Este texto busca apresentar um panorama histórico sobre as experiências coletivas desenvolvidas nas cidades brasileiras, destacando eventos marcantes vinculados a resistência e reinvindicações dos direitos urbanos e sua influência na constituição de novas práticas urbanas na construção da cidade. Para isso, apresenta-se um recorte a partir da década de 1960, reconhecendo-a como marco significativo das lutas urbanas no Brasil, e observando a partir de então, a composição de diversos fatores na construção política e econômica do país.
Além disso, procurou-se estabelecer conexões com as novas formas de ativismo urbano, que baseiam-se na apropriação do espaço e no processo de criação e intervenção colaborativo. A organização desses grupos agindo de forma horizontal, anárquica e flexível consolidou-se principalmente durante os anos 2000, com o avanço tecnológico e uso da internet em grande escala, facilitando a comunicação e estabelecendo novas formas de relacionamentos sociais. Diante disto, busca-se compor uma potente discussão que relaciona a ação civil e a construção da cidade e da cidadania.
Panorama dos Movimentos Sociais Urbanos
Os movimentos Sociais possuem diversos estudos teóricos, formulados nos mais variados campos acadêmicos tanto no escopo internacional, como nacional, que destacam diferentes enfoques e permitem diferentes interpretações. Segundo Manuel Castells (1) os movimentos sociais são sempre constituídos por um agrupamento de indivíduos que defendem uma causa, um objetivo sempre relacionado a um bem coletivo, nunca a ações individuais, onde a principal fonte de produção social é a comunicação socializada. Para muitos autores os movimentos surgem como uma forma de pressão a uma ação determinada por um governo, a um sentimento de injustiça compartilhado ou até mesmo com a insatisfação das pessoas com as ações da política vigente (2).
Ao construir o panorama dos Movimentos Sociais Urbanos nas cidades brasileiras, realiza-se um recorte a partir da década de 1960 pela grande importância histórica e pelo marco social conquistado por estes Movimentos. Neste momento, as grandes mobilizações urbanas ganharam destaque, consolidando-se a partir da ascensão das primeiras metrópoles do Brasil como por exemplo São Paulo, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Salvador, embasados pelo aumento populacional nas cidades, e as transformações nos modos de produzir, habitar e viver da sociedade.
Ao observar o contexto político-econômico do Brasil naquele momento, observa-se que durante o final da década de 1950, sob a presidência de Juscelino Kubitschek, diversos projetos da chamada “política desenvolvimentista” foram implantados pelo país, foi estabelecido um dos maiores projetos rodoviaristas da história, até então, a indústria brasileira passou a receber grandes investimentos, tanto da esfera pública quanto privada, o que fomentou a criação de novos tipos de empregos e subsidiou o crescimento populacional nas cidades, a inauguração da cidade de Brasília como a nova capital do país, tornou-se um grande símbolo da modernização do Brasil naquele período.
Com isso, desencadeou-se um processo migratório que gerou grande concentração de pessoas nas cidades de médio e grande porte (3). Durante os anos de 1960, identificou-se pela primeira vez que a maior parte da população do país estava concentrada em áreas urbanas, o Brasil “deixou de ser um país agrícola para ser um país urbano [...] finalmente, a grande maioria se tornou proprietária de suas casas, trabalhador assalariado e consumidor de massa” (4).
No início da década de 1960, João Goulart tornou-se presidente do Brasil, e sob seu governo foram formuladas propostas que culminaram nas Reformas de Base. Buscava-se encontrar formas de estabelecer mudanças sociais que pudessem diminuir as desigualdades promovidas pela herança do Brasil colonial, que fundamentou-se principalmente na concentração de renda, e de terras, tornando-os elementos estruturais para a compreensão do processo de formação desigual que se espalhou pelas cidades e mais notoriamente por seus territórios periféricos.
“As reformas de base abrangiam os campos fiscal, administrativos, da política, da educação, da saúde, do trabalho entre outras” (5). Durante o governo de Goulart, defendia-se a ideia de uma maior intervenção do Estado na economia como um todo, além de recuperar, como função do Estado, o bem-estar social. Naquele momento, as reformas de base garantiram forte apoio, a partir de movimentos populares, organizados entre os trabalhadores urbanos, trabalhadores rurais, universitários e outros. Tratar sobre as questões da reforma agrária e da reforma urbana eram as principais pautas das Reformas de Base em 1963, reflexo das crises urbanas e do desenfreado processo de urbanização das cidades.
Em 1964 ocorreu um golpe militar, que destituiu João Goulart da Presidência. Passou ao poder Marechal Castelo Branco, e por ele foi instaurado no Brasil um regime ditatorial militar, que justificou-se pela imposição de uma ameaça comunista. Este processo, dentre muitas questões, promoveu o arrefecimento da luta pela reforma urbana, através da repressão contra os movimentos sociais articulados naquele momento. Leis que destituíram a legalidade de greves por parte dos trabalhadores e o bloqueio da participação de estudantes em questões políticas foram aprovadas. Além disso, dentro deste regime havia forte demanda em controlar a liberdade associativa, a fim de que fossem contidas ameaças de resistências ao regime estabelecido.
O reflexo dessas políticas, resultou no constante esvaziamento do espaço público, observado principalmente nas grandes cidades brasileiras, uma vez que o encontro de pessoas era caracterizado como ato subversivo. Por isso, as discussões e organização de novas formas de ação política sofreram atraso. Naquele momento, não foi possível engatar na formação do país um projeto democrático, que levasse em consideração o Estado de Direito e o exercício da cidadania e da liberdade política.
A população das áreas urbanas cresceu de forma significativa, as cidades viviam a falta de políticas públicas voltadas para as classes populares, este processo culminou em extensas ocupações irregulares, formando novos bairros, fomentado o crescimento das favelas, autoconstrução de habitações e ocupações, em regiões de baixa ou inexistente infraestrutura urbana, que abrigavam classes de baixa renda e alta vulnerabilidade social (6).
Este contexto mobilizou a retomada dos movimentos sociais, na luta por melhores condições de vida nas cidades brasileiras, neste momento tinham apoio significativo das comunidades eclesiais de base, formadas pela ala progressista da Igreja Católica (7). Destaca-se nestas insurgências as manifestações reivindicatórias de melhorias urbanas, que a partir da década de 1980, mostraram-se consolidadas como atores significativos e atuantes das questões políticas e sociais do país, “lutavam pelo direito a ter direitos” (8).
A pauta da melhoria urbana envolvia temáticas como o acesso à terra urbanizada, função social da propriedade privada, meios de mobilidade, habitação e a desigualdade social. A mobilização pelo reestabelecimento da democracia, acompanhou principalmente os movimentos sociais que se organizavam em torno das questões urbanas, estes fortaleciam-se frente ao aprofundamento da crise urbana nas grandes cidades.
O cenário econômico dos anos de 1980, foi marcado pela hiperinflação, segundo dados do Instituto de Pesquisas Econômicas – Fipe, a inflação média no país chegou a 233,5% ao ano (9), era possível que um mesmo produto dobrasse de preço em dias. Isso fez com que salários de trabalhadores não acompanhassem as taxas da inflação, que eram alteradas mensalmente, fazendo com que o poder de consumo de grande parte da população, ficasse notoriamente comprometido.
Em 1984, sucessivas manifestações de apoio e campanhas em favor de eleições diretas potencializavam a necessidade de se estabelecer uma sociedade democrática baseada na liberdade política. Estas reinvindicações ganharam repercussão e atividades no âmbito nacional, diante da grande pressão popular obtido pelo movimento das Diretas Já, houve a aprovação das eleições diretas às prefeituras e posteriormente a presidência da república, decretando o fim da ditadura militar brasileira em 1985. Com isso, o país deu início a um longo processo de redemocratização, que consolidou-se com a promulgação de uma nova Constituição Federal em 1988.
Neste momento, destaca-se a luta pela inserção da emenda constitucional de inciativa popular da Reforma Urbana, apresentada durante a Assembleia Nacional Constituinte em 1987 (10). O fato de tratar-se de uma emenda de iniciativa popular, que aborda especificamente de questões urbanas na Constituição, já demonstrava a potência das ações democráticas realizadas pelos Movimentos Sociais Urbanos na construção das cidades no período de redemocratização. Pode-se citar como fato marcante do engajamento popular na esfera política e na organização das demandas urbanas, o projeto de Orçamento Participativo implantado na cidade de Porto Alegre em 1989, que posteriormente tornou-se exemplo internacional no que diz respeito a transparência e compartilhamento de responsabilidades sobre os recursos públicos.
Apesar de aprovada, a emenda constitucional da Reforma Urbana, precisaria ser regulamentada em forma de lei. Para isso, foi organizado o Fórum Nacional de Reforma Urbana 1987. Este Fórum contou com importantes atividades, o encontro agregou diferentes reinvindicações populares que atuavam (e atuam) por todo o país, envolviam trabalhadores autônomos, operários, movimentos ligados as questões de acesso às terras rurais, sindicalistas, líderes comunitários, religiosos entre outros.
Foi a primeira vez que questões urbanas foram abordadas legislativamente em uma Constituinte brasileira, tornando-se um grande marco, pois tratava-se de uma conquista direta dos movimentos sociais urbanos. Como resultado, seu desdobramento gerou embasamento jurídico que abarcava as necessidades dos mais vulneráveis e constituía autonomia aos poderes municipais para desenvolverem processos democráticos participativos na construção das cidades brasileiras.
Dinâmicas do contexto urbano neoliberal nas cidades
É possível identificar que as reinvindicações vão de encontro ao contexto político, econômico e social encontrado nas cidades do mundo bem como nas cidades brasileiras. Nota-se que o desenvolvimento do espaço urbano está vinculado a discussão e ao estabelecimento de direitos, em especial, àqueles excluídos territorialmente. Torna-se importante destacar então o recente contexto urbano neoliberal e sua grande influência na formação das cidades e das resistências urbanas.
Em um primeiro momento, o neoliberalismo apresentou-se como uma política econômica encarregada de amenizar a Crise do Petróleo ocorrida em 1973, que obteve alcance mundial. Dentro deste processo previa-se a ampliação da participação dos interesses privados e o fortalecimento de um novo modelo econômico que tinha como base a atração de capital, estímulo a concorrência e ajustes fiscais fortalecendo a presença do Estado mínimo.
“O aumento brutal das taxas de juros à custa de uma grave recessão e de um aumento do desemprego permitiu lançar rapidamente uma série de ofensivas contra o poder sindical, baixar os gastos sociais e os impostos e facilitar as desregulamentações. [...] Desse modo, progressivamente uma nova orientação tomou corpo em dispositivos e mecanismos econômicos que mudaram profundamente as ‘regras do jogo’ entre as classes sociais em cada um dos espaços nacionais” (11).
Com a consolidação desta política em muitos países, o neoliberalismo se expandiu, criando novas configurações na sociedade. Para Pierre Dardot e Christian Laval (12), não se trata apenas de uma nova composição econômica normativa, mas sim, da implantação de uma nova racionalidade que interliga o modelo da empresa, modelos de concorrência e o paradigma da gestão à construção de uma nova sociedade que se estabelece por novas formas de trabalho e relações interpessoais. O neoliberalismo “pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (13).
Com o direcionamento neoliberalista sendo aplicado em diversos aspectos da política e economia tanto pública quanto privada, a reestruturação do processo produtivo e a desindustrialização e a expansão das atividades do terceiro setor, o cenário constituído nas grandes cidades brasileiras durante estes anos tornou-se desfavorável à crescente população urbana. Apresentava estagnação do crescimento econômico, grande oscilação da inflação, aumento significativo do desemprego e da pobreza urbana, além do forte recuo das políticas públicas sociais tornando os anos de 1980 conhecidos no Brasil como a Década Perdida (14).
Com este contexto pode-se afirmar que o neoliberalismo favoreceu a pluralização das classes sociais, e acentuou a desigualdade social, “privilegiando principalmente os dois por cento mais ricos de cada sociedade nacional” (15). Pode-se observar este crescimento principalmente nos países em que a desigualdade social já havia sido construída historicamente como no Brasil. Neste período, além da desigualdade social, ganhou destaque a exclusão social, atuante em diferentes escalas, considerando que cidades e até mesmo países são invisibilisados dentro dessa nova ordem que implica a necessidade de competir entre si.
Durante o final da década de 1980, mesmo com a racionalidade neoliberal sendo utilizada como referência e exercendo grande influência sobre as nações do mundo, no Brasil pautava-se a discussão da aprovação do capítulo de Reforma Urbana na Constituição Federal de 1988 e posteriormente a regulamentação através do Estatuto da cidade (16). Este momento, marcou o avanço sobre as discussões da propriedade, do acesso à terra e moradia, do direito à cidade e da cidadania. Mesmo diante de um cenário desfavorável, como foi visto, a luta pela reforma mostrou a capacidade de articulação das forças populares subordinando a cidade aos interesses coletivos e social.
Durante a década de 1990 a influência da política neoliberal consolida-se no Brasil com o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Neste momento a política econômica do país se adequa as recomendações de órgãos internacionais, promovendo ajustes orçamentários, grandes privatizações e a liberalização do comércio tornando a economia nacional mais competitiva no cenário mundial (17).
Diante destes fatores, o papel desempenhado pela cidade na constituição da vida econômica, política e cultural da sociedade, principalmente nas áreas urbanas, tornou-se cada vez mais significativo e relevante, “pode-se falar das cidades como atores sociais complexos e de múltiplas dimensões” (18). Com a investida neoliberal fortemente atuante durante os anos de 1990, novas ferramentas foram adotadas no planejamento urbano das cidades. De acordo com Carlos Bernardo Vainer (19), pode-se afirmar que uma destas ferramentas é o planejamento estratégico. Através dele a cidade passou a dialogar com questões que abrangiam a competitividade urbana, as obrigações de arrecadação e atração de capital, disputa por novos negócios e indústrias, além da intensa concorrência sobre informações e serviços prestados.
Esta construção teórica foi amplamente difundida a partir do modelo conduzido por Jordi Borja, que obteve “resultados significativos” com a implantação do Planejamento estratégico urbano na cidade de Barcelona (20) em 1992. Tratava-se de um período marcado pela globalização de informações e capital. Para Borja, ‘as cidades se conscientizam da mundialização da economia e da comunicação’ e, em consequência, ‘se produz crescente competição entre territórios e especialmente entre seus pontos nodais ou centros” (21).
Para Vainer (22), o planejamento estratégico urbano está atrelado e três pilares principais, que são denominados por ele como cidade-empresa: tratando a cidade como um sujeito que busca a atração de capital, cidade-mercadoria: tratando a cidade como um produto que pode ser pontualmente melhorado e comercializado, principalmente nas áreas turísticas e de entretenimento e cidade-pátria: que caracteriza-se por um sentimento de patriotismo ligado ao um resultado final positivo do planejamento estratégico, dando origem a um projeto que poderia ser considerado como coeso e universalmente aceito.
Somado a isso, quando o neoliberalismo globalizante atingiu o país, nos anos 1990, o Estado brasileiro aderiu à receita internacional de governo mínimo, dando maior espaço à ideologia e às políticas privatistas, e declinando os investimentos voltados a infraestrutura ou em políticas de atendimento social. A instauração do neoliberalismo provocou um aumento da concentração de renda da elite, restaurando, no cenário mundial, os privilégios dos grupos que tiveram poder e renda diminuídos após a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial.
Convém ressaltar o papel influente que detém o poder público dentro deste conceito. Houve o avanço da visão mercadológica nos processos de transformação da cidade e consequentemente na administração urbana. O poder público tornou-se detentor de ferramentas que ajudam a direcionar tanto os investimentos públicos quanto os privados, assumindo o papel de facilitador nas operações ligadas a intervenção urbana realizadas nas cidades, através da introdução das operações consorciadas executadas por intermédio de parcerias público-privadas, além de possibilitar a aprovação de dispositivos que regulam a atração de capital.
A competitividade entre as cidades na atração de capital e a disputa pela permanência na rede de “cidades globais” fizeram com que o direcionamento de investimentos, principalmente nas esferas municipais, se voltasse para o planejamento estratégico e para o marketing urbano. Para alavancar a atração de capital, o entretenimento e a cultura urbana são utilizados como peças chaves no processo de formação da nova base econômica das cidades.
Segundo Teresa Pires do Rio Caldeira (23), no início da década de 1990, os espaços comuns da cidade passaram a não ser acessíveis à todos. A utilização maciça de muros e tecnologia em segurança, tornaram-se ferramentas que potencializaram a segregação social em diversos aspectos da vivência urbana, fragmentando a condição e o caráter do espaço público. Estes espaços caracterizavam-se naquele momento como deteriorados e privatizados, o que desencadeou a fragmentação da participação cidadã.
Este processo transformou a rotina das relações sociais, segundo Caldeira (24). A interação em espaços comuns limitou-se, habitualmente passou a apresentar cada vez mais restrições e até mesmo bloqueios. Concomitantemente a isso, observa-se as periferias se expandirem cada vez mais afastadas das áreas centrais, e este movimento potencializou problemas como a mobilidade, tornando-se mais um obstáculo na vivência da cidade para aqueles que residiam nas periferias, já que que a região central de São Paulo historicamente concentra a maior parte dos empregos e atividades urbanas.
“Trata-se de espaços privatizados fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento. Esses novos espaços atraem aqueles que estão abandonando a esfera pública tradicional das ruas para os pobres, ‘os marginalizados’ e os sem-teto” (25).
Com o recuo dos investimentos e o avanço do Estado mínimo e de outras diretrizes da racionalidade neoliberal, nota-se que as cidades estabelecem ainda mais disparidades urbanas, fragmentando cada vez mais as experiências vivenciadas nos espaços públicos. Pode-se afirmar que grandes cidades como São Paulo, apresentam como resultado deste processo um considerável encadeamento da concentração de renda e empregos, dificuldade de mobilidade, cooptação dos espaços da cidade, avanço do mercado imobiliário, entre outros.
Apropriação do espaço urbano: novas formas de organização e resistência
De acordo com James Holston (26), a luta por direitos urbanos pode ser qualificada como uma “cidadania insurgente”, capaz de segmentar a configuração dos agentes atuantes no cotidiano urbano, potencializando vozes em diferentes perspectivas. Através da cidadania ativa e participação popular, nota-se que é possível contribuir para a construção de ferramentas e aparatos capazes de modificar a vivência de um indivíduo no espaço em que ele habita. No Brasil, como visto, as experiências coletivas apresentam uma história marcante, as conquistas advindas das lutas tornaram-se referências mundiais.
Atualmente, pode-se afirmar que a ação tática apresenta-se como elemento integrador das reinvindicações urbanas relações estabelecidas no território. Considera-se o termo ação tática como ações pontuais, de baixo custo e de curto prazo, são chamadas também por “urbanismo tático” ou “urbanismo de guerrilha” (27). Estas são promovidas através de grupos autogeridos, organizados de modo flexível e anárquico, mobilizados de baixo para cima, conhecidos atualmente por “coletivos urbanos” (28), são capazes de fomentar intenções e/ou ações políticas que interferem em questões da cidade sejam elas urbanas ou sociais, além de fomentar a promoção de mudanças positivas a maneira de viver as ruas, os bairros e as cidades.
Podemos afirmar que na última década, essas ações foram potencializadas por conta do contexto de crise urbana global, que tem como componentes, “o rápido crescimento populacional, a reestruturação da produção industrial, a má adequação das infraestruturas físicas urbanas, a polarização das classes sociais, mau funcionamento das instituições públicas, entre outros” (29). Essas tensões, em conjunto, intensificaram a falta de representatividade política, culminando em inúmeros levantes reivindicatórios por diversas cidades do Brasil e do mundo, que potencializados pelo avanço da tecnologia e das redes digitais, criaram um contexto favorável a disseminação da ação tática, como solução paliativa às problemáticas urbanas resultantes dos períodos modernistas-estatistas e neoliberalistas.
Em São Paulo, notadamente estes grupos fortaleceram-se a partir das Jornadas de Junho de 2013. Desde então é possível encontrar uma grande quantidade de ações que se desenvolveram em várias regiões da cidade frente ao difícil cenário político que se delineava e a carência do poder público nas resoluções de questões urbanas de escala local. Dentro do contexto de transformações da cidade, observa-se aspectos urbanos resultantes da aplicação da racionalidade neoliberal, destacando-se a formação excludente dos territórios periféricos.
Estes territórios tornaram-se espaços de representação das desigualdades. Ainda, como parte desta lógica, há a constituição de espaços cada vez mais privatizados. Pode-se observar a mercantilização do espaço público tradicional, seguido de seu esvaziamento. Nesse sentido e motivado por formas mais igualitárias de acesso ao urbano, estão contextualizadas as ações táticas, na medida em que contextam tal modelo de cidade. De acordo com Vainer, há nesse ponto um confronto, que pode ser identificado no espaço urbano, entre o que o autor denomina como “city” e “pólis”.
“De uma lado, a city, impondo-se à cidade como espaço e objeto e sujeito de negócios, de outro lado, a pólis, afirmando a possibilidade de uma cidade como espaço do encontro e confronto entre cidadãos. Ali onde a mercantilização do espaço público está sendo contestada, ali onde os citadinos investidos de cidadania politizam o quotidiano e quotidianizam a política, através de um permanente processo de reconstrução e reapropriação dos espaços públicos, estão despontando os primeiros elementos de uma alternativa que, por não estar ainda modelada e consolidada, nem por isso é menos promissora” (30).
Utilizando dos conceitos de “city” e “pólis”, pode-se afirmar que a ação tática corresponde ao aspecto urbano da pólis, entendendo-a a partir da contestação do urbanismo neoliberal e dos problemas sociais decorrentes dele, a partir de formas autogeridas, que reconstroem, ressignificam e se apropriam de espaços e procuram por formas mais inclusivas de acesso ao urbano e direito à cidade, observadas recorrentemente no território periférico.
Com o avanço da tecnologia, novas perspectivas foram inseridas nas relações sociais e os territórios periféricos potencializaram sua identidade e (re)articularam resistências que, além de continuarem reivindicando as pautas herdadas dos Movimentos Sociais Urbanos, agregaram novas pautas da agenda urbana, como a valorização da identidade, direito de maior mobilidade, acesso aos lugares da cidade, acesso aos investimentos voltados à cultura e arte, a melhoria dos espaços urbanos de uso coletivo, força política e representatividade.
Há uma fragmentação da luta e “o sentido de injustiça tem sido historicamente uma das mais potentes fontes a animar a busca da mudança social” (31), e as novas pautas na agenda urbana, tornaram-se elementos referenciais quando observada a perspectivas de direito à cidade no território.
O direito à cidade é, portanto, muito mais do que um direito de acesso individual ou grupal aos recursos que a cidade incorpora: é um direito de mudar e reinventar a cidade mais de acordo com nossos mais profundos desejos. Além disso, é um direito mais coletivo do que individual, uma vez que reinventar a cidade depende inevitavelmente do exercício de um poder coletivo sobre o processo de urbanização (32).
A partir do apresentado, podemos entender que as ações táticas demonstram um maior impacto territorial nas áreas de maior vulnerabilidade social, que nos remete as regiões periféricas das cidades. A crise de representatividade e a grande carência de investimentos, principalmente do poder público, nessas áreas por anos contínuos, fazem com que a autogestão de espaços e atividades, e formas de adaptação para morar, trabalhar e até mesmo viver a cidade sejam naturalmente característicos das periferias em geral, delineando assim uma conjuntura favorável as experiências coletivas e por consequência na execução de ações táticas.
Por isso, pode-se afirmar que, a luta e reivindicações que fundamentam as recentes mobilizações táticas, podem ser notadas nas áreas periféricas ainda em sua constituição e durante seu desenvolvimento, justamente pelo contexto de vulnerabilidade que é estabelecido. No entanto, é importante ressaltar que no atual momento, a organização das movimentações táticas pelas redes digitais, passa a ter uma força e um impacto consideravelmente maior dentro deste território periférico, pois ao se articularem desta maneira, fortalecem a produção do espaço comum, coletivo e cultural da periferia.
O surgimento das periferias como força política transformou essa diferença histórica em São Paulo e em muitas outras cidades. Quando milhões de construtores de casas e residentes empregados e produtivos se estabeleceram nas regiões mais distantes, eles afirmaram seu poder político e urbanizaram suas localidades. Ao fazê-lo, transformaram esses locais numa cidade de fato e de direito, as localidades se tornaram organizadas, urbanizadas e urbanas (33).
Considerações
As ações táticas apresentam um grande potencial, pois é notável seu alto poder mitigador em relação aos problemas de escala local ou regional, transformando a relação perceptiva do indivíduo com o espaço em que ele vive e habita. Estes potenciais expõe a ação tática como ferramenta de inclusão do território periférico na cidade, dando visibilidade as suas formas, sustentando um modo alternativo de construir, conviver, e gerenciar as questões urbanas que se revelam no cotidiano, além de garantir significativa importância nos circuitos políticos e culturais do território e da cidade.
notas
1
CASTELLS, Manuel. Redes de indignação e esperança: movimentos sociais na era da internet. Rio de Janeiro, Zahar, 2013, p. 15.
2
HARVEY, David. Cidades Rebeldes: do direito à cidade à revolução urbana. São Paulo, Martins Fontes, 2014, p. 49; GOHN, Maria da Gloria. Movimentos Sociais na era global. Petrópolis, Vozes, 2013. p. 7.
3
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 5ª edição. São Paulo, Edusp, 2008, p. 9.
4
HOLSTON, James. Cidadania Insurgente. Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2013, p. 146.
5
MARICATO, Erminia. O impasse da política urbana no Brasil. 3ª edição. Petrópolis, Vozes, 2014, p. 140.
6
SANTOS, Milton. Op. cit., p. 35.
7
As Comunidades Eclesiais de Base – CEB, foram criadas a partir dos estudos da Teologia da Libertação. Foi disseminada principalmente na América latina, que sofria com diversos regimes ditatoriais. As CEBs, priorizavam principalmente a resolução de problemas sociais. Nas décadas seguintes, passou a ser arrefecido pelo Vaticano, diminuindo a influência da Igreja Católica nos conflitos políticos diretos.
8
GOHN, Maria da Gloria. Op. cit., p. 35.
9
História da inflação no Brasil. ADVFN Brasil <https://br.advfn.com/economia/inflacao/brasil/historia>.
10
GOHN, Maria da Gloria. Op. cit., 144.
11
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo, 2016, p.196-197.
12
Idem, ibidem.
13
Idem, Ibidem, p. 17.
14
MARICATO, Erminia. Posfácio. In DAVIS, Mike. Planeta favela. São Paulo, Boitempo, 2006, p. 209-224.
15
BRESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. A crise financeira global e depois: um novo capitalismo? Novos estudos Cebrap, n. 86, São Paulo, mar. 2010, p. 54 <http://dx.doi.org/10.1590/S0101-33002010000100003>.
16
Senado Federal. Estatuto da Cidade. 3ª edição. Brasília, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2008. Disponível in <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/LEIS_2001/L10257.htm>.
17
RESSER-PEREIRA, Luiz Carlos. Da Administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, ano 47, n. 1, vol. 12, jan./abr. 1996, p. 2. Disponível in: <https://revista.enap.gov.br/ index.php/RSP/article/view/702/550>.
18
CASTELLS, Manuel, BORJA, Jordi. As cidades como atores políticos. Novos Estudos Cebrap, n. 45, São Paulo, 1996, p. 52.
19
O Planejamento Estratégico é uma linha de pensamento que vem sendo empregada como ferramenta do planejamento urbano. É um modelo que difundiu-se fortemente durante o final da década de 1990, e baseou-se em técnicas do planejamento empresarial conceituado primeiramente na Havard Business School.
20
Barcelona tornou-se um caso emblemático da aplicação do planejamento estratégico. Este se deu em função da cidade ser a sede das olimpíadas de 1992. Com isso os consultores catalães tornaram-se referências internacionais na construção de projetos urbanos a partir destes conceitos, com projetos aplicados em inúmeras cidades do mundo inclusive no Brasil, no centro de São Paulo e recentemente no Rio de Janeiro para as Olimpíadas de 2016.
21
VAINER, Carlos Bernardo. Op. Cit, p.76 apud BORJA, 1995, p. 276.
22
Idem, ibidem.
23
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São Paulo, Edusp/Editora 34, 2000.
24
Idem, ibidem.
25
Idem, ibidem, p. 211.
26
HOLSTON, James. Cidadania Insurgente: Disjunções da democracia e da modernidade no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 2013.
27
PETRESCU, Javier Vergara. Qué es el Urbanismo Táctico? In: steffens, Kurt. Urbanismo Táctico 3. Casos Latinoamericanos. Miami/Nova York, Ciudad Emergente/Street Plans, 2013, p. 13-17.
28
MAZIVIERO, Maria Carolina. Urbanismo insurgente: modo alternativo de produção e apropriação de espaços públicos na periferia de São Paulo. The 17th International Planning History Society Conference, Delft, jul. 2016
29
BRENNER, Neil. Seria o “urbanismo tático” uma alternativa ao urbanismo neoliberal? Revista E-Metrópolis, n. 27, Rio de janeiro, dez. 2016 <http://emetropolis.net/edicao/n27>.
30
VAINER, Carlos Bernardo. Pátria, empresa e mercadoria. Notas sobre a estratégia discursiva do planejamento estratégico urbano. In: ARANTES, Otilia. MARICATO, Ermínia; VAINER, Carlos Bernardo. A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis, Vozes, 2000. p. 101.
31
MARCUSE, Hebert. et al. 2009, p. 41. Apud MARICATO, Emínia. Op. cit., p. 93.
32
HARVEY, David. Op. cit., p. 28.
33
HOLSTON, James. Op. cit., p. 203.
sobre as autoras
Liliane Katita de Carvalho é arquiteta e urbanista (2016) e mestranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade São Judas Tadeu, na linha de pesquisa Gestão do Espaço Urbano. Integra o grupo de pesquisa CNPQ Urbanismo na era digital, dentro da linha de pesquisa: Urbanismo Insurgente: novas formas de ação na cidade.
Maria Carolina Maziviero é professora dedicação exclusiva do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Paraná. Graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Estadual de Londrina (2003), mestre (2008) e doutora (2013) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo.
Maria Isabel Imbornito é fez graduação (1994), mestrado (2003) e doutorado (2008) em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade de São Paulo. É docente no curso de graduação e mestrado stricto sensu em Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Judas Tadeu, e pesquisadora da mesma instituição.