O lugar certo, na hora certa
Inserido em um banco de areia à beira mar, o Hotel Tambaú, projetado pelo arquiteto carioca Sérgio Bernardes em meados da década de 1960 (1), representa ainda hoje um dos marcos mais importantes da modernidade na cidade de João Pessoa, tanto por sua original estrutura formal, como pela notável integração à paisagem natural e urbana.
Entre as transformações pelas quais passava a capital paraibana nesse período, o Hotel Tambaú era festejado como um símbolo de modernidade e progresso que lhe permitiria ingressar em um novo Brasil, o país que havia construído Brasília. O edifício do Hotel Tambaú se afirmou como uma das mais representativas obras modernas do país, que, apesar de dificuldades técnicas enfrentadas na sua execução, alcançou uma “imagem de progresso” e foi considerado “a frente de seu tempo” (2). Entretanto, além da admiração, foi também objeto de polêmica, tanto na época de sua construção, quanto em momentos posteriores.
Na década de 1960, os jornais da época registravam a necessidade de construção de um hotel digno da nova realidade nacional. “Bons hotéis representam numa cidade uma indicação segura do progresso” (3). Poucos eram os que defendiam sua construção no centro da cidade, dotando-o de um equipamento fundamental para torná-lo digno de receber grandes eventos. Os “homens de negócio” defendiam a construção de um hotel na orla marítima que encaminharia o desenvolvimento da cidade no sentido leste, incentivando o turismo.
Nomeado pelo governo militar, o interventor federal José Agripino Maia, tinha poder suficiente para apoiar a decisão do arquiteto autor do projeto, que sugeriu a implantação do hotel na ponta da praia de Tambaú, decisão que atendia também aos anseios do governo federal, interessado em desenvolver o turismo como uma das estratégias de integração nacional em consonância com a modernização dos meios de comunicação e infraestrutura viária.
A audácia da construção ia além das soluções técnicas não usuais, a obra ocupou uma área de proteção da Marinha do Brasil, sem respeitar as normas legais, fato possível somente em um contexto autoritário como o do final dos anos 1960. Mesmo havendo indícios de que essa questão foi debatida - como indica um trecho da reportagem de 1969: “Contra todas as suposições, opiniões em contrário, argumentos a favor ou não, o Hotel Tambaú vai sendo construído” (4) - foram raras as matérias encontradas sobre esse assunto. Nas últimas décadas, entretanto, visto sob o prisma contemporâneo de correções ecológicas e a despeito das autorizações de arranha-céus na cidade, essa questão volta à tona: uma obra desse porte junto ao mar, infringindo uma disposição legal, como não poderia deixar de ser, volta a ser objeto de crítica a respeito de sua implantação.
Visto por outro olhar, também contemporâneo, de preservação da qualidade de vida urbana e arquitetônica, é possível constatar a adequação do edifício às imposições do lugar favorecendo as características ambientais e qualificando o entorno imediato, que contrasta com as alterações posteriores do tecido urbano, que vem se adensando indiscriminadamente, em resposta a interesses econômicos e financeiros, principalmente imobiliários, em um processo de ocupação e verticalização que ganhou força nas últimas décadas.
Não há dúvida que o Hotel Tambaú tornou-se um marco da cidade e uma importante obra da arquitetura moderna brasileira. Não só pela preservação da qualidade de vida urbana, mas principalmente pela relação entre tecnologia e expressão na experiência construtiva, talvez a maior contribuição da arquitetura moderna e, com certeza, a maior contribuição de Sérgio Bernardes a essa arquitetura. Assim, o foco da análise desse exemplar arquitetônico se concentra no diálogo entre poética construtiva e a estrutura formal do edifício (5).
Tecnologia e expressão
O Tropical Hotel Tambaú (6), de 1966-1970, além de marco referencial moderno, com características determinadas pelo emprego do concreto aparente em grande quantidade, cuja expressividade está associada à ideia de estrutura como definidora da forma, foi uma obra de relevância arquitetônica no que diz respeito às inovações tecnológicas e formais que introduziu a época de sua implantação, influenciando, significativamente, a produção arquitetônica local.
Embora a análise da arquitetura permita as mais variadas abordagens, esse exemplo em particular aponta para uma linha de pensamento que alimenta as reflexões sobre os nexos indissociáveis entre expressividade e materialidade do invólucro do espaço arquitetural, ou seja, sua dimensão construtiva ou caráter tectônico (7). Como argumento crítico reflete a preocupação com uma qualidade arquitetônica que tem suas origens nas relações entre estrutura formal e sua materialidade, que encontra a dimensão estética e simbólica na potencialidade expressiva da tecnologia e dos materiais construtivos. O caráter tectônico, em sua abordagem analítica, estuda a arquitetura não apenas como manifestação artística, mas igualmente, como fenômeno tecnológico. Investiga-se as interações entre a expressividade, intrínseca à arquitetura, e a sua materialidade, condição do construtivo: é a síntese dessas interações essenciais à arquitetura.
A análise com foco no caráter tátil da envoltória espacial permite correlacionar as partes do todo arquitetônico a partir dos diversos materiais e técnicas em suas especificidades projetuais, levando à compreensão das sensações provocadas por esses elementos materiais ao corpo humano, através dos volumes e dos elementos espaciais que deles resultam. Do mesmo modo, a atenção às junções entre essas partes materiais têm sua importância na compreensão do sentido da arquitetura.
A teoria analítica fundamentada na tectônica, proposta por Frampton (8), aplicada às obras modernas em particular, permite apreciar essas interações entre os elementos da envoltória espacial, atentando para o fato de que, ainda que o discurso moderno priorize a noção de espaço, a prática projetual moderna é caracterizada por uma postura conceitual que enfatiza essa dimensão tectônica, na medida em que recorre às novas técnicas e materiais construtivos para o alcance de uma nova ordem estética e espacial concebendo e materializando um novo modo de expressão arquitetural.
Este trabalho se propõe a analisar as interações entre a expressividade e as determinações construtivas do Hotel Tambaú, a partir dos fundamentos da dimensão tectônica estabelecidos por Frampton. Entretanto, considerando a multiplicidade de sentidos, desse termo, no modelo teórico defendido por esse autor, são necessários alguns esclarecimentos sobre os parâmetros analíticos que serão adotados, visando maior clareza e objetividade na análise.
Em um olhar mais atento aos aspectos teóricos que suportam as aplicações analíticas observa-se que se trata do estudo da forma arquitetônica a partir de uma abordagem relacional, ou seja, do estudo das relações materiais que se estabelecem entre a estrutura formal arquitetônica e seu potencial expressivo, como por exemplo, a relação que se estabelece entre o edifício e o contexto da cultura arquitetônica e construtiva, ou a relação entre o edifício e o lugar, ou até às micro relações estabelecidas pelos detalhes construtivos ou junções entre elementos ou partes do todo arquitetônico, ou ainda, aquelas estabelecidas entre os diferentes materiais utilizados, visando um resultado estético.
Os parâmetros decorrentes dos nexos entre os elementos materiais e expressividade são identificados em três níveis de relação da estrutura formal arquitetônica com: a) o lugar; b) a estrutura resistente; c) os elementos de vedação.
A relação entre lugar e estrutura formal arquitetônica tem como base as dicotomias entre embasamento e cobertura, por um lado, e entre a forma do lugar e a forma produzida, por outro. Importa analisar como o edifício se relaciona com o lugar e que implicações essa relação pode ter sobre a arquitetura. Nesse caso, a cobertura não se limita ao trabalho realizado no sentido de cobrir o espaço, é entendido como a envoltória do espaço arquitetônico como um todo, abrangendo os elementos materiais que estruturam e delimitam esse espaço. Do mesmo modo, o lugar é considerado em sua totalidade e são examinados, nos seus nexos com a estrutura formal arquitetônica, dois elementos determinantes: a implantação e o embasamento, ou seja, se a maneira como o terreno é trabalhado para a ancoragem do edifício atende às suas características naturais – tipo de solo, geometria natural, desníveis, por exemplo – e aos limites ou concessões que delas decorrem, condicionando a escolha do sistema estrutural e construtivo, bem como os materiais a serem adotados.
Na relação entre estrutura resistente e estrutura formal arquitetônica, a análise trata do modo como os princípios estruturais e sua materialização participam do resultado expressivo da envoltória. Estudos sobre a cultura construtiva moderna têm demonstrado a importância da proposta estrutural para a criação e materialização desses espaços. A utilização de grandes coberturas, o uso de pilotis, a introdução do plano estrutural contínuo como as cascas de concreto armado, são alguns dos aspectos da linguagem arquitetural moderna que os novos materiais, princípios estruturais e técnicas construtivas permitem.
A relação entre elementos de vedação e estrutura formal arquitetônica decorre dos conceitos de membrana-envoltória de Semper (10) e de forma artística de Bötticher (11), utilizados por Frampton. Essa relação diz respeito não apenas a “pele” que reveste a estrutura resistente, mas, também aos elementos de vedação e delimitação interna da envoltória do espaço, como teto, piso, paredes, esquadrias e similares.
Na arquitetura moderna a independência dos elementos de vedação em relação à estrutura resistente permite tanto a utilização de diferentes materiais, como diferentes alturas, dimensões e espessuras. Importa averiguar como as articulações entre os diferentes materiais e técnicas construtivas influenciam na expressividade dos volumes que formam os espaços modernos. Trata-se, enfim, da investigação do modo como os “delimitadores do espaço” – parede, teto e piso – são manipuladas para conferir valor sensorial, visual e tátil à arquitetura.
A cultura arquitetônica e sua produção também podem trazer informações importantes para este tipo de abordagem. Assim, importa saber como os aspectos técnicos e expressivos se comportam em função do ambiente cultural e sócio-político, no caso, no marco temporal da realização do Hotel Tambaú.
A expressividade arquitetônica ressaltada nos estudos realizados recentemente sobre a produção moderna proposta entre as décadas de 1960 e 1970 está intrinsecamente relacionada à sua materialização. Por exemplo, a consciência construtiva está presente nas experimentações em que o uso do concreto armado passa a ser explorado pelas possibilidades estéticas de sua aparência natural ou bruta, da mesma forma que os elementos da estrutura resistente adquirem a posição de protagonismo na estrutura formal arquitetônica ou os grandes vãos e balanços passam a ser explorados com maior intensidade e os espaços fluidos e contínuos são atributos que qualificam o projeto e a construção. Igualmente os elementos de vedação e delimitação dos espaços libertam-se dos revestimentos e a potencialidade expressiva dos materiais em seu estado bruto passa a ser explorada.
A partir dos anos 1970, essa linguagem largamente utilizada e bem sucedida, passa a ter seu uso intensificado durante o governo militar, tendo em vista o projeto político de modernização do país, de “integração nacional” e do “Brasil Grande”, tanto em função do tamanho das edificações – metrôs, represas, escolas e similares – como da quantidade de obras realizadas no contexto do “milagre econômico brasileiro”.
Assim, a supremacia do concreto armado permeia grande parte da produção arquitetônica desse período e se revela na diversidade de soluções, própria de um país marcado por sua extensão territorial, cujas dimensões continentais, abrigam diferentes situações climáticas, culturais e socioeconômicas. A estratégia de ocupação e integração das várias regiões do Brasil resultou na demanda de uma grande quantidade de projetos e obras públicas, colaborando com a migração interna de arquitetos e para a atuação de profissionais reconhecidos em diversas localidades do país.
Esta vertente fundada na consciência construtiva e na expressividade dos materiais em seu estado bruto, tanto nos elementos de vedação como no sistema resistente, manifestou-se também em grande parte dos tipos edilícios que surgiram nas cidades paraibanas, programas como: centros administrativos e universitários, terminais de transportes rodoviários, edifícios corporativos, além de agências bancárias e residências unifamiliares que proliferam nesse período. Entre os muitos exemplos, chamam particularmente a atenção, os estádios de futebol e as, hoje obsoletas, estações de telecomunicação. Outros programas ligados às medidas de incentivo ao transporte aéreo e ao turismo, fomentadas pelo governo federal, também foram comuns nestes anos. Em pareceria com o governo, a Viação Aérea Rio Grandense e a rede Tropical de Hotéis promoveram a elaboração de propostas de hotéis de alto nível, como os hotéis de Manaus, Recife e João Pessoa, três projetos encomendados ao arquiteto Sérgio Bernardes, porém só um construído. Em seu conjunto, esses projetos eram parte da política de desenvolvimento do Norte/Nordeste, em particular, com base na expansão econômica, industrial e urbana implantada pelo governo federal em nível nacional e como incentivo à construção civil e ao turismo na região.
Experimentalismo Tectônico na Arquitetura do Hotel Tambaú
O Tropical Hotel Tambaú (1966-1970) faz parte do exercício – no que diz respeito à expressividade – de investigação e experimentação que Sérgio Bernardes realiza ao longo de sua prática profissional, enfatizando o caráter tecnológico de suas propostas que, no final da década de 1960, é evidenciado nesse tipo edilício, como testemunham as propostas para os hotéis em Manaus e no Recife, além do próprio Hotel Tambaú em João Pessoa. Análogos em sua geometria circular esses edifícios se desenvolvem em torno de um núcleo de serviços e têm em comum um resultado estético associado às soluções técnicas e estruturais que os materiais propostos permitem.
Investigando a relação entre lugar e estrutura formal arquitetônica, tanto na implantação como no embasamento da arquitetura do Hotel Tambaú, observa-se que as características naturais do lugar, como o solo arenoso com lençol freático muito próximo da superfície e o movimento periódico das águas do mar, têm implicações importantes sobre as decisões projetuais. A consideração destas condicionantes naturais e a atenção dada ao entorno quando o edifício foi construído – escassas edificações de baixa altura, em sua maioria de uso residencial para veraneio – contribuem para valorizar as decisões e o partido adotado.
O edifício se acomoda à forma do terreno – uma ponta de areia entre duas enseadas que constituem as praias de Tambaú e Manaíra – limitado pelas ondas do mar e a avenida que contorna o tecido urbano. A forma geométrica circular adotada, com uma altura correspondente a, aproximadamente, dois pavimentos, não se sobrepõe à natureza:
A natureza é de tal exuberância que a arquitetura não deve aparecer: é um fenômeno de mimetismo.[…] para não se ter arestas na correção das inflexões de ângulos diferentes o processo deve ser circular, pois é localizado na rótula (11).
Esta opção é reforçada pela horizontalidade e intensificada pela inclinação das faces externas, atenuando, a presença do edifício na paisagem natural e urbana, inclusive à escala do transeunte. A solução formal busca, igualmente, atender a outro condicionante do terreno que é sua localização à beira-mar, não propondo nenhum obstáculo entre a edificação e o entorno natural. A planta circular é decomposta concentricamente em anéis nos quais se distribuem os ambientes do hotel. O anel externo corresponde à caixa mural. A limitação da área de terreno disponível para a construção do hotel, acentuada pela maré, sugere essa organização radial do perímetro em direção ao centro em um movimento centrípeto. O resultado são dois anéis de massa construída e dois anéis vazios, que correspondem aos pátios internos, resultando a estrutura formal do Hotel Tambaú em um edifício pátio.
Assim, da periferia em direção ao centro, os espaços são distribuídos de forma hierárquica, em espaços servidos e espaços servidores. A distinção desses espaços se dá na relação topológica das funções e na proporção dos volumes: os espaços servidores localizam-se nos anéis centrais, mais compactos e os espaços servidos nos anéis periféricos, de maiores dimensões. Os espaços servidos são ocupados predominantemente por apartamentos e áreas de lazer dos hóspedes. Os espaços servidores contêm recepção, administração, restaurante, estar (lobby), lavanderia, além de equipamentos técnicos, situados no espaço aberto do pátio de serviço, como as caldeiras, de onde parte a torre da caixa d’água, com a antena de para-raios em seu topo.
Parte do grande anel externo, à época da implantação do hotel, era destinada a equipamento comercial, como lojas de artesanato, salão de beleza, boate, farmácia, além de cinema e auditório, que se prolongava sob o piso de parte do pátio de lazer(12). Desse modo, a arquitetura do hotel propunha um novo conceito de hospedar, a partir de um espaço multifuncional em uma estrutura formal circular, provendo não apenas as necessidades dos hóspedes, mas tornando-se, igualmente, um ponto comercial e de encontro para os moradores da cidade, uma vez que, no momento de sua construção, a Praia de Tambaú era destituída de equipamentos de lazer e caracterizada pelo uso ocasional de veraneio.
A adoção de poéticas construtivas diferentes no fechamento da caixa mural – talude de areia e grama sobre placas de concreto versus esquadrias de madeira e vidro –, separadas pela continuidade rítmica radial de esbeltas empenas de concreto, subdivide o anel externo do hotel em duas partes: semicírculo Oeste, junto à rua de acesso ao hotel, e semicírculo Leste, junto ao mar. Pode-se observar que essa relação dicotômica decorre das condicionantes do lugar, que determinam a expressividade e o sentido do todo arquitetônico. Enquanto o semicírculo Leste se abre para o céu e o mar, permitindo o diálogo entre o exterior e interior, a contemplação da paisagem natural e a iluminação e ventilação natural dos ambientes internos, o semicírculo Oeste se fecha para o entorno construído, protegendo, da forte insolação típica do nordeste brasileiro, os ambientes sob o talude gramado.
Um dos elementos determinantes dessa dicotomia é a solução construtiva utilizada para o embasamento necessário à elevação da envoltória espacial, devido ao movimento das marés e ao lençol freático muito próximo da superfície.
O aterro, em sua maioria constituída de areia, no anel externo em sua porção Oeste, ao se estender em forma de talude, elevando-se em direção à cobertura, estabelece uma relação de continuidade na passagem da base pesada do “podium” para a envoltória do edifício em sua face externa. A areia, recoberta pelo gramado, colabora com a expressividade arquitetônica que remete ao telúrico, pesado, materializado. Em direção à cobertura, o talude não a toca e a continuidade é dada pelas vigas de sua estrutura resistente, um sistema viga-pilar com laje maciça de concreto armado. Assim, entre o limite superior do talude e os ambientes sob a cobertura, é criada uma circulação aberta para o exterior que permite a iluminação zenital dos ambientes (13) do pavimento térreo, amenizando a sensação de clausura provocada pelo plano inclinado de concreto da estrutura do talude, assim como, a iluminação natural através de elementos vazados da circulação dos apartamentos do pavimento superior.
Desse modo, o talude constitui o elemento de vedação dessa porção do anel externo do hotel, fechando-se para a paisagem urbana e negando o diálogo entre os ambientes internos e o exterior. A inclinação do talude e o gramado colocado sobre a areia indicam o recuo da edificação, ao mesmo tempo em que ao estender-se em forma de jardim até os limites do lote, ameniza essa inclinação e promove o diálogo com o transeunte e o entorno imediato.
A sensação de recuo e ao mesmo tempo de peso e clausura, é ampliada pelo acesso principal do hotel constituído por um extenso túnel em rampa que sobe em direção à recepção e que provoca uma ruptura no talude. A rampa na arquitetura moderna não é apenas um recurso de acesso aos edifícios, mas, também, um recurso que geralmente proporciona a leveza que o concreto armado permite, quando materializada em placas esbeltas, soltas do solo, em balanços com apoios centrais ou bi-apoiadas em suas extremidades e sem fechamentos laterais. A rampa de acesso ao Hotel Tambaú, longe de pretender essa leveza, aparece enclausurada pelos planos laterais de vedação em concreto aparente, embora sua largura seja considerável e conte com a presença de claraboias no teto. No entanto, após a passagem pelo acesso principal, a sensação de opacidade e peso é substituída pela surpresa provocada pela presença dos grandes pátios internos abertos para o céu e para a luz, com jardins que remetem à leveza da paisagem natural externa. Leveza essa também expressa pelas vigas de concreto em balanço das circulações dos anéis internos do hotel.
A expressividade proveniente da leveza dos balanços que a tecnologia do concreto armado permite, é acentuada pela esbeltez do plano da cobertura constituído de telhas meio-tubo, que também se projetam em balanço, e pelos peitoris vazados compostos de madeira e aço, encontrados igualmente nas passarelas que ligam os dois anéis cobertos.
O elemento de vedação dos ambientes destinados aos serviços de apoio aos apartamentos e circulação vertical colabora para reforçar essa leveza. São os painéis de elementos vazados cerâmicos que, além da leveza e transparência, remetem à renda produzida por artesãos da região. Uma relação dicotômica pode ser observada no uso do material cerâmico, ora como massa pesada, em compressão, representada pelos tijolos aparentes maciços utilizados como elemento de vedação da maioria dos espaços internos do hotel, ora como material leve e transparente ao ser vazado, apesar de se utilizar a mesma técnica de assentamento: empilhamento de unidades em compressão.
A sensação de surpresa continua ao se chegar ao ambiente das piscinas localizado no pátio interno, em posição oposta à recepção do hotel, e em nível mais baixo, de onde se avista a praia e o mar através das esquadrias de madeira e vidro dos terraços de jogos e lazer. A caminhada da recepção do hotel (cota +7,95m), em direção ao ambiente das piscinas (cota +5,00m), quando realizada sobre o plano de piso suavemente inclinado dos jardins do pátio interno, mimetiza o passeio na praia em direção ao mar. Além desse desnível entre a recepção e os ambientes da piscina e dos terraços de lazer, ainda há outro desnível em relação à praia, que protege esses ambientes da preamar e da visão dos banhistas, que podem andar sobre as areias que circundam o hotel, principalmente, na maré baixa.
Nessa porção Leste do anel externo do hotel, tornou-se necessário, devido à maré, a utilização de um embasamento de pedras calcárias, que passaram a funcionar como “gabiões”(14). Sobre esse embasamento de pedras, que na época da construção do hotel chegava a, aproximadamente 2 metros de altura, ainda se fez necessário à construção de um ambiente oco, vazio – uma espécie de quebra-mar – para permitir o fluxo e refluxo das águas do mar sob a primeira laje de piso, correspondente ao térreo (cota +5,00m) da edificação do hotel.
A vedação desse ambiente na face externa do anel, através de placas de concreto com aberturas em tiras horizontais necessárias à entrada das águas da preamar, dispostas entre os pilares da estrutura portante e acompanhando a sua inclinação, contribui para expressividade arquitetônica decorrente da continuidade rítmica das empenas de concreto armado dispostas radialmente.
Essas empenas têm função de proteção solar, além da função estética e estrutural, e juntamente com as esquadrias recuadas que delimitam as varandas, promovem dinamismo na face externa dessa porção do anel, além de torná-la permeável à paisagem exterior, à luz e ao ar.
Assim, diferentemente do semicírculo Oeste, nessa porção Leste do Hotel Tambaú, em sua face externa, na passagem do embasamento para a envoltória do espaço arquitetônico, uma relação de ruptura e descontinuidade é marcada pelo contraste entre o concreto aparente e os materiais naturais do terreno: areia da praia e água do mar. O elemento de vedação do “porão de pedras” em placas de concreto vazadas juntamente com as empenas e a estrutura portante, além de demarcarem com nitidez essa passagem, remete ao conceito de ancoragem do invólucro do espaço sobre o embasamento.
Esse efeito é materializado em duas situações: na vazante da maré (maré-baixa), quando há a fixação do edifício sobre as areias da praia, e na preamar (maré alta), que remete a ancoragem dos barcos sobre as águas do mar, estabelecendo uma tensão, concreto versus água. Uma provocação sensorial tátil, além de visual e auditiva é obtida pela alternância do fluxo e refluxo das águas do mar, que Sérgio Bernardes chamava de “bochecho”, principalmente, para quem se encontra no interior do edifício ou para quem o contempla da praia.
Na relação estrutura resistente e estrutura formal arquitetônica do Hotel Tambaú, observamos a utilização precisa de critérios técnicos e estruturais para a obtenção do bom desempenho da forma concebida. Essencialmente, para todo o edifício, adota-se o mesmo sistema portante – o de seção ativa viga-pilar com apoio duplo.
Nos dois anéis cobertos, esse princípio estrutural é materializado em concreto armado através do sistema construtivo moldado in loco, ainda artesanal, apesar da perspectiva de experimentação rumo à produção em série, através da modulação e padronização dos elementos da estrutura resistente. A distribuição radial desses elementos contribui para a modulação dos espaços e para a forma circular resultante, evidenciando a simplicidade da solução técnico-estrutural na obtenção de um resultado formal inusitado.
Entretanto, observam-se algumas diferenças sutis na materialização desse princípio estrutural, como condicionantes técnicos necessários às diferentes expressividades adotadas nos semicírculos Leste e Oeste.
No primeiro (Leste), constituído de dois pavimentos, a concepção de balanços que se equilibram mutuamente e a ligeira inclinação nas extremidades da laje dupla de piso entre os pavimentos colaboram para a leveza alcançada na transparência do edifício na relação interior/exterior e na legibilidade do princípio estrutural adotado.
No semicírculo Oeste, é usado o mesmo sistema de viga-pilar-laje, entretanto disposto em posição inclinada, que corresponde à base estrutural do talude, conferindo à estrutura resistente um resultado estético que remete ao pesado e comprimido. Nesse caso, a areia e o gramado ao encobrirem a estrutura resistente na face externa, reduz sua legibilidade quando contemplada do exterior, o que não acontece quando vista a partir dos ambientes internos.
A demarcação dos limites entre os dois semicírculos externos é acentuada por dois elementos funcionais. O primeiro desses elementos são os acessos secundários: um de serviço ao norte, constituído de um túnel sob o pavimento térreo, atravessando os três primeiros anéis do hotel até chegar ao anel correspondente ao pátio de serviço; outro ao sul (cota +5,00m), próximo ao pátio das piscinas, que permite a saída direta do usuário à praia.
O segundo elemento funcional que contribui na demarcação das diferentes expressividades dos dois semicírculos é a diferença de altura entre eles, devido à presença do pavimento técnico, entre o térreo e o pavimento superior do semicírculo externo Oeste.
A notável apropriação do potencial expressivo dos materiais e técnicas construtivas na arquitetura do Hotel Tambaú, pode ser percebida, ainda, na solução do plano de cobertura, disposto sobre os anéis do hotel, como finas lâminas, compostas por telhas “meio-tubo” em fibrocimento, entremeadas pelos sulcos circulares das calhas. A expressividade desse conjunto, demarcando os anéis construídos e os pátios internos, pode ser contemplada pela vista aérea do hotel, imagem que se tornou “cartão postal” de João Pessoa. A leveza do plano de cobertura é percebida pelos balanços que a telha de “meio-tubo” permite, quando contemplada tanto das varandas externas das suítes do pavimento superior como dos ambientes dos pátios internos do hotel.
A apropriação da solução técnica adotada para cobrir a forma circular dos anéis consiste na utilização de longos tubos de fibrocimento partidos ao meio, em seu sentido longitudinal. A existência das duas calhas, que exige o corte dos tubos no seu sentido longitudinal, colabora para a disposição radial da cobertura. A solução técnica, elaborada por Bernardes, é resultado da incessante investigação e experimentação de novos materiais e técnicas que caracterizam a prática profissional desse arquiteto.
Essa busca por novos resultados formais a partir de novos materiais e técnicas construtivas denota uma atitude projetual que privilegia o caráter tectônico da arquitetura e que caracteriza parte da produção moderna brasileira, desse período.
A riqueza plástica que se busca alcançar através dos materiais e elementos construtivos em sua diversidade de texturas e cores é igualmente encontrada na torre da caixa d’água, elemento de contraponto vertical à horizontalidade do hotel, com o qual se harmoniza utilizando os mesmos concreto e tijolos cerâmicos aparentes (15).
As condições políticas de sua realização, próprias de um processo autoritário, com fortes vínculos com a ditadura militar e o comando de um interventor federal, geraram e ainda geram muitas controvérsias. A construção de um hotel desse porte e com essa carga simbólica não poderia ter partido de uma decisão praticamente individual de um governante, deveria ter sido objeto de debate e concurso público, como outros projetos importantes, mesmo em outros momentos autoritários. Esse caráter autoritário permite um deslize ético, a sua construção na área de proteção da Marinha do Brasil, desconsiderando a legislação brasileira em suas instâncias de preservação do território. Por outro lado, a modernidade desejada frente à ausência de um processo de industrialização da construção em um país subdesenvolvido e periférico também foi objeto de debate e preocupação, apesar dos esforços empreendidos por profissionais de diversas áreas nessa busca.
Essas circunstâncias não tiram o mérito dessa obra prima do arquiteto. Em meio a esse contexto, como a maioria dos profissionais da arquitetura nesse momento, Sérgio Bernardes buscava caminhos para a racionalização e industrialização da construção, através de obras de arquitetura ímpares e de qualidade.
A análise do Hotel Tambaú mostra que uma forma arquitetônica inusitada pode ser alcançada através da expressividade de materiais e técnicas construtivas simples e convencionais. Embora executado em processo construtivo ainda artesanal, a meta, naquele momento, era buscar a lógica da produção em série através da modulação dos espaços e da industrialização dos elementos construtivos, era adequar os princípios modernos de racionalização e funcionalidade, às condições da cultura técnica, clima e economia de cada lugar do território nacional. Ainda que não estivesse claro que contornos teria esse processo de industrialização em um país periférico.
Apesar das polêmicas éticas e políticas que envolvem sua construção, o Hotel Tambaú tem entre muitas, duas qualidades inquestionáveis: por um lado, conseguir uma solução que estabelece um diálogo com o entorno imediato, transformando o lugar sem desfigurá-lo e, com o passar do tempo, integrar-se a ponto de não poder ser dissociado da cidade; por outro, revelar o recurso à lógica construtiva como um dos determinantes da dimensão estética da arquitetura produzida por Sérgio Bernardes, na direção do desenvolvimento de um processo de industrialização (em que pese o caráter de obra única do edifício em questão) e da necessidade (moderna) de experimentar e inovar, da arquitetura brasileira do século 20, fundado em lógica construtiva e direção similares.
notas
1
O projeto do Hotel Tambaú é de 1966 e o edifício foi inaugurado em 1970.
2
GAMBARRA, Thaise; TINEM, Nelci. Hotel Tambaú e a modernidade da capital da Paraíba. Seminário Latino-Americano de Arquitetura e Documentação. Belo Horizonte, 2008.
3
Um hotel para a cidade. A União. João Pessoa, 2 mar. 1963, p. 3.
4
Hotel Tambaú. A União. João Pessoa, 30 jul. 1969, p. 3.
5
Essa análise está apoiada em: ROCHA, Germana Rocha. O caráter tectônico do moderno brasileiro: Bernardes e Campello na Paraíba (1970-1980). Tese de doutorado. João Pessoa, PPPGAU/UFRN, 2012.
6
O Hotel Tambaú recebe esse nome após ter sido adquirido pela Companhia Tropical de Hotéis, em 1971.
7
Termo utilizado, ora como postura crítica frente à produção arquitetônica, ora como abordagem analítica.
8
FRAMPTON, Kenneth. Studies in tectonic culture. 2a edição. Massachusetts, MIT Press, 1995.
9
SEMPER, Gottifried. The Four Elements of Architecture and other writings. Tradução: H.F. Mallgrave. New York, Cambridge University Press, 1989.
10
BÖTTICHER, Carl G.W. The Principles of the Hellenic and Germanic Way of Building – with regard to their application to our present way of building. In: HERMANN, Wolfgang (Org.). What Style Should we Build? The German Debate on Architectural Style. Los Angeles, The Getty Center Publication Programs, 1992, p. 147-167.
11
BERNARDES, Sérgio. Vanguarda: prospectiva e busca. Revista de Cultura Vozes, Petrópolis, ano 64, volume LXIV, n. 1, Vozes, jan./fev., 1970, p. 21-44.
12
Atualmente esses ambientes, originalmente destinados ao lazer, são ocupados por um centro de convenções.
13
Esses ambientes eram originalmente destinados a lojas e serviços, mas sofreram reformas a partir da década de 1980 e foram substituídos por apartamentos, ampliando a capacidade de hospedagem do hotel.
14
Gabião é um cilindro oco de fitas de ferro, cheio de pedras, para servir em barragens, diques etc.
15
O concreto armado da estrutura resistente associada à transparência de painéis de elementos vazados no fechamento de torres de caixas d’água é uma solução já utilizada, entre outros exemplos, na caixa d’água de Olinda, de Luiz Nunes, construída em 1934 e na caixa d’água do Anhembi Tênis Clube, de 1961, projetada por Vilanova Artigas.
sobre os autores
Germana Rocha é doutora em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (2012). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/UFPB. Coordenadora do Laboratório de Modelos + Prototipagem-DAU/UFPB e membro-pesquisador do Grupo de Pesquisa Projeto, Tectônica e Midias Digitais (CNPQ).
Nelci Tinem é doutora em História da Arquitetura, História Urbana pela Universitat Politècnica de Catalunya ( 2001). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Pesquisador do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) e do Grupo de Pesquisa Projeto e Memória do CNPq.
Marcio Cotrim é doutor em História da Arquitetura, História Urbana pela Universitat Politècnica de Catalunya (2008). Professor do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – DAU/UFPB e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo – PPGAU/UFPB. Pesquisador do Laboratório de Pesquisa Projeto e Memória (LPPM) e do Grupo de Pesquisa Projeto e Memória do CNPq.