Entre 1930 e 1940 Belo Horizonte iniciou um rápido e continuo crescimento que foi evidenciado com o aparecimento dos primeiros arranha-céus junto aos casas de um andar, originários de fundação da cidade. Em 1939 foram aprovados os três primeiros projetos de “casas de apartamentos” (1), significando o início de uma nova etapa dos modelos habitacionais, passando da casa compacta unifamiliar para o apartamento como forma corriqueira de alojamento; uma nova tradição na forma de viver, introduzida pela ‘cultura moderna’.
O projeto do Conjunto JK marca um ponto culminante no projeto moderno brasileiro; não teve em Belo Horizonte – e talvez no Brasil – projeto habitacional mais ambicioso; pretendia ser, nas palavras do próprio governador Kubitschek, “a ‘marca registrada’ de Belo Horizonte, ou seja, o que é a Torre Eiffel para Paris ou o Rockefeller Center para Nova York” (2). Inicialmente o projeto considerava 1.450 unidades de apartamentos, um hotel, um museu, um centro comercial, uma rodoviária, a instalação de uma repartição pública, entre outros equipamentos. Se tivesse sido finalizado nos anos cinquenta poderia ter alojado a 1% da população da cidade (3).
Posteriores atrasos e problemas fizeram que a construção do Conjunto JK se estendesse até a década de oitenta, que, junto a modificações substanciais do projeto original, levaram a um desvirtuamento total da proposta original, fazendo deste um empreendimento que gerava pouco orgulho. Após a sua finalização, se procurava mais esconder do que mostrar. Tanto o seu arquiteto, Niemeyer, como o promotor, Kubitschek, procuram evadir o tema de forma insistente (4).
Ainda assim, um ponto indiscutível é que o Conjunto JK não pode ser ignorado, “um aspecto simples e inexorável é, entretanto, o que maior espanto provoca desde a sua construção: o fato de que ele está lá” (5). É uma enorme massa edificada dentro da cidade que dificilmente pode passar despercebida.
Porém, desde o ponto de vista da época da proposta, caberia hoje ser objeto de uma re-observação; um exercício que pode mostrar elementos chave para entender o que significava ser ‘moderno’ nos cinquentas.
Um dos pontos mais relevantes são as mudanças no sistema de intimidade, que antes era de tipo familiar-patriarcal dentro de uma configuração típica com os dormitórios agrupados e/ou enfileirados. As postas dos dormitórios abriam entre si em sequência.
No modelo ‘moderno’ o dormitório é um espaço individual, onde a vida íntima encontra-se resguardada, evidenciado na planta com a previsão de apenas uma porta para cada dormitório; modelo que se implanta regularmente nas formas corriqueiras posteriores ao Movimento Moderno (6).
Fernando Lara observa este fato com “surpresa”, e a descreve como uma “falta de privacidade”, detectando certa inércia nos layouts de algumas casas de Belo Horizonte ainda nos cinquenta, as quais pretendiam ser ‘modernas’ desde o exterior, na fachada, contrastando com um interior conservador:
“A insistente ocorrência de o quarto principal estar conectado diretamente à sala de estar surpreendeu-me, para este tipo de layout que parece ser uma reminiscência da casa de fazenda do século 18 [...] um regime em que o quarto do pai seria muito próximo da entrada principal a fim de controlar seus filhos, e mais enfaticamente, suas filhas [...]
Na maioria das casas, emerge uma faceta impactante: a falta de privacidade nos interiores das casas, com a maioria dos quartos abrindo para a sala de estar ou sala de jantar [...] a classe média da década de 1950 queria privacidade da família, mas não privacidade moderna individual” (7).
O efeito também pode ser observado nos apartamentos ‘modernos’ do Rio de Janeiro onde podem ser detectados esforços para isolar o espaço íntimo individual: “a privacidade torna-se uma exigência, impondo a criação dos corredores internos, evitando a passagem através de um cômodo para alcançar outro” (8).
Além dos efeitos das mudanças no sistema de intimidade, observa-se a influencia crescente na mídia de formas habitacionais vindas de outras partes do mundo através de revistas principalmente.
Neste ponto, é importante mencionar o modelo da Unité de Marseille (1947-52) de Le Corbusier, que na época causou impacto, sendo intensamente difundida. A organização interna dos apartamentos apresentava, porém, uma configuração extremadamente atípica, ajustando-se com dificuldade aos hábitos cotidianos mais conservadores. Críticas ao modelo de apartamento da Unité eram às vezes, contundentes, como as de Lewis Mumford:
“nos apartamentos maiores, o dormitório dos pais têm pouca intimidade quando é ocupada a sala de estar devido a que o dormitório se encontra colocado aberto no andar superior, olhando para o living-room, impedido de ser isolado de barulhos e maus cheiros provenientes de abaixo. Isso é ainda mais inconveniente se uma pessoa quiser ler ou dormir enquanto outras escutam música ou conversam; é intolerável se algum dos pais se encontra doente” (9).
O modelo de apartamento da Unité, de fato, nunca chegou a ser reproduzido, se não for pelo próprio Le Corbusier posteriormente num segundo conjunto habitacional na Alemanha. Porém, o que deve ser salientado deste modelo de apartamento foi a inspiração que exerceu para desenvolver novas organizações geométricas, sendo que na década dos cinquenta apareceram inúmeros trabalhos com planejamento em seção (10).
Neste sentido, a célula semi-duplex do Conjunto JK, aparece como um proposta alternativa das unités para organizar coerentemente a geometria do interior doméstico em diferentes andares, delimitando territórios em coletivo/semi-público/íntimo. E aqui, o potencial inovador da proposta do semi-duplex, que só pode ser entendido desde a ideia popularizada do ‘moderno’. Preocupações cotidianas, como o de uma “vida sadia moderna” com exposição de sol e suficiente ventilação, com vistas garantidas sobre o exterior, parecem ter uma resposta direta na configuração do semi-duplex.
Sendo assim, em paralelo à consulta do projeto do Conjunto JK, serão feitas a continuação consultas a publicações circulantes da época. Particularmente deve ser salientada à revista Casas e Jardim, que era distribuída mensal ou bimensalmente, registrando entre 50.000 exemplares, no início dos anos cinquentas, e atingindo 85.000 no final da década.
A estrutura do escrito está composta de quatro partes. Na primeira parte “1- O projeto do Conjunto JK e o modelo do semi-duplex” descreve-se o projeto original do Conjunto JK focado na parte habitacional. Na segunda parte “2- Os meios níveis e amplitude visual no interior doméstico” procura-se entender os efeitos visuais e a imagem do interior configurado mediante esta técnica, sendo a continuidade visual entendida como próprio do ‘moderno’ desde o olhar popular. Na terceira parte “3- Varanda, terraço coberto ou jardim de inverno?” visa abrir a discussão sobre a curiosa proposta de incorporar duas varandas, aparentemente para oferecer melhor controle térmico. Na última parte “4- A ventilação do interior doméstico e a vida moderna sadia” se observa o significado do interior doméstico desde a perspectiva popular.
O projeto do Conjunto JK e o modelo do semi-duplex
Dentro dos apartamentos do Conjunto JK, diferentes configurações internas mostravam organizações inovadoras, que desde o próprio nome já se mostravam como sendo diferenciadas: o “semi-duplex” (11).
Longe de ser apenas uma experiência pontual para o projeto do Conjunto JK, a organização do semi-duplex se insere dentro de uma linha de trabalho prévio do próprio Niemeyer -e também de outros arquitetos-, no qual o projeto habitacional era desenvolvido à partir de um estudo da célula habitacional vista em corte; utilizando a técnica projetual do ‘planejamento em seção’ (12), que criava organizações com plantas alternadas. Estas formas projetuais estavam sendo exploradas desde o século 19, mostrando diversas vantagens, como redução das áreas de circulação coletivas e melhoras em termos de privacidade (13). Porém, o semi-duplex aponta a melhoras de natureza diferente.
Para entender a proposta do semi-duplex, cabe rever as pranchas de 1954 aprovadas na Prefeitura de Belo Horizonte para o projeto do Conjunto JK. Dentre essas, na planta do bloco A aparecem dois tipos de organizações nos andares habitacionais. Do lado direito, saindo do núcleo de elevadores com forma triangular, os apartamentos se organizam dentro de uma serie repetitiva de paredes portantes, regularmente distanciadas, que resolvem cinco tipos diferentes de apartamentos, todos estes de um andar. Mas, do lado esquerdo do núcleo de elevadores, se situam os semi-duplex, aparecendo o corredor coletivo a cada dois andares apenas. No caso do bloco B, de 36 andares, este tipo de organização e utilizado em todos os andares a partir do décimo pavimento.
Mas, conforme o anteriormente mencionado, a evidente vantagem de redução de áreas de circulação coletiva não era apenas a única vantagem nos olhos de Niemeyer. De fato, Niemeyer nunca chegou a comentar diretamente a economia de superfície.
Evidências do diferente entendimento de Niemeyer deste este tipo de organização aparecem na planta de detalhamento do apartamento. Aqui, os espaços das varandas ocupam uma importante superfície, (diferenciadas na própria prancha com uma hachura, e com a inscrição da palavra “varanda”). O modelo previa, originalmente, duas varandas em cada lado das fachadas do bloco laminar.
As varandas e o semi-duplex ganharam destaque no folder publicitário do Conjunto JK. O semi-duplex, recebia uma atenção espacial pois “merece uma explicação adicional”. Um desenho em seção mostrava as varandas, estando delimitadas com um pequeno traço onde uma figura humana e um cone de visão explicavam a possibilidade de ter contato com a paisagem externa.
Neste ponto, cabe chamar a atenção do perfil do folder publicitário, pois pretendia sutilmente ser uma sorte de manual da vida cotidiana moderna e os seus espaços cotidianos num conjunto moderno como o Conjunto JK (14).
Por outro lado, nos estudos para as fachadas do projeto, se observa também como a varanda estava sendo pensada como delimitada com esquadria envidraçada, o qual permitia fechar o espaço completamente.
A ideia e o próprio termo do semi-duplex estava já presente anos anteriores, não só no trabalho do Niemeyer, como evidencia o projeto contemporâneo de Lúcio Costa de uma célula similar semi-duplex similar de três andares, publicado aproximadamente nas mesmas datas.
Outro indício de que o semi-duplex encontrava-se na cultura projetual da época é outra publicação de um exercício desenvolvido por alunos dentro da Universidade de São Paulo. Nas conclusões do exercício observa-se uma tentativa de reconhecimento de três geometrias diferentes: simplex, duplex – com duas geometrias diferentes –, e semi-duplex, que é o único que aparece com o deslocamento da laje ou, utilizando o termo destas décadas em inglês, em split-level.
Não pode deixar de se mencionar aqui, por outro lado, o trabalho de Eduardo Kneese de Mello, quem mostra um esforço contínuo por encontrar soluções estudando as seções. Seus desenhos denotam, de forma similar ao Niemeyer, o uso do planejamento em seção como premissa de projeto.
O trabalho contínuo do próprio Niemeyer desde os dez anos anteriores ao Conjunto JK demonstra a incidência no uso desta técnica: uma forma básica em mezanino foi colocada em prática no Grande Hotel de Ouro Preto (1938) e de forma similar no projeto para o projeto do Hotel Regente (Rio de Janeiro, 1943, não construído). Mas a partir do projeto do Hotel Quitandinha (Petrópolis,1950, não construído), também identificado como Edifício Mauá, se pode observar uma maior complexidade, utilizando uma organização que vai ser chamada de semi-duplex. A solução com andares alternados na proposta para a exposição da Interbau (1957, Berlim) denota ainda uma insistência no uso desta técnica de projeto (15).
Sendo assim, dentro da sequência de projetos com planejamento em seção de Niemeyer, a proposta para o Hotel Quitandinha representa uma inflexão se considerarmos a complexidade geométrica. O problema do projeto estava relacionado com as vistas e a exposição solar. Experiências anteriores, como do Grande Hotel de Ouro Preto, tinham já demonstrado um bom desempenho para este tipo de problemas, sendo o semi-duplex a uma solução melhorada. E dentro deste, a varanda era o item mais explorado do projeto, gerando integração do interior com a paisagem, conforme se aprecia nas perspectivas.
Os ‘semiplanos’ e amplitude visual do interior doméstico
O semi-duplex deve ser contextualizada junto à cultura doméstica popular da época, fora dos discursos especializados em arquitetura de revistas como Habitat ou Arquitetura e Engenharia. Neste sentido, a revista Casa e Jardim oferece uma fonte interessante, onde o interior doméstico organizado em meios níveis – assimilável ao semi-duplex – vai ser chamado de ‘semiplanos’ (16).
Conforme é sabido, as vistas, a paisagem, o olhar, adquirem um significado preponderante na cultura moderna. Na revista Casa e Jardim aparecem indícios que apontam neste mesmo sentido, sendo as aberturas chamadas de ‘janelas quadro’. Um comentário da época resulta revelador:
“no transcorrer dêste [sic] século, as janelas foram aumentando de tamanho, até que paredes inteiras de vidro deram às casas um aconchego especial e a sensação de se estar dentro de um jardim, diante de uma bela paisagem campestre, da majestade de uma serrania ou dentro de um bosque encantado; nos arranha-céus das grandes metrópoles a paisagem é outra, mas a sensação de desafogo é a mesma. São estas chamadas janelas-quadros, pois emolduram uma cena viva, de campo ou de cidade, que se transforma a se renova com as estações e as variações do clima” (17).
As casas unifamiliares, projetadas com ‘semiplanos’, eram admiradas precisamente pelo efeito visual de um continuum espacial. Uma publicação de 1955 evidencia este efeito sobre o qual se aponta que “a escada, ao descer dos dormitórios, participa do arranjo da sala de estar, [...] os três semiplanos da casa são ligados sem necessidade de corredores” (18). Nas fotografias se observa o uso de guarda-corpo em vido no mezanino, que podia manter a interconectividade dos olhares.
Um segundo modelo de casa unifamiliar em ‘semiplanos’ aparece publicado com uma seção longitudinal, onde curiosas linhas entrecruzam o desenho de lado a lado. O texto esclarece que “pela observação do corte e das perspectivas internas, o leitor poderá verificar que a pessoa situada na sala de jantar descortina perfeita visibilidade para a rua através das vidraças superiores do caixilho do living, bem como do corredor de habitação e do jardim íntimo (19).
Num concurso de arquitetura publicado na mesma revista, aparece um outro modelo de casa em ‘semiplanos’ que tinha “agradado ao júri a solução em diversos níveis, em harmonia com a natureza, e o prolongamento do espaço externo por meio da varanda coberta” (20).
Por outro lado, dentro destes layouts em ‘semiplanos’, as escadas internas são apreciadas devido a que auxiliam para a delimitação das fronteiras de zonas desiguais. A inserção de alguns degraus é comentada numa publicação:
“pelo exame da planta, podemos logo observar a divisão desta residência em dois núcleos distintos: o de vida social e o íntimo. Sala de estar, varanda coberta e sala de jantar, com seu complemento natural, a cozinha, compõem o primeiro, enquanto que o outro, situado mais atrás, inclui quartos e banheiros para proprietários e hóspedes de um lado e de outro, quartos e banheiro para empregadas” (21).
Note-se no desenho que acompanhava o texto a ‘varanda caseira’, que exerce o papel de núcleo da agrupação da área íntima, oposta a ‘varanda coberta’, que pertence e agrupa as atividades próprias da área mais públicas. A escada esclarece os territórios em termos sociais.
Paralelismos podem ser encontrados no semi-duplex com a previsão de das duas varandas, que parecem recrear o que o imaginário popular entendia como ‘interior moderno’. No isométrico da célula que se publicou no folder publicitário do Conjunto JK o texto esclarecia que “coloca o quarto a três metros do piso das salas [...] E seu interior, o quarto e sala são também mais independentes”. Mas ainda era mais importante o fato de poder dispor de duas varandas, pois permite organizar o espaço ‘em semiplanos’, separando as atividades em dois núcleos íntimo/público, porém mantendo contato visual entre eles de forma controlada.
Varanda, “terraço coberto” ou “jardim de inverno”?
As varandas, também identificadas como ‘terraços a coberto’, eram frequentes e se espalhavam nos modelos habitacionais modernos: “olhando para os luxuosos apartamentos e residências, encontramos cada vez com maior freqüência terraços – sejam êles abertos ou fechados – como que dominando as construções por completo” (22).
Além de manter uma função iconográfica, as varandas promoviam uma vida saudável, sendo que:
“a ciência moderna demonstrou que é justamente disso que o organismo necessita para conservar-se [...] Onde mais, então, podem eles [os moradores] captar um raio de sol ou um sôrvo de ar fresco, se não nos seus terraços arejados e soalheiros, que não só servem de recanto sadio como também propiciam a ventilação a todo o domicílio? Nos últimos tempos, o terraço coberto se foi tornando ainda mais popular do que o aberto, pois, sendo impassível às intempéries, é de maior serventia” (23).
Diferente do alpendre, espaço tradicional do século 19 que poderia ser colocado como antecedente, regularmente um espaço bem delimitado; a versão ‘moderna’ da varanda procurava formar parte do interior numa continuidade, e devia “modelar-se, com o mesmo cuidado e capricho, tanto o exterior como o interior de uma construção, interrompendo sua superfície [sic] com pequenos ou grandes terraços” (24).
A experiência anterior de Niemeyer com este tipo de espaços, como o da Casa de Campo JK na Pampulha (1943) mostra experimentações que apontam a exploração destes. Na Casa JK, antes de entrar no interior, se entrava num espaço envidraçado por ambos os lados. Na planta do projeto original aparecem marcados dois acessos a este desde o exterior, sinalados com dois pequenos traços no desenho. Mas deve apontar-se outra função provável deste relacionado com o controle térmico, sendo que dita antecâmara-varada evita a entrada direta de vento dentro da casa, criando um colchão fresco entre o interior e exterior, semelhante a um jardim d´hiver.
A configuração assemelha-se a varanda do semi-duplex, sendo delimitada por duas membranas de vidro e/ou cortinas, conforme a perspectiva do Hotel Quitandinha. O funcionamento deste como regulador térmico será comentado mais na frente.
O que deve observar-se aqui é o interesse da época por este tipo de espaços. A varanda do semi-duplex na sala de estar era um generoso espaço de aproximadamente um metro e meio de largura. Mas o desenho denota mais do que isso. No isométrico a parte inferior do guarda-corpo estava conformado por vidro. O mobiliário na varanda e de duas almofadas sobre o piso. Alguém sentado ali, no chão, ou deitado, podia manter vista agradável sobre o exterior.
O semi-duplex convida, desde a própria configuração e mobiliário, a um comportamento que pode ser identificado com ‘modernos’: é um espaço informal, confortável, descontraído, que evoca a naturalidade, e que lembra a cultura das casas contemporâneas a estas datas, de R. Neutra ou dos Eames. Nelas, improvisar uma reunião no chão formava parte da imagem doméstica. Algumas destas imagens eram difundidas através de revistas como Arts & Architecture, o que poderia explicar esta configuração conspícua das varandas em termos de iconografia. Em todo caso, a varanda no semi-duplex é um espaço de permanência que improvisa e promove a cultura ‘moderna’.
A ventilação do interior doméstico e a vida moderna sadia
A função da varanda do semi-duplex e a presença de venezianas e pode ser entendida através de projetos antecedentes, tanto do mesmo Niemeyer como de Lucio Costa, potenciadas desde um animo de hibridação da arquitetura moderna e vernácula brasileira.
Nos apartamentos do projeto para o Parque Guinle (1948 e 1954), Lucio Costa previa uma curiosa configuração de varandas: tratava-se de, em palavra de Cohelho (25), um “sistema de proteção formado por varandas –ou loggias- protegidas por elementos variados, como brises, cobogós e treliças [...] uma membrana de proteção contra a incidência de raios solares, permitindo ainda a conexão visual entre os compartimentos internos e o exterior”, sendo que “essas loggias configuram-se como varandas íntimas, e as persianas tem a função de proteção contra a insolação quanto de anteparo, impedindo que os quartos fiquem devassados”. A varanda gerava um agradável espaço, com uma luz controlada e filtrada, mas que também auxiliava na regulação térmica do apartamento.
A configuração dos apartamentos com mezaninos do Grande Hotel de Outro Preto (1938) mostra similitudes. Na fachada principal do hotel foi prevista uma treliça de madeira ou muxarabi, que além de auxiliar na contextualização com o entorno histórico da cidade, permitia ao mesmo tempo ventilação franca e protegia o sol da tarde. A varanda estava delimitada com respeito ao interior mediante uma esquadria de portas de vidro de correr, recuadas aproximadamente um metro e meio da linha da fachada. Na parte superior das portas de correr aparecem previstas venezianas de madeira. A presença destas se explica pelo interesse de controlar termicamente o interior: a organização do quarto, em mezanino, permitia abrir simultaneamente janelas a cada lado do bloco laminar, garantindo assim uma ventilação cruzada. Mesmo com a porta de correr da varanda fechada, o interior fresco do apartamento estava garantido de forma contínua.
O projeto do Hotel Quitandinha resulta esclarecedor referente a configuração do semi-duplex, estando relacionado com preocupações da exposição solar e vistas:
“Para que os múltiplos apartamentos sejam beneficiados pela indispensável insolação, a conformação do edifício Mauá não é somente uma consequência das condições locais, é mais do que isso, é um esforço para integrá-lo na paisagem circundante. É também uma luta pelo sol. O traçado previsto permite um aproveitamento máximo, tendo sido abandonado o tipo usual do apartamento de duas peças com galeria central e adotado o semi-duplex, dando para duas fachadas. Esse tipo de apartamento receberá insolação matutina e vespertina com aproveitamento total da paisagem” (26).
Cabe novamente lembrar aqui a importância que dava a cultura desse momento com respeito à exposição solar, sendo este sinônimo de vida sadia moderna. Testemunha deste entendimento aparece na revista Casa e Jardim:
“O que significa atualmente ‘modernizar uma casa’? Significa tirar a ela a aparência sombria que apresenta, introduzindo janelas espaçosas, e terraços abertos; remover paredes para ganhar mais espaço e descortinar sua frente para o jardim [...]. Modernizar é, enfim, permitir a entrada de luz e ar em abundância” (27).
A entrada de luz, porém, não pode ficar sem controle, sendo as venezianas uma forma de resolver, mas que “para evitar os raios solares e respingos de água, torna-se necessário inclinar as persianas para cima. Entretanto, no caso do ar, devemos dirigi-las para baixo. É natural que não podem ser inclinadas para cima e para baixo ao mesmo tempo, mas, pelo menos á tarde ou á noite, quando mais precisamos de ventilação, o sol não impede que se as virem contra o soalho” (28).
Assunto aparentemente recorrente na época, a preocupação com a ventilação natural aparece resolvido de forma singular com o dispositivo varanda/semi-duplex. Um croqui da seção da varanda para o projeto do Hotel Quitandinha confirma este funcionamento. Uma dupla membrana delimita este espaço, por um lado o conjunto de venezianas com cortina, e por outro lado a esquadria com vidro. Na parte superior da esquadria estava prevista uma janela basculante. O traço de uma setinha não deixa lugar a dúvidas: a configuração permitia a entrada continua de ar através das venezianas, no outro extremo do semi-duplex uma segunda varanda, meio andar acima na zona do dormitório, permitia abrir janela sobre a fachada posterior do bloco laminar, gerando a ventilação cruzada.
A conexão entre varanda e modernidade não era arbitrária; a insistência que o folder publicitário do Conjunto JK fazia sobre a existência de duas varandas dentro de um semi-duplex tem uma explicação: os dois formavam uma astuta estratégia além do controle térmico do apartamento, pois promovia também iconografia, comportamentos, e a vida sadia moderna.
Conclusão
Estratégias similares de arquitetos do Movimento Moderno como Niemeyer ou Lúcio Costa, parecem apontar numa mesma direção dentro do pensamento moderno brasileiro. Diferente da problemática climática de países nórdicos o clima do Brasil foi um dos elementos explorados para abrir uma divergência com o Movimento Moderno ortodoxo Europeu. Experiências como o dispositivo de varandas de duas membranas e o semi-duplex ou mezanino geraram configurações originais, inexistentes dentro de outras vertentes do modernismo em outros países, e que pareciam resolver de forma convincente o problema local climático.
A revista Casa e Jardim confirma que estas preocupações se encontravam entendidas no cotidiano da época. A noção de uma ‘vida moderna’ estava enquadrada dentro de um espaço intermediário interior-exterior, semi-aberto, que permitia manter vistas sobre a paisagem, mas que ao mesmo tempo permitia a recepção dos benéficos raios solares dentro de um conforto térmico. Era a construção da imagem da modernidade.
notas
NA – Agradece-se o apoio financeiro da Fapemig para a realização deste trabalho. Mais informação do trabalho: Planejamento em seção <https://planejamentoemsecao.wordpress.com>.
1
PASSOS, Luiz Mauro do Carmo. Edifícios de apartamentos Belo Horizonte, 1939-1976: formações e transformações tipológicas na arquitetura da cidade. Belo Horizonte, AP Cultural, 1998.
2
Revista Arcaica, 1952.
3
PIMENTEL, Thais Velloso Cougo. A torre Kubitschek: Trajetória de um projeto em 30 anos de Brasil. Belo Horizonte, Secretaria de Estado da Cultura, 1990.
4
TEIXEIRA, Carlos M. Em obras: história do vazio em belo horizonte = under construction: history of the void in Belo Horizonte. São Paulo, Cosac Naify, 1999.
5
MORAIS, Pedro. Decifrando a esfinge: uma tentativa de análise do conjunto JK. IV Seminário DOCOMONO Sul, 2013 [Disponível em <www.docomomo.org.br/ivdocomomosul/pdfs/39%20Pedro%20Morais.pdf>.
6
PÉREZ-DUARTE FERNÁNDEZ, Alejandro. Nacimento del modelo de apartamento em la Ciudade México: Lectura del archivo de um arquitecto. Scripta Nova (revista eletrônica de geografia e ciências sociais), Barcelona, 2003.
7
LARA, Fernando Luiz Camargos. Popular modernism: an analysis of the acceptance of modern architecture in 1950s Brazil. Tesis de doutorado. Ann Arbor, The University of Michigan, 2001, p. 106-110. Tradução do autor.
8
FRESSLER VAZ, Lilian. Modernidade e moradia. Habitação coletiva no Rio de Janeiro - séculos XIX e XX. Rio de Janeiro, 7 Letras, 2002.
9
MUMFORD, Lewis (1963). La carretera y la ciudad. Buenos Aires, Emecé, 1966, p. 89-90.
10
O planejamento em seção era uma técnica de projeto utilizada em vários projetos habitacionais com certo animo experimental no Movimeno Moderno (cfr. Pérez-Duarte F., 2012), “O planejamaneo em seção . Dento desta linha projetual, diversas propostas repensavam o modelo da unité e podem ser encontrados em Candilis e Hodgkinson. Cfr. em Papillault, Remi, “Le Team X, Les batiments et les théories” em Le team X et le logement collectif. Toulouse, Maison de Sciences et de l’homee D’Aquitaine, 2008 e Swenarton, “High Density without High Rise: Housing Experiments of the 1950s By Patrick Hodgkinson”, em Architecture and the Wealfare State, Londres, Routlede, 2015.
11
A palavra “semi-duplex”, acunhada por Niemeyer e Lucio Costa desde finais dos quarentas, e posteriormente importada ao francês [Pérez-Duarte, 2014], prometia ser um modelo evoluído do duplex tradicional, um “interessante apartamento [sic], o chamado semi-duplex, que dá para as duas fachadas do edifício, sem os inconvenientes do tipo duplex [convencional]” [Folder publicitário do Conjunto JK, sem data].
12
Título do artigo de Wells Coates aparecido na Architectural Review 1937 que denota interesse moderno por esta técnica. Devido a sua eloquência será utilizada neste escrito para denotar a técnica.
13
Para consultar sobre uma genealogia da origem do planejamento em seção, ver PÉREZ-DUARTE FERNÁNDEZ, Alejandro. O planejamento em seção: Os modelos habitacionais coletivos do movimento moderno: o caso da cidade do México. Risco, São Carlos, v. 15, 2012; e também, do mesmo autor: “Privacidad vs eficiencia. El desdoblamiento de la superficie interior en los edificios de habitación colectiva en el Movimiento Moderno”. Arquisur, n. 2, 2012.
14
PODESTÁ, Sylvio E. De Marselha a Belo Horizonte. Revista AP, jul. 1996.
15
ROSSI, SOUZA E PÉREZ-DUARTE, O ‘planejamento em seção’ e O projeto do Conjunto JK (1951), de Oscar Niemeyer. Projeto de pesquisa da Universidade FUMEC, 2014 [mimeo].
16
O termo é equivalente ao das revistas americanas “Split-Level Houses”, que nestas datas mostram já o modelo split popularizado.
17
“Janelas que são Molduras”, Casa e Jardim, n. 13, 1955.
18
“3 meios planos = 2 andares”, Casa e Jardim, n. 18, 1955.
19
“More bem na casa feita para você”, Casa e Jardim, n. 36, 1957.
20
“Residência em três níveis”, Casa e Jardim, n. 41, 1958
21
“Dois núcleos em um bangalô”, Casa e Jardim, n. 11, 1954.
22
“Terraços”, Casa e Jardim, n. 22, 1956.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, ibidem.
25
COELHO, Carla Maria Teixeira. Preservação de edifícios residenciais modernos no Rio de Janeiro. 7º Seminário de Docomomo em Porto Alegre, 2007 <www.docomomo.org.br/seminario%207%20pdfs/011.pdf>.
26
“Condomínio Hoteleiro Quitandinha”, Arquitetura e Engenharia, 1951.
27
“Divisórias Transparentes”, Casa e Jardim, n. 16, 1955.
28
“Janelas que são Molduras”, Casa e Jardim, n. 13, 1955.
sobre os autores
Alejandro Pérez-Duarte Fernández é professor de Teoria e História da Arquitetura na Universidade FUMEC (Belo Horizonte). Graduado em arquitetura na Universidad Nacional Autónoma de México. Doutor pela Universitat Politecnica de Catalunya. Coordenador do projeto de pesquisa “O planejamento em seção e o popular moderno” (2014-2015).
Talita Silvia Souza é graduanda em arquitetura na Universidade FUMEC, bolsista do projeto de pesquisa “O planejamento em seção e o popular moderno” (2014-2015).