Instrumentos de proteção ao patrimônio cultural
O Tombamento foi definido pelo Decreto Lei 25 de 1937 (1) como o principal instrumento jurídico de proteção ao patrimônio cultural no Brasil. Sua aplicação é qualificada como limitação administrativa, ou urbanística, que objetiva fazer valer a função social da propriedade da qual deriva. As limitações administrativas são princípios de ordem pública que impõem a obrigação de não fazer ou deixar fazer, objetivando a conciliação entre o público e o privado, sem direito de indenização por parte do proprietário. Assim, o tombamento se caracteriza por ser uma limitação permanente, afastando o caráter absoluto do direito de propriedade sobre determinado bem em função do benefício da coletividade. Desta forma, o proprietário conserva em seu poder a totalidade de direitos inerentes ao domínio, ficando, contudo, sujeito, às normas que conduzem o exercício destes direitos.
O imóvel protegido por tombamento passa a ser tutelado pelo poder público, seja ele de propriedade pública ou privada. No entanto, o proprietário deverá arcar com a conservação do imóvel, sendo considerada negligência e sujeita a multa a sua deterioração, e de responsabilidade do proprietário sua manutenção e reparação.
Apesar do o DL 25/37 estabelecer através do instrumento do tombamento a proteção ao patrimônio cultural, incluindo a proteção de bens isolados, conjuntos ou sítios históricos, a inexistência de outros instrumentos específicos capazes de garantir a proteção da dimensão imaterial do patrimônio cultural e de conjuntos urbanos, naquele momento, limitou as possibilidades de reconhecimento e preservação destes bens.
A Constituição define a competência da União, Estados, Municípios e Distrito Federal para legislar sobre: “proteção ao patrimônio histórico, cultural, artístico, turístico e paisagístico” e estabelece em seu artigo 30 o encargo dos municípios para legislar sobre o tema, sendo possível a estes a suplantação das normas estaduais e federais dentro das necessidades locais, desde que não contestem as leis superiores (2).
Embora a Constituição Federal de 1988 (3) tenha aberto a possibilidade de outras formas de proteção ao patrimônio cultural, até o momento, os instrumentos específicos para o acautelamento e preservação de áreas urbanas históricas ainda são incipientes, sendo a Chancela da Paisagem Cultural, em nível Federal e a criação de zonas de proteção histórica e de proteção ambiental, no âmbito municipal, os mais conhecidos. Ainda assim, mesmo antes da aprovação da CF – 88, o tombamento foi utilizado para suprir essa carência, sendo reinterpretado de modo a se estender a competência do instrumento, por exemplo, no tombamento de áreas urbanas, como no caso de Ouro Preto, em Minas Gerais.
Não obstante, o tombamento continua sendo a principal ferramenta utilizada para proteção dos bens declarados de importância cultural no Brasil. Destaca-se que, o fato de esta ferramenta, enquanto limitação administrativa que decorre do interesse público, incidir diretamente sobre o direito de propriedade, faz com que o patrimônio cultural seja um campo de intensa disputa de interesses privados e públicos. Com intuito de equilibrar esta disputa, que abrange questões culturais e sociais em torno da propriedade privada e também da memória, são apresentados instrumentos e políticas públicas que objetivam um ajuste entre os interesses público e privado, como será discutido adiante.
Instrumentos de política urbana
O direito de propriedade passou por transformações conceituais dentro da lógica da organização social brasileira, partindo inicialmente do sentido individual, de forma absoluta e permanente, para o coletivo/social, onde o uso, gozo e disposição são limitados pelo Estado tendo como razão o bem coletivo. Assim, partindo dos limites ao direito de propriedade que a Constituição de 1934 (4) inseriu de forma ainda incipiente, e das ações de desapropriação, baseadas no conceito de função social que a CF de 1946 (5) previu em seu texto, a Constituição Federal de 1988, constituiu uma transformação representativa neste sentido. Esta última carta magna condicionou o direito de propriedade à função social da propriedade, submetendo o domínio privado ao atendimento do interesse público com maior evidência.
A função social da propriedade não questiona o fundamento da propriedade privada, mas é definida como uma estratégia de equilíbrio entre a lógica liberal e a social. A priori, ela impõe a utilização da propriedade para a realização de interesses sociais ou coletivos.
“para Silva, o Princípio da Função Social da Propriedade ‘transforma a sociedade capitalista sem socializa-la’, garante a propriedade como direito individual, mas projeta ela sobre um valor cultural que é a base da criação do Direito Urbanístico. [...] Assim, a Função Social da Propriedade Urbana visa atender às funções do urbanismo: habitação, o trabalho, a recreação e a circulação dos homens no território urbano” (6).
O Estatuto da Cidade se refere à Lei Federal nº 10.257 (7) aprovada em 10 de julho de 2001, que regulamenta os artigos 182 e 183 da Constituição Federal de 1988 (CF/88) e trata da política urbana no Brasil. A lei, que se propõe a dar suporte jurídico para a promoção da reforma urbana do país, é avaliada como uma das grandes conquistas do Movimento pela Reforma Urbana (8) que foi construído e ampliado em meio a lutas sociais, a partir dos anos de 1980.
Para compor o Estatuto foram criadas ou reformuladas ferramentas urbanísticas comprometidas com a função social da propriedade e vinculadas à codificação da interferência do Estado na propriedade privada. Desde então, estas ferramentas vêm sendo lapidadas e regulamentadas nos diversos ramos do direito, objetivando criar ferramentas para o planejamento, a gestão e a organização territorial das cidades.
Por apresentar diretrizes gerais para a política urbana, o Estatuto deixou a cargo de cada município efetivar os dispositivos que deverão regulamentar o seu Plano Diretor, segundo as características locais. O Plano Diretor é, ou deveria ser, de forma geral, o mais completo instrumento de planejamento dos municípios brasileiros. Os instrumentos propostos pelo Estatuto da Cidade deverão estar previstos no plano diretor municipal e, em alguns casos, precisarão ser regulamentados e detalhados posteriormente em leis específicas.
O tombamento também foi inserido no Estatuto da Cidade como um instrumento e mecanismo de política urbana. Desta forma, sua aplicação se expandiu do campo cultural para o urbano, oficializando o que já vinha sendo praticado no Brasil desde os primeiros anos de existência do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, com o tombamento de áreas urbanas, como foi o caso de Ouro Preto (1938) e do Sítio Histórico de Olinda (1968). Destaca-se ainda, entre as diretrizes gerais de planejamento do Estatuto o imperativo de: “proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico” (inciso XII do art.2º). Denotando uma maior inserção da política patrimonial no planejamento do desenvolvimento urbano e uma confluência dos instrumentos de gestão nesses dois campos.
Dentre os instrumentos existentes que impactam de forma convergente nas políticas urbana e patrimonial, e que, em tese, podem instrumentalizar e guiar de forma participativa o desenvolvimento urbano, e ainda, contribuir diretamente com a gestão do patrimônio cultural, destacam-se três mais comumente utilizados: o primeiro consiste na introdução de estímulos à preservação através de incentivos e benefícios fiscais e financeiros, como a isenção do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU do imóvel classificado como patrimônio cultural; o segundo dispositivo refere-se ao “Direito de Preempção”, que consiste na garantia da prioridade do poder executivo na compra de imóveis de interesse público em áreas previamente demarcadas pelo plano diretor; e o terceiro, se refere à “Transferência do Direito de Construir”, que será discutido a seguir.
A trajetória do conceito de solo criado e da transferência do potencial construtivo no Brasil
De acordo com Vera Rezende, Fernanda Furtado, Maria Teresa Oliveira e Pedro Jorgensen (9), e Luiz César de Queiroz Ribeiro e Adauto Cardoso (10), o “solo criado” surge como um novo instrumento de política urbana, com efeitos de regulação pública do uso do solo, no início dos anos 1970. As reflexões sobre este conceito se iniciaram na França e na Itália que, com o uso dessa ferramenta, desvincularam o direito de propriedade do direito de construir na lógica da ocupação da terra urbana.
O solo criado constitui uma proposta de enfrentamento dos efeitos da dinâmica capitalista de produção do espaço urbano, já que nasce em meio ao crescimento das lutas urbanas nas cidades européias, e contemporâneo do surgimento de governos populares baseados em alianças socialistas. Partindo-se do princípio de que a potencialidade construtiva de um imóvel é um produto coletivo, provindo de investimentos públicos no espaço urbano, chegou-se ao entendimento de que o potencial construtivo, ou o solo criado, é um produto social. Assim, a natureza do conceito de solo criado é fundamentada na ideia de que o direito de fazer uso de uma área urbana deve ser o mesmo para todos. Desta forma, o direito de construir equitativo na cidade torna-se inerente ao direito de propriedade.
No Brasil, a “Carta do Embu”, publicada em 1976 por diversos juristas e planejadores urbanos, trouxe a discussão do solo criado e da transferência do potencial construtivo para o cenário nacional. Consta, neste documento, como primeira conclusão o seguinte trecho:
“1. É constitucional a fixação, pelo Município, de um coeficiente único de edificação para todos os terrenos urbanos. 1.1. A fixação desse coeficiente não interfere com a competência municipal para estabelecer índices diversos de utilização dos terrenos, tal como já se faz, mediante legislação de zoneamento. 1.2. Toda edificação acima do coeficiente único é considerada solo criado, quer envolva ocupação de espaço aéreo, quer a de subsolo” (11).
Em algumas cidades brasileiras, o solo criado já possuia um histórico de aplicação desde o final da década de 1970, como São Paulo, Rio de Janeiro e alguns outros municípios das periferias metropolitanas. No entanto, foi em 2001, que o Estatuto da Cidade incorporou o conceito de solo criado na legislação brasileira através de instrumentos de política urbana que deveriam ser vinculados ao plano diretor de cada município e detalhados em leis municipais específicas.
Os principais instrumentos do Estatuto da Cidade que carregam a matriz do solo criado são a Outorga Onerosa do Direito de Construir – OODC e a Transferência do Direito de Construir – TDC, que, apesar de terem origens diferenciadas, tratam da cessão de potencial construtivo em troca de ações de interesse público.
O instrumento da OODC aborda o ato administrativo de concessão, por parte do poder público, de potencial construtivo acima do coeficiente básico definido pelo zoneamento urbano, mediante contrapartida financeira a ser prestada pelo proprietário do imóvel solicitante. Os recursos provindos desta operação deverão ser utilizados na implantação de melhorias urbanas, definidas nos incisos I a IX do art. 26 do Estatuto da Cidade.
Já ao tratar do instrumento da TDC, a Lei permite ao proprietário de imóvel urbano, privado ou público, exercer em outro local o potencial construtivo previsto no plano diretor ou em legislação urbanística dele decorrente. Este potencial é calculado através da área do terreno e de seu coeficiente de aproveitamento segundo a lei de uso e ocupação do solo e a transação pode ser feita entre privados, sob mediação do poder público.
A priori, a Transferência do Direito de Construir foi concebida com o intuito de compensar proprietários de imóveis protegidos por tombamento ou localizados em áreas de preservação ambiental, por não desfrutarem de todo o potencial construtivo permitido pelos índices urbanísticos, em função da manutenção do seu valor histórico, arquitetônico, paisagístico ou ambiental. No entanto, a partir da discussão estabelecida pelo Estatuto da Cidade, ampliaram-se as possibilidades de aplicação do instrumento, que ao ser estabelecido para cada município em sua especificidade, poderia ser utilizado para os seguintes fins:
“I – implantação de equipamentos urbanos e comunitários; II – preservação, quando o imóvel for considerado de interesse histórico, ambiental, paisagístico, social ou cultural; III – servir a programas de regularização fundiária, urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda e habitação de interesse social” (12).
Os instrumentos derivados do conceito de solo criado se adaptaram aos zoneamentos municipais, variando de acordo com os coeficientes de aproveitamento empregados que podem ser únicos ou diferenciados pelos fatores de localização, oferta de serviços, valor imobiliário, entre outros.
Por natureza, a Transferência do Potencial Construtivo é um dispositivo que visa equilibrar interesses públicos e privados em função da proteção ao patrimônio cultural. No entanto, a prática deste e dos demais instrumentos de planejamento estabelecidos no Estatuto da Cidade tem assumido outros sentidos no âmbito da produção do espaço urbano. A apropriação destas ferramentas pelo mercado imobiliário, a falta de controle e capacidade de gestão das administrações municipais, ou conciliação do poder público com o interesse privado, têm gerado aplicações equivocadas que vão à contramão dos princípios trazidos por esta lei.
Entende-se, assim, que estes instrumentos representam uma forma de inserção do capital privado na política urbana para viabilizar a produção do espaço urbano. Ao mesmo tempo, eles representam uma tentativa de conciliação entre os interesses sociais e particulares no campo urbano. A este respeito, Pedro Jorgensen Jr. traz a seguinte análise:
“Pode-se argumentar que, em operações dessa natureza, o termo Transferência do Direito de Construir é supérfluo, pois já se trata de uma Operação Urbana Consorciada. E com justa razão. Penso que o termo Transferência de Potencial Construtivo (o “direito de construir” não pode ser transferido porque não existe como “bem” do proprietário) deva ser reservado para operações (especiais e correntes) de manejo espaço-temporal do potencial construtivo definido no zoneamento” (13).
Nesta mesma citação, o referido autor insere outra importante reflexão que questiona a denominação “direito” de construir, já que este direito, expresso pelo potencial construtivo não empregado, é uma construção coletiva e não um bem do proprietário. Desta forma, o potencial de construção de certa área urbanizada é uma concentração de investimento público, ou seja, é um produto social decorrente da produção social do espaço urbano.
Questiona-se, assim, o habitual entendimento da Transferência do Potencial Construtivo – TPC como forma de compensação aos proprietários de imóveis que estão sujeitos às limitações administrativas do tombamento, ou a outra semelhante. A ação compensatória, geralmente justificada pelo fato de que a limitação urbanística reduz o valor do imóvel, pode ser questionada quando comparada a outras limitações urbanísticas ou administrativas que também são motivadas pela utilidade pública. Cabe destacar que, as limitações administrativas não necessariamente geram o dever de indenizar. Assim, no caso da Transferência do Potencial Construtivo, não há critérios suficientes na legislação existente que possam conferir potencial de construção como medida compensatória à limitação urbanística de forma justa.
Entende-se, portanto, que diferentemente de constituir uma compensação ao proprietário pela perda de um suposto direito construtivo, o instrumento deve ser visto como um incentivo à proteção ao patrimônio cultural. A transferência é, assim, uma forma de obtenção de recursos para manutenção e proteção deste patrimônio cultural.
Experiências de transferência de potencial construtivo no Brasil, alternativas e limitações
Considerando o panorama das experiências de uso da TPC no Brasil desde a década de 1970, é possível encontrar aplicações com repercussões variadas, seja do ponto de vista do imóvel que cede, seja daquele que recebe potencial construtivo. Cabe destacar que, assim como outras normativas urbanas, a transferência do potencial construtivo é um instrumento sujeito à pressão dos agentes modeladores do espaço urbano e passível de manipulação por parte de interesses privados.
Para ilustrar este panorama, são citadas algumas aplicações e particularidades ocorridas em cidades que implementaram este instrumento mesmo que anteriormente à aprovação do Estatuto da Cidade, e que revisaram a ferramenta em seus planos diretores após a aprovação desta lei federal.
Em 1969, São Paulo estabeleceu, na Lei Municipal nº 7.288/69, a possibilidade de proprietários de imóveis particulares, atingidos pelo alargamento da Avenida Paulista, doarem seus terrenos à prefeitura, facultando-se aos doadores adicionar a área doada no cálculo do índice de aproveitamento a ser aplicado no imóvel remanescente, fazendo uso neste sentido do conceito de solo criado aqui discutido.
Contudo, a transferência do potencial construtivo, enquanto ferramenta juridica, foi aprovada apenas em 1984, através da Lei municipal nº 9.725, que estabeleceu incentivos, obrigações e sanções relativas à preservação de imóveis históricos. O Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PE-SP), aprovado em 2002, foi elaborado com base no Estatuto da Cidade, de 2001, e apresentou a TPC em seu Capítulo III, dentre os Instrumentos de Gestão Urbana e Ambiental.
O PE-SP retoma os termos do Estatuto da Cidade ao disciplinar que o instrumento da TPC se destina à implantação de equipamentos urbanos e comunitários, preservação ambiental e atendimento a interesse social ou cultural. O plano determina, ainda, que podem utilizar a transferência, os imóveis inseridos em áreas destinadas à preservação, recuperação e manutenção do patrimônio cultural, denominadas no zoneamento urbano como Zonas Especiais de Preservação Cultural – Zepec, de acordo com o art. 24, Inciso I, da lei de zoneamento urbano decorrente deste plano (nº 13.885/2004).
Grande parte das experiências práticas do município de São Paulo com o instrumento da TPC, entretanto, está vinculada à gestão urbana com fins de regularização fundiária, construção de habitações de interesse social e urbanização de áreas ocupadas por famílias de baixa renda. Estas soluções têm facilitado as negociações entre o Estado, enquanto mediador do interesse social, e o setor privado.
No caso da cidade de Curitiba – PR, a TPC é um instrumento presente na Lei Orgânica do Município, regulamentada desde 1982 pela Lei nº 6.337, e tem o objetivo de preservar o patrimônio cultural e histórico local através de incentivos construtivos. Em 2000, seu uso foi ampliado, inserindo-se na lei os objetivos de preservação de áreas verdes e fundos de vale e de regularização fundiária de assentamentos informais.
Na aplicação da ferramenta, em Curitiba, é utilizado um mecanismo de controle de adensamento denominado “fator de correção”. O fator de correção tem valor variável em cada área da cidade e tem como objetivo incentivar a transferência para áreas onde há um interesse de adensamento por parte do poder público, por serem áreas com boa oferta de infraestrutura, por exemplo. Desta maneira, quanto mais baixo o fator de correção de determinada área, maior será o potencial transferível. Os valores dos fatores de correção são determinados e zoneados através de decretos específicos. Acerca do limite de recepção do potencial construtivo neste município, Isabela Bacellar Brandão Guimarães destaca que:
“Em Curitiba, os imóveis que recebem o potencial construtivo deverão atender aos demais parâmetros da Lei de Zoneamento e Uso do Solo. Cabe ressaltar que na introdução do instrumento Solo Criado, pela Lei nº 7420/1990, os coeficientes de aproveitamento máximos existentes passaram a ser os coeficientes básicos (14).
A lei, regulamentada em Curitiba em 1982 e revisada em 2000, prevê que o valor do potencial transferido deve ser equitativo ao custo da ação de interesse público efetuada sobre o bem. Ou seja, no caso do patrimônio cultural protegido, o valor econômico do potencial construtivo a ser transferido deverá ser equivalente ao custo estimado para o restauro ou manutenção do bem em questão. Para isso, a prefeitura do município expõe em seu endereço eletrônico, uma tabela onde consta a disponibilidade de solo criado passível de aquisição por particulares, deixando o processo mais simplificado. Assim, utilizando o mecanismo de conversão do custo do restauro de edifícios públicos em cotas de potencial construtivo a serem vendidas pelo município, a administração conseguiu viabilizar o restauro de construções historicamente importantes para a cidade. Este foi o caso da Basílica de Curitiba, que teve seu restauro financiado por este tipo de transação.
No entanto, os impactos da aplicação do instrumento ainda são questionáveis no que diz respeito ao ambiente urbano que recebe potencial, como é o caso de algumas das experiências em que sua aplicação foi efetuada no mesmo terreno do imóvel gerador de potencial, produzindo efeitos negativos e demonstrando a falta de critério no emprego do instrumento. As fotos abaixo mostram o efeito meramente fachadista, do ponto de vista da preservação do imóvel histórico, e favorecedor de interesses do mercado imobiliário decorrente da aplicação do potencial construtivo numa edificação protegida por tombamento na Alameda Dr. Carlos de Carvalho, em Curitiba.
Estas soluções são apresentadas como um acordo equilibrado entre os interesses públicos e privados, mas na realidade, ao se analisar caso a caso, percebe-se que há uma submissão dos interesses de preservação aos interesses do mercado imobiliário e da indústria da construção civil.
Levanta-se ainda a questão de que na aplicação do instrumento em Curitiba ao se permitir que áreas recebessem aumento de potencial construtivo provindos da OODC e da TPC, concomitantemente, possibilita-se um superadensamento de variadas áreas da cidade, especialmente, das regiões onde há uma maior concentração de patrimônio protegido.
Em Salvador BA, o TPC, conhecido como Transcon, foi criado sobre as bases legais da Lei Municipal nº 3805/1987, da Lei Orgânica/1990 e do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – Lei nº 6586/2004. O Transcon foi instituído para fins de preservação de áreas de interesse do patrimônio histórico, artístico, paisagístico e ecológico, implantação de infraestrutura urbana, equipamentos urbanos ou comunitários, ou utilização pelo próprio Município, regularização de situação fundiária e formação de estoque de terrenos pelo Município. A lei também determinava que as áreas potencialmente receptoras do potencial construtivo deveriam ser indicadas pelo Plano Diretor, considerando-se que este seria revisto em 1992 e que as operações seriam então objeto de avaliação específica e aprovadas mediante autorização legislativa. Desta forma, cada situação seria analisada em sua particularidade.
Em 1990 foi aprovada a Lei Orgânica do Município, que reafirmava a utilização do Transcon. Na Lei Orgânica foi aberta a possibilidade de alienação do potencial construtivo calculado, assim como sua transferência de uma zona para outra. A lei também permitiu que particulares ao doarem seu imóvel, ou parte dele, ao poder público para fins de implantação de infraestrutura urbana, receberiam em potencial construtivo o valor desta transação. Sendo possível seu uso também como moeda de troca nos casos de desapropriação para fins de utilidade pública. Entretanto, a escassez progressiva de áreas para recepção deste potencial gerou um grande desequilíbrio, ampliando a pressão do mercado imobiliário sobre as alterações na legislação urbanística local.
A revisão do PDDU, prevista para 1992, aconteceu em 2004, quando por pressão do mercado imobiliário, aprovou-se um dispositivo que condicionava o uso da OODC à redução dos estoques de potencial construtivo originados pela aplicação do Transcon. Neste dispositivo, a implantação da Outorga Onerosa no município era postergada até a redução do saldo de certificados de Transcon a 20% do total existente naquele momento de aprovação do PDDU/2004. Esta determinação foi amplamente debatida devido a seu descabimento e finalmente suprimida do PDDU em 2008.
Antônio Heliodoro Lima Sampaio traz uma análise acerca da aplicação do Transcon em Salvador, demonstrando como este instrumento foi utilizado pelo mercado imobiliário para se apropriar das mais valias urbanas, assumindo um papel legislativo que se sobrepõe ao próprio plano diretor municipal (15). O autor destaca a inexistência de delimitação de áreas passíveis de aplicação do instrumento, tanto doadoras e a serem protegidas, quanto receptoras deste potencial construtivo adicional. Ele aponta, assim, a fragilidade da norma, o que deixa o tema sujeito a avaliações subjetivas e variadas interpretações.
Esta fragilidade da lei permitiu que, ao contrário de um desenvolvimento urbano qualitativo, as bordas marítimas da cidade, que são áreas de extrema valorização fundiária, fossem sensivelmente impactadas pelo direcionamento de potencial construtivo adicional, em torres que se destacam na paisagem urbana soteropolitana.
A Lei continua sendo utilizada como uma espécie de moeda para o mercado imobiliário, potencializando a especulação imobiliária local, além de continuar permitindo que a paisagem da cidade seja agredida dentro da legalidade.
Em 1975, Porto Alegre aprovou um decreto semelhante que possibilitava aos proprietários de terrenos que cedessem área para ações de interesse coletivo, adicionar ao potencial construtivo do seu imóvel, o índice de aproveitamento referente à parte abdicada. É possível perceber que estas duas ações já constituíam uma forma incipiente da, atualmente denominada, transferência de potencial construtivo. Nesta experiência, a área urbana é decomposta em macrozonas de planejamento. Assim, os índices construtivos podem migrar de um lote para o outro, desde que dentro desta mesma unidade territorial.
O adensamento de Porto Alegre é limitado em cada Unidade Territorial, assim como planejado para cada quarteirão. O controle deste adensamento é feito pela Secretaria de Planejamento do município e a atualização da densidade é feita a cada aprovação de nova edificação.
A maior parte das cidades não faz um estudo preliminar para determinar áreas receptoras de TPC, e sem esta avaliação não é possível reconhecer a demanda do mercado imobiliário por potenciais construtivos adicionais. Deve-se observar ainda que a TPC não é a única maneira de aquisição de potencial construtivo adicional, como é o caso da Outorga Onerosa do Direito de Construir, possibilitando assim, que a TPC seja utilizada conjugada a estes instrumentos ou que se torne supérflua em determinadas situações.
Além disso, ao se estabelecer o limite de que a transação seja feita somente entre edifícios de uma mesma unidade territorial ou zona de planejamento, dificulta-se a aplicação do instrumento, principalmente na possibilidade de preservação e manutenção de centros históricos. Isto se justifica pelo fato de que, em geral, as edificações de valor histórico se encontram nos centros tradicionais das cidades, em zonas que, comumente, já atingiram seus índices urbanísticos máximos ou não dispõem de terrenos que podem receber o potencial construtivo adicional produzido pela operação da TPC.
Conclusão
Há uma desintegração do planejamento urbano e uma limitação posta aos instrumentos do Estatuto da Cidade, em especial, no que se refere ao patrimônio cultural, diante da fragilidade institucional, em confronto com os movimentos rápidos e vorazes desse mercado.
Percebe-se que o controle sobre o adensamento das cidades e o interesse do mercado imobiliário são muitas vezes vetores opostos das forças que promovem a produção do espaço urbano. O uso das ferramentas, que por sua natureza teriam a função de garantir a função social da propriedade, tem sido, contudo, no Brasil, determinado, comumente, pelo mercado imobiliário e guiado pelas melhores vantagens apresentadas para o setor privado.
Neste sentido, o discurso do desenvolvimento econômico da cidade é colocado como justificativa para a concessão de benefícios que submetem o interesse público ao privado. Desta forma, mantém-se a prevalência da lógica da produção capitalista, frente às tentativas de responder efetivamente as demandas coletivas por meio de instrumentos de proteção do interesse público como, por exemplo, o tombamento e a Transferência do Potencial Construtivo.
A luta pelo direito à cidade surgiu em contraposição a um modelo de urbanização excludente, e a aprovação do Estatuto da Cidade é considerada o momento mais representativo desta luta. Entretanto, chegamos novamente ao ponto de que a lei, em si, não altera a realidade, demonstrando que, se a prática que guia a aplicação dos instrumentos está ligada a um modelo urbanístico espoliativo, o objetivo real da reforma urbana ainda não pode ser alcançado.
notas
NA – Trabalho desenvolvido durante o mestrado acadêmico na Faculdade de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia sob orientação da professora Marcia Sant’Anna.
1
BRASIL. Decreto-lei nº 25, de 30 de novembro de 1937. Organiza a proteção do patrimônio histórico e artístico nacional. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Rio de Janeiro, 6 dez. 1937. Disponível em: <www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del0025.htm>. Acesso em: 25 e abril de 2017.
2
CASTRO, Sônia. O Estado na preservação de bens culturais: o tombamento. Rio de Janeiro, Livraria e Editora Renovar, 1991.
3
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal/Centro Gráfico, 1988.
4
BRASIL. Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1934. Disponível em < www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao34.htm >. [Acesso em 25 de abril 2017].
5
BRASIL. Constituição (1946) Constituição dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 1946. Disponível em <www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constitui%C3%A7ao46.htm>. [Acesso em 25 de abril 2017].
6
SILVA, 1981, p. 93, 94 e 97. Apud GUERRA, Ana Clara Pitanga Diniz. Fragmentos: de época, de eventos e a legislação do Solo Criado em Salvador BA. Dissertação de mestrado. Salvador, PPGAU UFBA, 1996, p. 46.
7
BRASIL. Estatuto da Cidade. Lei Federal no 10.257, de 10 de julho de 2001. 3ª edição. Brasília, Instituto Polis, 2005.
8
O Movimento Nacional pela Reforma Urbana foi criado em janeiro de 1985, a partir da junção de diversos movimentos sociais que estavam em luta pelo reforma urbana e reforma agrária no país. Este movimento foi o grande responsável por diversas conquistas da política urbana na Constituinte de 1988 e deu origem ao atual Fórum Nacional pela Reforma Urbana, que continua atuando neste sentido.
9
REZENDE, Vera F.; FURTADO, Fernanda; OLIVEIRA, Maria Teresa Corrêa de; JORGENSEN JUNIOR, Pedro. A outorga onerosa do direito de construir e o solo criado uma necessária avaliação das matrizes conceituais. Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 11, n. 2, CFCH UFPE, Recife, 2009.
10
RIBEIRO, Luiz César de Queiroz; CARDOSO, Adauto. O solo criado como instrumento da reforma urbana: uma avaliação do seu impacto na dinâmica urbana. Ensaios FEE, v. 13, n. 1, Porto Alegre, 1992.
11
Carta do Embu, 1976. REZENDE, Vera F.; FURTADO, Fernanda; OLIVEIRA, Maria Teresa Corrêa de; JORGENSEN JUNIOR, Pedro. Op. cit., p. 60.
12
Estatuto da Cidade, Art. 35. L.F.10.257, 2001.
13
JORGENSEN Jr., Pedro. A Transferência do Direito de Construir vista dos lotes de destino: apenas uma modalidade de aplicação dos recursos da outorga onerosa. Blog À beira do Urbanismo <http://abeiradourbanismo.blogspot.com.br/2008/02/transferencia-do-direito-de-construir.html>. 2008. [Acesso em 20/03/2015].
14
GUIMARÃES, Isabela Bacellar Brandão. Transferência do direito de construir: questões e conflitos na aplicação do instrumento do Estatuto da Cidade. Dissertação de mestrado. Orientadora Vera Rezende; coorientadora Fernanda Furtado Niterói, UFF, 2007, p. 64.
15
SAMPAIO, Antônio Heliodoro Lima. 10 necessárias falas: cidade, arquitetura e urbanismo. Salvador, EDUFBA, 2010.
sobre a autora
Bárbara Lopes Barbosa é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2011), mestre em arquitetura e urbanismo pela Universidade Federal da Bahia e atualmente cursa o doutorado no Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – IPPUR, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.