Uma das principais características da arquitetura moderna, em seu sentido mais amplo, reside na inovadora proposição formal a partir das relações e transformações do programa de necessidades e sua interpretação. Nesse sentido, os projetos de residências unifamiliares sempre constituíram um fértil laboratório para essas questões (1). Mesmo não sendo um produto industrial, a “máquina de morar” era concebida como tal, e movimentar-se em seu interior através de percursos por vezes surpreendentes fazia parte desse enunciado: a integração espacial surgia para propor e permitir a fruição da arquitetura. As proposições de Le Corbusier para a Maison Citrohan forjaram importante matriz tipológica, especialmente a versão construída em Weissenhof, de 1927. Caracterizada pelo prisma puro elevado do solo, pela organização do programa em faixas e planta racional com dupla altura nos espaços de convívio, esta tipologia é viabilizada através do esquema Dom-Ino de estrutura e vedação independentes, o qual permanece presente em diversas transformações tipológicas posteriores da casa moderna. Igualmente paradigmáticas são as propostas em planta livre de Mies, como na casa Tugendhat, de 1930, onde o vão livre sob teto plano suportado por colunas soltas abriga e integra diversas funções, e a depuração posterior do esquema, a Casa Farnsworth, de 1951.
No Brasil, mais especificamente no cenário da Escola Paulista, a partir dos anos 1950, foram projetadas casas que procuravam uma nova ordem familiar através da liberdade espacial, adotando o volume único solto no lote, em cujo interior ocorre a valorização dos espaços comuns em detrimento dos espaços privativos. A Casa Olga Baeta (1957), de Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi – por meio da organização do programa em bloco único e esquema estrutural independente e revelado – dá o tom da arquitetura residencial paulistana da década seguinte (2), os anos 1960, quando então a tendência brutalista consolida-se e passa a repercutir nacionalmente (3). Naquele contexto, surgem diversos arquitetos talentosos que elaboram propostas com importantes pontos em comum, tanto em aspectos referentes à linguagem e à materialidade – concreto aparente, estrutura evidenciada, abstração formal – como à organização espacial: os dormitórios e banheiros racionalizados limitam-se às necessidades vitais de sono e higiene, e ao mesmo tempo em que buscam a melhor insolação cedem o protagonismo aos espaços de convivência, interligados em meios níveis sob o mesmo pé-direito alto. Os automóveis, com toda sua carga simbólica do período desenvolvimentista, estão expostos sob o mesmo volume que abriga o acesso, sem maiores distinções hierárquicas. Características tangíveis como a preferência pela aparência rude do concreto armado, o fechamento de planos verticais com materiais não revestidos e o emprego de instalações aparentes concorrem para a associação do termo brutalismo àquela arquitetura. Mesmo que o brutalismo não fosse uma causa, consolidou-se como estética. A esse respeito é oportuna a colocação de Ruth Zein:
“Não tendo sido nunca uma tendência arquitetônica plenamente aceita pelos autores críticos eruditos, entretanto foi abraçada, em algum momento de suas carreiras, pela quase totalidade dos arquitetos vivos e atuantes nos anos 1960/70 (senão nos discursos, certamente nas obras), mantendo ainda hoje forte influência indireta sobre alguns dos caminhos arquitetônicos contemporâneos” (4).
No Rio Grande do Sul, a primeira geração de arquitetos modernos forma-se no início dos anos 1950, ou seja, no período em que a Escola Carioca consolidava sua presença no cenário nacional. A produção arquitetônica concentra-se em Porto Alegre, e as casas modernas do período incorporam com alguma naturalidade elementos presentes em projetos de arquitetos como Oscar Niemeyer, Jorge Moreira e Affonso Eduardo Reidy, de vertente corbusiana: são observados telhados em asa de borboleta, fachadas inclinadas, muxarabis, cobogós, azulejos e brises, elementos de alguma maneira adaptados a propostas de espacialidade algo acanhada, definidas por ocupações presas às divisas laterais. Desse mesmo período são as Casas Jaoul, de Le Corbusier, publicadas em 1956. Nesta obra a alvenaria de tijolos é deixada à vista, juntamente com o concreto, numa demonstração de que não era apenas este material aparente a caracterizar a linguagem brutalista, mas também aqueles presentes nos planos de fechamento. Porém, antes de aportarem nas latitudes riograndenses, essas influências são inicialmente filtradas pela insurgente Escola Paulista, da qual o nome de mais força é o de Vilanova Artigas. Aos poucos, no final dos anos 1950 e início dos 1960, as influências paulistas brutalistas se fazem sentir na produção dos arquitetos formados na capital gaúcha: não somente na aparência estética, onde prepondera o concreto armado deixado à vista, mas também na espacialidade interna, com o emprego de vazios de dupla altura e soluções em meios níveis associadas a uma diminuição ou até mesmo ausência de compartimentação dos espaços principais. A estrutura é evidenciada e a demonstração do trabalho artesanal das formas de concretagem é valorizado. Diferentemente de São Paulo, entretanto, em Porto Alegre a casa elevada e solta do lote é rara, sobressaindo certo pragmatismo em soluções de ocupação junto às divisas – até por características do parcelamento do solo na capital gaúcha, de muitos lotes estreitos e relativamente profundos.
Um arquiteto e duas Caixas
O arquiteto Edenor Antônio Buchholz (Nova Prata, 1938 – Porto Alegre, 2001) graduou-se pela Faculdade de Arquitetura da UFRGS em 1964. Teve alguma experiência acadêmica como professor de projetos nas Faculdades Integradas Ritter dos Reis, ainda na década de 1970, de onde afastou-se para dedicar-se à estruturação do setor de arquitetura da Caixa Econômica Federal para o Rio Grande do Sul. Possui duas obras publicadas no livro seminal Arquitetura moderna em Porto Alegre, de Xavier e Mizoguchi, ambas agências bancárias da própria CEF, em coautoria com o arquiteto Cesar Dorfman. A primeira, de 1973, é a agência Moinhos de Vento, localizada no bairro de mesmo nome, em lote regular com algum desnível na esquina das ruas 24 de outubro e Quintino Bocaiúva. A segunda, de 1976, é a agência Independência, localizada em avenida e bairro de mesmo nome, implantada entre divisas de lote de meio de quadra. Construídas em concreto armado aparente, com ampla valorização da estrutura, seguem em uso até hoje, com algumas modificações de organização interna decorrentes de mudanças funcionais e operacionais no sistema bancário. Externamente, a agência Moinhos de Vento foi bastante desfigurada ao receber revestimento de placas de alumínio composto sobre o concreto aparente.
Os dois exemplares projetados por Buchholz e Dorfman, de vertente brutalista, fazem parte de um conjunto de obras de mesma filiação estética já destacadas por Luccas no sentido de fusão de enunciados da Escola Paulista a soluções autóctones (5). De fato, a autonomia adquirida pela Escola Paulista Brutalista na virada dos anos 1960 para os 1970, em grande parte advinda da hegemonia econômica e cultural de São Paulo após a transferência da capital federal do Rio para Brasília, teve ecos importantes na produção arquitetônica de diversas regiões brasileiras naquele período, e Porto Alegre não foi exceção. Diversos arquitetos, ainda que com produção relativamente pequena, foram capazes de demonstrar através do conjunto de obras sua intepretação daquelas influências, com maior ou menor crítica sobre as fontes. Às experiências em edificações de uso público ou privados em maior escala – agências bancárias, edifícios administrativos governamentais, garagens, escolas, indústrias – juntaram-se experiências igualmente significativas no âmbito das residências unifamiliares (6), ainda que em pequeno número quando comparadas a São Paulo. São exemplos as residências Germano Vollmer Filho, de 1967, de João Carlos Paiva da Silva; Marco Aurélio Rosa, de 1969, e Gildo Milman, de 1972, de David Leo Bondar e Arnaldo Knijnik; Marcello Blaya, de 1970, de Carlos Maximiliano Fayet e Suzy Therezinha Brücker Fayet. Em alguns casos, houve casas projetadas para uso de seus próprios autores, como exemplificam as residências de Selso Maffessoni, de 1972, Cesar Dorfman, de 1972, Jorge Decken Debiagi, de 1972, e David Leo Bondar, de 1978, todas presentes na referencial publicação de Xavier e Mizoguchi. Ausente daquela publicação, mas inserida no mesmo contexto, encontra-se a casa projetada e construída pelo arquiteto Edenor Buchholz, entre 1978 e 1980, objeto de análise deste artigo. Situada cronologicamente na fronteira entre herança e prática, tema deste evento, a casa Buchholz é aqui apresentada como uma representante algo tardia da Escola Paulista Brutalista em solo portoalegrense, o que se pretende evidenciar com a análise que segue.
Bloco único entre medianeiras
A residência do arquiteto Edenor Buchholz é um bloco único implantado entre divisas de lote retangular de 11 metros de frente e 44 metros de profundidade, com desnível ascendente de cerca de 3,50 metros em direção ao fundo. Típico do parcelamento dos bairros Bela Vista e Mont Serrat, o terreno situa-se na rua Tito Livio Zambecari, região residencial de Porto Alegre, onde predominavam residências unifamiliares. Atualmente, após dois planos diretores posteriores à construção da casa (1979 e 1999, com atualizações em 2010 e 2011), a região, como de resto a cidade inteira, está em processo de verticalização, com novas construções em lotes remembrados, observando-se também a substituição de uso em casas que ainda permanecem. A planta de situação indica recuo frontal de 6,30 metros, maior que os 4 metros usuais. Isto se deve a uma previsão de alargamento do leito da via, até hoje não concretizado. A área total construída é de cerca de 392 m², com área interna útil de 283 m². Esta considerável diferença refere-se ao jardim interno e aos generosos espaços de dupla altura. A exemplo de diversas soluções do brutalismo paulista (7), a casa foi concebida em volume único que abriga todas as funções, aqui com taxa de ocupação de pouco mais de 50%; porém, ao contrário das casas brutalistas arquetípicas, soltas no lote, a casa Buchholz toca as divisas laterais, abrindo-se para o exterior através de dois grandes vãos na frente e ao fundo, orientados respectivamente a norte e sul. Estes vãos são viabilizados mediante dois pórticos de concreto cujas vigas estão apoiadas pelas extremidades em pilares dispostos nas divisas. Aqui, a concordância curva de pilar e viga, em quarto de circunferência tangente a ambos, não pertence ao léxico brutalista e parece flertar com elementos encontrados na obra de Niemeyer em Brasília, remetendo, na obra de Buchholz, à solução da pérgola da agência Moinhos de Vento da Caixa Econômica Federal, de 1973. Levada em consideração a obra do arquiteto, porém, a casa repete em menor escala a solução espacial da agência Independência da Caixa Econômica Federal, de 1976, também um pavilhão entre medianeiras (8).
Projetada para casal e três filhos, a casa atende a um programa convencional recorrente para a época, distribuído em três meios-níveis: no inferior, cuja cota mais baixa está 2,50 metros acima do nível da rua, localizam-se abrigo para dois carros, estar, jantar, lavabo, cozinha, área de serviço, dependência de empregada e varanda, além do jardim interno. Alguns degraus estabelecem pequenos desníveis e consequentes delimitações dos espaços. No nível intermediário, estão quatro dormitórios voltados para norte e dois banheiros, estes na prumada das dependências de serviço do nível inferior, constituindo núcleo hidráulico compacto e internalizado. No nível superior, em direção oposta, localiza-se o estúdio, em mezanino solto no espaço sobre jardim e ambientes de estar. Externamente, o programa se completa com varanda em toda a extensão da face sul, voltada para jardim e piscina com pequeno vestiário. Internamente, a organização espacial da casa Buchholz encontra congruências à da Casa Baeta, de Artigas e Cascaldi, assim qualificada por Acayaba:
“A casa Olga Baeta (1957) é a paixão dos discípulos. Nasceu modelo. Nela alguns moraram, outros ainda guardam seu desenho. Modelo que mais versões terá na arquitetura paulistana: o espaço único distribuído em meios-níveis, a sala com pé-direito duplo, o estúdio a meio-nível e os dormitórios acima” (9).
Como se observa, o projeto de Artigas e Cascaldi localiza o estúdio no meio-nível que faz a conexão entre os dois pavimentos, a partir do patamar da escada, ou seja, os desníveis são trabalhados no sentido transversal da planta. Na casa Buchholz, os desníveis acontecem no sentido longitudinal: o estúdio está no nível superior, em mezanino, no término do percurso espacial e de onde se descortinam as visuais para o estar e a varanda, ambos de dupla altura. Os dormitórios, portanto, estão no nível intermediário, no lado oposto ao mezanino, sobre o acesso frontal e orientados para a fachada pública, a norte. Esta posição, bastante adequada, é decisão quase compulsória devido ao rigoroso inverno gaúcho, quando a fachada sul é castigada pela maior parte das intempéries. Recuada do plano da fachada, a esquadria alta encontra-se protegida pela projeção da laje inclinada, oculta pela viga de borda. Se a casa Baeta, solta das divisas, permite a apreciação do perfil figurativo da cobertura (10), o mesmo não ocorre na casa Buchholz: as lajes inclinadas acompanham o maior sentido do lote e só podem ser visualizadas internamente, ou na comparação dos desenhos dos cortes.
A clara setorização do programa, expressa nas plantas, revela disciplina formal que também é característica da Escola Paulista mas antes ainda da arquitetura moderna. Entretanto, graças à quase ausente compartimentação, os setores íntimo e social estão integrados na maior parte do tempo, numa concepção de grande abrigo sob o qual o convívio familiar se dará de forma constante. Buchholz não deixou memórias ou escritos a respeito dessas (possíveis) decisões de projeto. Entretanto, em depoimento dado à filha mais nova, então estudante de arquitetura, a respeito da casa, Buchholz recorda que a família – casal e três crianças – costumava acampar cerca de um mês por ano, no verão, ao longo de várias temporadas. O convívio informal e o despojamento do ambiente das barracas foram de alguma forma trazidos para o projeto da casa, evidenciados pela integração dos setores. A escada com degraus suspensos, articulada com o jardim interno iluminado pela parte superior, exerce importante papel nessa integração e está disposta no sentido do acesso principal, porém com arranque do lado oposto, convidando ao passeio arquitetônico.
Em que pese o fato de ter sido projetada entre 1977 e 1978, ou seja, no período em que a própria Escola Paulista Brutalista gradativamente esgotava suas pautas (11), a casa de Edenor Buchholz demonstra a persistência e propagação daqueles atributos. Diferentemente de outras tendências arquitetônicas dentro do Movimento Moderno, o brutalismo não possui um manifesto ou mesmo um marco inquestionável; entretanto, merecem transcrição os itens com ares de postulado elencados por Acayaba, ao caracterizar as residências paulistanas dos anos 1960:
“A arquitetura de São Paulo dos anos 60 deu ênfase ao espaço e não à forma, ao projeto social e não ao caráter simbólico através de algumas normas.
A lógica da implantação em cada situação geográfica destacou as casas do período como objetos singulares na paisagem.
O programa organizado num único bloco, ao contrário das casas vizinhas com edículas, sugeria a reorganização dos bairros residenciais.
Pela sua inserção na trama urbana, a casa surgiu como um modelo ordenador na cidade.
Remanejado o programa, simplificaram-se os cômodos, limitados agora às necessidades vitais de sono, higiene, alimentação e convívio. Eliminada a hierarquia entre as partes, os compartimentos se pareciam.
Embora não constituísse um produto industrial, a casa foi racionalizada como tal. Definida a estrutura, o resto era projetado como componente. Reduzidos a espaços mínimos e concebidos como “núcleos hidráulicos”, os banheiros e serviços foram agenciados no espaço como peças industriais.
Estruturas aparentes, dormitórios fechados apenas por divisórias e equipamentos como sofás, mesas e lareiras organizavam os espaços, enquanto que instalações aparentes, materiais e cores aplicados sobre eles os caracterizavam.
Essas “máquinas de habitar”, executadas em concreto e alvenaria em seu estado bruto, com a preocupação de não camuflar o trabalho, valorizaram a técnica artesanal.
Enquanto externamente, os volumes das casas se assemelhavam, internamente ofereciam uma nova riqueza espacial.
As plantas eram imaginadas em função de um espaço interno próprio: o pátio, o jardim interno ou o vazio central. Responsáveis pela micropaisagem interior e animados pela vida cotidiana que exibiam, esses espaços eram um convite eloquente ao sonho. À sua volta, era possível o caminhar contemplativo ou a conversa eventual entre as pessoas.
Internos ou externos, os espaços sociais, separados apenas pela transparência dos vidros, evoluíam um do outro. Aí, as relações sociais se deram sob uma nova ótica ou ética. [...]
Nesse período fértil e unitário da arquitetura paulista, as casas confirmam o ideal do convívio comunitário, da construção compacta onde os espaços se ligam sob um único vão, do espaço central como núcleo ordenador. Daí também a proposta social das casas como a cidade, da cidade como as casas” (12).
Evidentemente que a descrição de Acayaba é de viés generalista, apropriada a seu contexto específico de caráter panorâmico, e não se refere em momento algum a uma arquitetura brutalista. Zein avançaria nessas definições com seu “Abecedário das características da arquitetura da escola paulista brutalista” (13), buscando abranger não só as casas, mas todo o conjunto de obras estudadas pela autora. Lista as características segundo seis itens principais: partido, composição, elevações, sistema construtivo, texturas e ambiência lumínica e características simbólico-conceituais. Apesar de vários itens coincidirem com a concepção da casa Buchholz – solução em monobloco, vãos livres, emprego de vazios verticais associados a meios-níveis, ausência de compartimentação, predominância de cheios sobre vazios, emprego de sheds, além da materialidade – uma característica fundamental a diferencia de seus referenciais paulistas, ligada à solução estrutural. Em que pese a existência de dois elementos aporticados nas fachadas norte e sul, nos quais o vão de 11 metros é vencido por viga única de seção 25 x 110 cm, as empenas laterais, sobre as divisas, constituem um híbrido de parede portante de tijolos e cintas de amarração, e dividem com algumas paredes internas do núcleo hidráulico a função de suportar as lajes inclinadas de cobertura, ancoradas em vigas invertidas nos dois sentidos. Esta solução remete parcialmente ao esquema da casa Baeta, embora não pareça ter sido preocupação de Buchholz a clara percepção do sistema estrutural ao optar por solução mais conservadora, sem balanços junto às fachadas, ainda que com interessante resultado espacial. Infelizmente o projeto estrutural foi extraviado, e os originais do projeto de arquitetura obtidos junto à família do arquiteto não dão conta da solução as-built. Algumas fotos da casa concluída que ilustram este artigo permitem o vislumbre do que foi pensado pelo arquiteto (14). Além disso, para esta análise a casa foi redesenhada e modelada tridimensionalmente. Observa-se no modelo e também in loco que os quatro pilares evidenciados nos vértices da planta e nas extremidades das fachadas, ainda que cumpram seu papel de liberar os dois vãos transversais, não possuem a mesma autonomia daqueles presentes nas casas paulistas elevadas do solo – até porque não podem ser percebidos simultaneamente.
Tal característica, por sua vez, é exemplarmente demonstrada nas casas “gêmeas” projetadas por Paulo Mendes da Rocha e João de Gennaro para a família do primeiro, conhecidas como Casas Butantã, de 1964. Em que pese as relações apenas epidérmicas entre estas e a casa Buchholz, interessa aqui destacar o esquema dos dormitórios, voltados para uma varanda interna/externa na qual uma grande bancada sob as janelas integra horizontalmente os espaços e sugere o convívio familiar. Da mesma forma, a residência Sérgio Mauro Giorgi (15), projetada por Siegbert Zanettini, 1968-1971, faz uso de expediente análogo: os três dormitórios, de dimensões compactas, integram-se através de painéis móveis junto à grande esquadria da fachada frontal, e a exemplo do descrito por Marlene Acayaba, são delimitados somente por divisórias fusionadas ao mobiliário.
Aqui, Buchholz emprega solução que mescla Paulo Mendes da Rocha e Siegbert Zanetini: os quatro dormitórios, verdadeiras células de dormir e vestir, acoplam-se em planta por meio do mobiliário em marcenaria. Uma única parede centralizada comparece para auxiliar no suporte da laje de cobertura, sendo um dos poucos elementos revestidos e pintados de branco. Um sistema de painéis articulados entre os armários e os montantes da extensa janela em fita permite a integração dos espaços em distintas combinações, revelando a grande bancada horizontal estruturada em nova viga de concreto e finalmente reforçando as premissas de convívio familiar.
Uma análise mais aprofundada das plantas das casas Buchholz e Giorgi, de Zanettini, evidencia semelhanças de zoneamento e arranjo espacial; a segunda, com esquema estrutural bem mais arrojado, organiza o programa em dois níveis bem definidos, interligados por longa rampa iluminada por zenitais. É na comparação do nível superior, onde a casa se desenvolve (a exemplo das Butantã) que as maiores semelhanças com a casa Buchholz aparecem: a setorização em três faixas transversais, da frente para o fundo – dormitórios, depois núcleo hidráulico de banheiros/cozinha e circulação, e por fim espaços de estar e jantar – além da fachada frontal com a grande janela em fita sobre o abrigo dos carros e o acesso. A casa Giorgi, afastada de uma das divisas, permite corredor externo de serviços, enquanto que Buchholz interrompe as faixas transversais para criação deste espaço, que possui dupla altura e farta iluminação superior através de sete orifícios cobertos com domos translúcidos. Ambas, entretanto, certamente possuem origem tipológica comum na residência Mário Taques Bittencourt 2, de 1959, de Artigas e Cascaldi, que apresenta solução em dois corpos – dormitórios à frente, estúdio em meio nível ao fundo – conectados por rampa associada a jardim interno aqui descoberto, integrados sob a mesma carapaça que é vedação e estrutura ao mesmo tempo.
A caixa por dentro e por fora
Após vencer o desnível de 2,50 metros em relação ao nível da rua Tito Livio Zambecari, o ingresso na casa se dá junto ao abrigo dos carros, em painel de esquadria recuado da fachada, à moda da casa Baeta. No mesmo plano, mas na parede, está o acesso de serviço. A distinção do acesso social está no plano transparente, através do qual o jardim lateral borra os limites entre interior e exterior e contribui para que a continuidade espacial seja percebida desde a entrada. Ao lado do jardim, a escada vazada em dois lances é protagonista; se não é a rampa da casa Mário Taques Bitencourt, de Artigas, cumpre papel similar no vai-e-vem de meios níveis entre estar, estúdio e dormitórios, disposta no sentido longitudinal da planta.
O estúdio disposto em mezanino aberto para os dois lados – jardim interno e estar – possuía originalmente peitoril opaco em madeira para o lado da sala, a fim de assegurar certo recolhimento. As plantas originais da casa, de 1977, trazem de fato o termo “estúdio” devidamente normografado. Ao referir-se a este espaço na Casa Baeta, proposta para cliente cientista, Artigas caracteriza sua multiplicidade de uso:
“Nessa casa incluí a compreensão de um certo problema da intelectualidade que sempre quis ter, em sua casa, um recinto que chamavam de escritório. Comecei a perceber que essa intenção não era só para ter uma sala extra, mas tinha que ter um quarto de uso mais lúdico. Podia ser uma coia que se chamasse estúdio, onde tinha uma biblioteca, e era possível se refugiar para determinadas atividades. Mas não precisava ter uma porta; o espaço devia ser aberto e múltiplo de maneira que estabelecesse uma relação de visualidade do total do espaço com uma intenção de educação da família. Não havia uma parede que dizia: aqui não pode entrar” (16).
Este espaço suspenso, evidenciado pelos desenhos dos cortes e onde Buchholz em certa época chegou a montar escritório, vence o vão transversal mas apoia-se parcialmente no núcleo hidráulico central, o qual abriga os espaços compartimentados: cozinha e lavabo no nível inferior, e os três banheiros do nível intermediário, junto aos dormitórios. Abaixo, os ambientes de estar e jantar foram dimensionados criteriosamente, sem excessos. A verticalidade da lareira ressalta a dupla altura da faixa de estar e jantar, e um rebaixo no piso acomoda os assentos. Ao lado deste espaço, sob o mezanino, um estar mais formal associa-se ao jardim interno, cujas aberturas zenitais, similares às do corredor de serviço, impedem o miolo da casa de ressentir-se da falta de luz natural. Dois pequenos sheds de concreto voltados para norte e posicionados sobre o estar trazem luz por reflexão a este espaço. Seguindo a lógica de acomodação do nível térreo à topografia, o estar está três degraus acima e tem na varanda ao sul seu prolongamento natural em direção ao jardim, cujo nível mais alto, ao fundo, contém a piscina. Apesar da franca relação com o jardim através da esquadria de dupla altura, casa é introvertida, pensada para o convívio familiar. Essa estratégia, a exemplo de grande parte das casas urbanas brutalistas, faz com que a espacialidade interna seja o foco de interesse, antecipando atitude contemporânea do habitar na metrópole. O exterior, algo enigmático, na época da construção chegou a suscitar dúvidas na vizinhança leiga se poderia se tratar de uma agência bancária (17), o que de certa maneira condiz com a descrição de Acayaba para as residências paulistas dos anos 1970, quando a casa se converte “no espaço genérico que a qualquer tempo poderia abrigar outras atividades” e quando “surgiu finalmente a oportunidade de ensaiar, na casa, o edifício público” (18).
Se o aspecto exterior é dominado pelo concreto armado deixado à vista, internamente este material divide o protagonismo com madeira e alvenaria de tijolos aparentes, em linguagem oriunda das Casas Jaoul. O tijolo à vista e a madeira são materiais de emprego recorrente na arquitetura residencial gaúcha e numa certa tradição pertencem ao imaginário do caráter doméstico nesta latitude. De tijolos maciços, as alvenarias portantes são de execução cuidadosa e se acomodam às cintas e vigas de concreto; somente na divisa do corredor de serviço aparecem trechos de tijolos vazados, dispostos perpendicularmente a fim de possibilitar alguma ventilação. A organização da planta em faixas transversais não possui modulação estrutural, então o tijolo à vista se espalha pelos planos verticais, desde os muros externos na divisa no recuo frontal até a varanda ao fundo. Isso reforça a continuidade espacial e o caráter ambíguo, supostamente desejado pelo arquiteto, de espaços internos com aparência de exterior.
Na cobertura, o sistema de vigas invertidas libera espaço para os dutos do sistema central de ar condicionado entre o telhado e a laje. O maquinário localiza-se sobre o mesmo bloco hidráulico, em posição centralizada, e é percebido pela veneziana de retorno. Se os materiais são aparentes, como apregoa a estética brutalista, a casa não revela suas instalações a não ser pelos discretos pluviais junto aos pares de pilares de cada fachada.
Situação atual e conclusão
A oportunidade de revisitar por meio deste artigo a casa projetada por Edenor Buchholz, fazendo uso de redesenhos e modelagem tridimensional, foi uma experiência compensadora. Entretanto, a observação direta, através de visita in loco, revelou destino comum de tantas outras residências modernas de Porto Alegre: vendida pela família após o falecimento do arquiteto, foi convertida para uso comercial e acumulou modificações que terminaram por desfigurá-la totalmente. Locada para sede de revista, a casa sediou recente evento de decoração de interiores; os materiais, texturas e a estrutura foram encobertos por forros de gesso e revestimentos espúrios em todos os ambientes, dificultando a observação da estrutura e dos materiais originais. Houve substituição de parte do piso e também dos corrimões e parapeitos originais de madeira. O recuo de jardim foi convertido em estacionamento e sobre a fachada frontal foi acoplado um plano único de vidros espelhados. O desconforto causado a este pesquisador durante a visita só foi parcialmente amenizado pelo fato de que a espacialidade marcante ainda pode ser percebida e, com algum esforço, usufruída.
Ruth Verde Zein (19) alerta para o fato de que, em que pese o fato de os pressupostos da Escola Paulista terem se propagado através de novos talentos em diversas partes do Brasil, a diluição gradativa de seus conceitos gerou obras vulgares e desprovidas de maior consistência. Este é um risco nem sempre compreendido por arquitetos que buscam de forma acrítica pertencer a determinada corrente arquitetônica. Ainda que algo distante no espaço e até mesmo no tempo de sua identificada filiação, esse não é o caso da residência Edenor Buchholz. A condição periférica da arquitetura moderna produzida no sul do Brasil não impediu que a solidez conceitual do cânone brutalista com origem na Escola Paulista, hoje já criticamente sistematizada, descrita e relativizada, tenha sido bem compreendida e adaptada por Buchholz nos anos 1970. Como coloca Piñon, a arquitetura moderna é uma forma de projetar e não um estilo, “um modo de enfrentar e resolver a construção da forma radicalmente distinto do classicista, sem perder nada da consistência que caracteriza sua ideia de ordem” (20). Face às análises expostas nesse artigo, sobretudo por suas características espaciais e de materialidade, é possível concluir que a obra original se insere com naturalidade no âmbito das arquiteturas herdeiras da linhagem brutalista em Porto Alegre. Uma moderna esquecida, nem tão longe demais das capitais, que este pequeno artigo buscou documentar e reconhecer.
notas
1
O presente artigo faz parte de um estudo mais abrangente que está sendo desenvolvido a partir de projeto de tese de doutorado apresentado ao PROPAR/UFRGS em 2016 a respeito das residências modernas em Porto Alegre, englobando cerca de 70 casas do período 1950-1970, das quais cerca 20 nunca foram publicadas.
2
ACAYABA, Marlene Milan. Residências em São Paulo: 1947-1975. São Paulo, Projeto, 1986, p. 25.
3
Arquitetura brutalista. Coordenação Ruth Verde Zein, FAU Mackenzie, link Conceitos <www.arquiteturabrutalista.com.br>.
4
ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura da escola paulista brutalista (1953-1973). Orientador Carlos Eduardo Dias Comas. Tese de doutorado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2005, p. 290.
5
LUCCAS, Luís Henrique Haas. Concreto aparente e valorização da estrutura: a influência estética do brutalismo em Porto Alegre nos anos 60/70.
6
Idem, ibidem.
7
ACAYABA, Marlene Milan. Op. cit. A autora coloca que os novos loteamentos residenciais criados pelos investimentos da Cia. City, a partir das primeiras décadas do século 20 em São Paulo, foram responsáveis pela expressiva produção residencial na capital paulista. Havia restrições normativas relativas à taxa de ocupação e obrigatoriedade de afastamentos em relação às divisas.
8
Esta estratégia de ocupação também pode ser observada em diversas casas modernas de Porto Alegre, inclusive as referidas anteriormente neste artigo e que fazem parte de projeto de pesquisa apresentado ao Propar em jun. 2016.
9
ACAYABA, Marlene Milan. Op. cit., p. 17.
10
Vilanova Artigas, descrevendo a casa Baeta, faz referência figurativa: “Aqui, ponho as tábuas da empena na vertical, como se fosse a concepção estrutural da casinha da minha infância”.
11
ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura da escola paulista brutalista (op. cit.), p. 265.
12
ACAYABA, Marlene Milan. Op. cit., p. 155.
13
ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura da escola paulista brutalista (op. cit.), p. 33.
14
Visitei a casa em 1989, em atividade da disciplina de Estudo da Forma Arquitetônica I da FA/UFRGS (professores Carlos Moura e Claudio Fischer). Em que pese o enorme tempo transcorrido, restaram lembranças algo impactantes para um estudante de arquitetura de primeiro semestre, especialmente no tocante à espacialidade interna.
15
A casa Sergio Mauro Giorgi foi projetada em 1968 e construída em 1971. O projeto foi publicado na Revista Acrópole número 352. Recebeu o 1º Prêmio Categoria Projeto/Habitação Unifamiliar – Prêmio Especial Carlos Barjas Millan, IAB/SP, 1967 e também 1º Prêmio Categoria Habitação Unifamiliar IAB/Nacional, 1968.
16
Vilanova Artigas sobre a Casa Baeta. In FERRAZ, Marcelo Carvalho; PUNTONI, Álvaro; PIRONDI, Ciro; LATORRACA, Giancarlo; ARTIGAS, Rosa (Orgs.). Vilanova Artigas. Série Arquitetos Brasileiros, São Paulo, Fundação Vilanova Artigas/Instituto Bardi, 1997, p. 72.
17
Fato mencionado em depoimento fornecido pela arquiteta Cláudia Buchholz, filha do arquiteto, que habitou a casa entre 1980 e 2001.
18
ACAYABA, Marlene Milan. Op. cit., p. 323.
19
ZEIN, Ruth Verde. Arquitetura da escola paulista brutalista (op. cit.), p. 269.
20
PIÑON, Helio. Teoria do projeto. Porto Alegre, Livraria do Arquiteto, 2006, p. 20.
referências bibliográficas
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sobre o autor
Daniel Pitta Fischmann é arquiteto (Faculdade de Arquitetura da UFRGS, 1995), mestre (Propar UFRGS, 2003) e doutorando (Propar UFRGS, desde 2016). Exerce prática profissional desde 1996 e docência desde 1998. Professor da FAU PUCRS e do Centro Universitário IPA Metodista.