculina e feminina. A conexão entre os pavimentos é realizada duplamente, primeiramente através de escada, que cumpre o papel de criar uma transição entre a área “social” e a área de “serviços”, de produção e em um segundo momento por equipamento mecânico de monta cargas que realizada o transporte de alimentos.
O pavimento inferior, ocupando o porão da residência e o antigo quintal, absorveu vestiários, cozinha, área de preparo de pães, almoxarifado e área de serviço. Esta área de preparo e de apoio aos funcionários possui entrada privativa a partir da parte inferior do terreno que possui declive para os fundos. A área da cozinha, dedicada ao preparo de pratos, foi locada sob o novo acréscimo e, a parte correspondente à panificadora propriamente, ocupou o antigo quintal e possui área de cobertura inteiramente nova neste nível inferior.
Garantidas a necessidades espaciais, atendidos os quesitos técnicos, é no interior da Padaria Bonomi o tempo pulsa lentamente e o cerne da estratégia de projeto ganha corpo ao recriar uma atmosfera lúdica da antiga residência. A atmosfera concebida nos conduz a uma viagem espaço-temporal rumo ás antigas fazendas mineiras do século 19 por meio da conformação espacial, da tectônica dos materiais empregados, do mobiliário e do projeto luminotécnico.
No aspecto material optou-se pelo emprego de elementos naturais, sobretudo a madeira. Piso, parede e teto apresentam o material em diversas forma, seja bruto, seja tratado. Como citado anteriormente, a nova edificação recebeu elementos de diversas outras edificações demolidas no estado de Minas Gerais, entre eles: o piso em madeira de demolição advindo de fazendas; as esquadrias de madeira, cedidas de um convento recém demolido em Juiz de Fora; as luminárias garimpadas em ferros-velhos e o estrado do teto, parte do guarda-corpo de uma antiga fazenda em ruinas.
O caso das esquadrias merece destaque no conjunto das reapropriações (4). Os vãos da edificação ou possuíam vedação em alvenaria ou possuíam esquadrias não originais, entretanto o vão encontrava-se original ou de modo ser facilmente identificável. Curiosamente, à época surge a oportunidade de aproveitamento das esquadrias do convento acima citado, cujas folhas correspondiam exatamente ao vão existente disponível. A arquiteta atribui tal “milagre” à possibilidade de padronização as esquadrias que o estilo eclético proporcionou à arquitetura.
Outra menção é o projeto luminotécnico com o emprego das luminárias de posteamento urbano no interior da Padaria. Este recurso mesclando “dentro” e “fora”, funde interior e exterior e evoca, novamente, a temporalidade dos tempos passados, das memórias de infância onde brincadeiras eram, então, permitidas nas ruas. As lâmpadas especificadas são incandescentes e fluorescentes, ocorre que estas últimas, na década de 90, ainda não possuíam tecnologia de temperatura de cor desenvolvida. A temperatura de cor alta, demasiadamente branca, não proporcionaria a atmosfera intimista desejada. A limitação tecnológica permitiu o desenvolvimento de uma fina malha que, ao recobrir a lâmpada tubular, tornou a luz amarelada, conferindo assim a ambientação pretendida. Atribuímos esta eficiente solução à experiência pregressa da arquiteta como figurinista da companhia de balé contemporâneo Grupo Corpo.
A atmosfera acolhedora, remete-nos, em grande medida, aos armazéns do século 19 onde a mercadoria estava em contato com o cliente. O mobiliário de madeira de demolição forra grande parte da superfície interna e cumpre a dupla função: humanizar a espacialidade interior e, comercialmente, expõe produtos produzidos. Internamente, as alvenarias foram tradadas de modo a tornar evidente as marcas de pintura realizadas anteriormente; a edificação se desveste para, então, vestir-se novamente em uma nova linguagem de revestimento própria de sua história.
A dinâmica de operação do estabelecimento assemelha-se a de uma padaria padrão, comum a tantos bairros, entretanto, em nosso entendimento, há um elemento agregador, ao redor do qual toda a espacialidade se articula: a mesa.
No centro do amplo salão está disposta uma grande mesa de madeira bruta para 14 lugares. Nela, o espaço compartilhado é apenas pretexto para a reunião das mais diversas pessoas lado a lado. Ou seja, ela potencializa o encontro entre os desacompanhados, acomoda famílias maiores, grupos de amigos, é um local de encontro por excelência na poética espacial da arquiteta Freusa Zechmeister. Nesse momento o sentido familiar da reunião ao redor da mesa é resgatado da ancestralidade da residência e, temperado pelo que se compreende como mineiridade, confere especial sentido ao momento da refeição.
A atmosfera intimista criada pela mesa, no grande salão de pé direito elevado, é reforçada por um gradeado de madeira que paira sobre a mesma. Simultaneamente, é recurso no projeto luminotécnico, uma vez que permite a disposição flexível de luminárias pendentes sobre a mesa, sublinhando, mais uma vez, agora por meio da luz, uma espacialidade intimista.
À luz da teoria de projeto, na escolástica do arquiteto francês Viollet Le-Duc, identificamos a semelhança de estratégias projetivas. No entendimento leduciano o arquiteto deve instrumentalizar-se dos conhecimentos como construtor e atuar, em certo modo, como arqueólogo, cuja função é investigar o passado e, sobre este, realizar interpretações críticas.
Nesse discurso deve-se primar pelo restauro no estilo primitivo do objeto construído, como se verifica na passagem “se for o caso de refazer em estado novo proporções do monumento das quais não resta traço algum,......, então o arquiteto encarregado de uma restauração deve imbuir- se do estilo próprio ao monumento” (5).
No tocante ao emprego de elementos construtivos não originais podemos dividi-los em dois grupos: materiais novos e matérias de reuso advindo de edificações demolidas. Os primeiros, como o caso da viga metálica de suporte do trecho acrescido, primam pela atualização tecnológica, enquanto os outros consideram aspectos referencias construtivos equivalentes à época da edificação original, como o caso das esquadrias oriundas do convento. O grupo de materiais novos corroboram com os preceitos de Le-Duc, segundo o qual, toda parte substituída deve ser realizada somente por materiais melhores e por meios mais eficazes e perfeitos, de modo a prezar por sobrevida do bem maior que a previamente decorrida. A rigor, o grupo de materiais de reuso foge a esta premissa de exclusividade. Entretanto os materiais elencados, sobretudo madeiras nobres, sofreram tratamento técnico (escovação, aparelhamento, selagem e/ou pintura) de modo a revalidar-lhe o uso em condições equivalentes, ou possivelmente, superiores a materiais novos.
No caso presente não se pretendia, num primeiro momento, a aplicação das teorias de restauro na conversão de uso do edifício. Até mesmo por que não havia limitações patrimoniais formais de salvaguarda por parte dos órgãos competentes, seja nas esferas municipal, estadual ou federal. Embora descoberto legalmente, o projeto arquitetônico, ao propor restauro reinterpretativo do bem, foi submetido à aprovação do então Departamento de Memória e Patrimônio Municipal da Prefeitura de Belo Horizonte. O projeto apresentado foi composto de levantamento arquitetônico, relatório fotográfico do estado do bem e projeto arquitetônico.
Após análise pormenorizada da situação identificou-se que o mesmo estava listado como “interesse de preservação no Inventário do Patrimônio Urbano e Cultural de Belo Horizonte”. O parecer do Departamento conclui em 26 de junho 1995: “após avaliação do projeto de reforma/restauro apresentado considerou-se que o mesmo não apresenta descaracterização do referido imóvel”.
Merece menção o fato que, após a reforma, a edificação até então abandonada – utilizada como depósito de um museu de brinquedos – adquiriu status de patrimônio municipal, haja vista o tombamento pela Prefeitura Municipal de Belo Horizonte.
Entre as questões de grande atualidade podem ser citadas: o fato recomendar que se deva restaurar não apenas a aparência do edifício, mas também a função portante de sua estrutura, procurar seguir a concepção de origem para resolver os problemas estruturais; a importância de ser fazer levantamentos pormenorizados da situação existente; agir somente em função das circunstancias, pois princípios absolutos podem levar ao absurdo; a importância de reutilização para a sobrevivência da obra, pois restaurar não é apenas uma conservação da matéria, mas de um espírito da qual ela é suporte (6).
O trecho de fachada acrescido à construção original, sem o qual não seria possível, atender ao programa comercial demandado, considera os elementos compositivos existentes e, a partir de uma interpretação projetiva e conceitual realiza a bem-sucedida incorporação na fachada voltada a Avenida Afonso Pena. Observamos, aqui, a aplicação unívoca dos postulados de Viollet-de-Duc, uma vez que foi criada uma nova forma arquitetônica inexistente anteriormente, mas que, se houvesse existido, possivelmente, seria desta mesma forma.
Viollet-le-Duc procura entender a lógica da concepção do projeto que, quando compreendida como um todo, daria respostas unívocas. Não se contenta unicamente em fazer a reconstituição hipotética do estado de origem, mas procura fazer uma reconstituição daquilo que teria feito se, quando da construção, detivessem todos os conhecimentos e experiências de sua própria época, ou seja, uma reformulação ideal de um dado projeto. O seu procedimento se caracterizava, com por, inicialmente, procurar entender profundamente um sistema concebendo então um modelo ideal e impondo, a seguir, sobre a obra, o esquema idealizado (7).
Por fim, destacamos que a intervenção realizada ora tratada por restauração no campo semântico da Teoria de Projeto não se alinha aos conceitos mais modernos de restauração. O italiano Césare Brandi (1906-1988), um dos principais expoentes do restauro contemporâneo, estabelece entre seus princípios os critérios de reversibilidade e distinguibilidade, segundo as quais, respectivamente “a integração deverá ser sempre e facilmente reconhecível; mas sem que por isto se venha a infringir a própria unidade que se visa a reconstruir” (8). Neste sentido, o projeto da Casa Bonomi aproxima-se, teoricamente, aos preceitos do restauro interpretativo leduciano do século 19.
Considerações finais
A Casa Bonomi é uma edificação que transita no tempo, se por um lado garante seu futuro por reavivar as memórias de um passado, justifica o passado ao fazê-lo presente. A atmosfera lúdica do quase armazém hidridiza passado, presente e futuro, no sentido temporal, bem como aproxima funções comercias e residenciais.
Depreendemos desta análise que, mesmo frente à aos incoercíveis processos de especulação e verticalização imobiliários na cidade de Belo Horizonte, o intento projetivo da arquiteta Freusa Zechmeister na década de 90 pode ser considerado exitoso. Acreditamos, ainda, que a estilística de aplicação de materiais de demolição/reuso consolida-se formalmente no contexto local e torna-se referência a partir desta experiência, sobretudo empírica.
Não são materiais antigos, mas usados; não é uma vida remota, mas uma vida vivida; não é uma solidão que lamenta, mas uma solidão que floresce e produz; não é a espera de alguém, mas a esperança de que a maneira pela qual o tempo me usou (ou eu o usei) sirva alguém ou a alguma coisa: tal como estes móveis, estas madeiras, este teto, esta mesa (9).
No ano de 1996 a Padaria Bonomi propôs novos usos em uma antiga residência eclética abandonada na região ainda compreendida como Savassi. O antigo coloca-se na cidade como algo novo, revalida-se por meio das atribuições comerciais que trataram de resgatar uma atmosfera passadista; passado meu, seu, nosso e provavelmente de quem nem o viveu, passado apenas.
Se o campo da teoria de projeto não constituiu a linha projetiva primeira, serve-nos como ferramenta valiosa na análise deste pequeno objeto arquitetônico, em sentido quantitativo, e grandioso em sua relevância enquanto marco da arquitetura belo-horizontina e, por que não, mineira.
A estratégia projetiva faz do tempo partícipe da espacialidade da Casa Bonomi. Talvez aí esteja a resposta desta obra de 20 anos, sem modificações relevantes, permanecer à margem do tempo, pois, com este, fez um pacto.
notas
1
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Restauração. Coleção Artes e Ofícios. São Paulo, Ateliê Editorial, 2000.
2
MOL, Natália Aguiar. Leis e Urbes – um estudo do impacto da Lei de Parcelamento, Ocupação e Uso do Solo de 1996 em Belo Horizonte. Belo Horizonte, Instituto de Geociências da Universidade Federal de Minas Gerais, 2004.
3
A mímeses, ou imitação, ocorre de forma parcial, uma vez que o módulo acrescido não corresponde exatamente a uma fração original ou a múltiplos deste.
4
O termo reapropriação é utilizado, semanticamente, como apropriar-se novamente.
5
VIOLLET-LE-DUC, Eugène Emmanuel. Op. cit.
6
Idem, ibidem.
7
Idem, ibidem.
8
BRANDI, Césare. Teoria da restauração. Coleção Artes e Ofícios. São Paulo, Ateliê Editorial, 2004.
9
BRANDÃO, Carlos Antônio Leite. Especial Minas. Projeto, São Paulo, n. 109, jul. 1996, p. 62-65.
sobre o autor
Fábio Chamon Melo é arquiteto e urbanista (UFMG, 2003), especialista em Construção Civil (UFMG, 2011), cursa MBA em Governança Legislativa. Diretor da Coordenação de Projetos de Arquitetura da Câmara dos Deputados.