O complexo comercial do Valongo, uma máquina de matar
O navio atraca. Procede-se a inspeção dos profissionais responsáveis por garantir a qualidade da carga que acaba de chegar. Estando tudo nos conformes, dividem-se os produtos em outros pequenos barcos para que sejam levados até o mercado onde serão acondicionados e, eventualmente, descartados caso haja a necessidade de serem eliminadas algumas peças que não estiverem próprias para o negócio. Uma vez armazenados e prontos para a venda, inicia-se então o entra-e-sai de compradores. Espetam-se batatas, apertam-se bicos, conferem-se polpas, apalpam-se maçãs. Dada fim a cerimônia, que só é encerrada com a satisfação do comprador, desenrola-se a transação e, por fim, seguem compradores e mercadorias para o seu destino. Como todo produto em um mercado, frágil e repetidamente manuseado, os itens que não resistem ao extensivo ritual, tornam-se inviáveis para o consumo e terminam por serem jogados no lixo. Mantido a céu aberto, esse local de descarte, não possui grandes procedimentos com relação ao material descartado, como em qualquer lixão, onde misturam-se a matéria orgânica em decomposição com outros objetos e detritos que, igualmente inúteis, são eliminados.
Essa breve descrição da dinâmica de um mercado, parece não diferenciar-se em nada de qualquer outro ponto de negociação de mercadorias que funcionava atrelado a um cais portuário no período colonial do Brasil, especialmente entre os séculos 18 e 19. Nada chamará atenção no que iremos tratar aqui, senão desvendarmos a que pés estão ligadas as batatas, qual é o líquido que escorre dos bicos, quais são as protuberâncias que formam as polpas ou qual é a cor das maçãs que compunham a mercadoria exposta nesses armazéns. As partes precisam ser ligadas ao todo. É preciso lembrar que os pés que corriam livres e findaram aprisionados, os bicos que terminaram ressecados, as polpas que murcharam e as maçãs que foram machucadas faziam parte dos milhares de corpos de homens e mulheres negras que, após serem sequestrados, terminaram comercializados como escravizados; e que ao chegar ao Rio de Janeiro, tinham como destino o Mercado do Valongo.
Ao encarar a dura realidade que a experiência do Valongo expõe sobre a nossa Humanidade, inúmeras perguntas surgem, como ecos dos gritos soterrados pelas incansáveis tentativas de apagamento que a memória de milhares de pessoas foram submetidas, e que tomam emprestadas as nossas vozes para se fazerem ouvidas. Um dessas questões em especial será o ponto de partida das reflexões deste breve ensaio, porém não estará respondida ao final dele. Ela o transborda. Da mesma forma que atravessa a própria disciplina da arquitetura, a que em um primeiro momento parece direcionar-se, exigindo que a olhemos à partir de outras lentes.
A indagação parece simples, mas que irá nos devorar, é a seguinte: “A arquitetura pode matar?” ou rearranjando as palavras “Existe uma arquitetura da morte?”
Se tentarmos responder, a grosso modo, a primeira coisa que pode nos vir a cabeça é o fato de que: sendo a construção, o produto da arquitetura, ela não pode matar pois é somente um objeto inanimado — simples “volumes dispostos sob a luz” (1). Mas, se arremessarmos parte desse volume, uma pedra por exemplo, contra o gênio que incumbiu-se da divina tarefa de organizá-las em seu jogo sábio e magnífico, provavelmente iríamos matá-lo. Então, de modo ainda mais grosseiro, seria possível pensar que a arquitetura pode ser acionada como meio para matar, caso seja a intenção. Esse parece um caminho possível para encontrar a resposta, porém, não nos daremos a essas discussões sobre luzes e sábios; pelo menos não nesse primeiro momento.
Buscaremos aqui as repostas em outro fenômeno, de natureza mais profana: a ação colonial de criação de espaços especializados para operar a morte de negro-africanos escravizados em escala genocida, sendo o Mercado do Valongo um ponto nevrálgico desse episódio tenebroso da história da Homem sobre a Terra. Deste modo, para que possamos prosseguir com mais fluidez, faz-se necessária uma breve caracterização do espaço do Mercado do Valongo, ressaltando alguns aspectos da sua constituição espacial, que nos ajudem a identificar se em sua existência estava implícita uma intenção assassina.
O Valongo, local em que funcionou o mercado de escravizados e que acabou por nomeá-lo, era parte da freguesia de Santa Rita, onde atualmente localiza-se a Zona Portuária do Rio de Janeiro. A freguesia de Santa Rita estava ao mesmo tempo em interface com o centro comercial e administrativo da cidade, visto sua proximidade com outras freguesias urbanas (como Candelária e Santana), e bloqueada visualmente por uma cadeia de montanhas que a isolavam, garantindo para a região um caráter periférico em relação ao centro urbano. Essa característica de isolamento e a proximidade com o mar, visto que a sucessão de praias formadas pelos sacos da Baía de Guanabara, acresciam um aspecto bucólico a paisagem, que muito lembrava uma vila de Pescadores (2).
Os primeiros armazéns de venda de negro-africanos cativos aparecem nesse cenário, como iniciativa dos negociantes que já residiam na freguesia e incorporavam essa atividade as suas formas de obtenção de renda. Porém até 1774, a maior concentração de estabelecimentos que comercializavam escravizados recém-chegados do continente, os pretos novos, estava localizado no Centro da cidade, mais precisamente na rua Direita (atual rua Primeiro de Março). A presença dessa atividade insólita, aos olhos da aristocracia e da maior parte da população, não condizia com a imagem de uma cidade civilizada, principalmente em diálogo com a dinâmica pulsante do centro administrativo do maior entreposto comercial da colônia Portuguesa nas Américas. Visto isso, contrariando grande parte dos comerciantes e traficantes de escravizados e atentando aos anseios da população, em 12 de abril de 1774, o Vice-Rei, Marquês de Lavradio, põe fim a um impasse que se prolongava por mais de uma década junto a Câmara Municipal, e restringe a comercialização de escravizados a região do Valongo (3).
Esse pode ser visto como um dos primeiros gestos de estruturação, propriamente dita, do espaço físico do Mercado do Valongo; ou pelo menos a iniciativa de uma inscrição da prática do comércio de escravizados dentro de uma ordem espacial específica. O que reforça essa percepção é o fato de que é a partir da decisão de delimitar o comércio de cativos à região do Valongo que a freguesia de Santa Rita é reinserida na dinâmica da cidade, deixando de ser apenas uma zona periférica e tornando-se um dos pontos chave do desenvolvimento econômico do Rio de Janeiro (4). Além disso, a concentração dos estabelecimentos de comércio de cativos no Valongo impulsionou o aparecimento de outros espaços, que passam a funcionar em interface com os armazéns, afim de aprimorar e otimizar o processo de recebimento, distribuição e descarte da mercadoria humana. Desse modo, no auge do seu funcionamento, após 1820, já era possível vislumbrar o mercado do Valongo operando em sua forma definitiva, como “o maior complexo comercial escravagista das Américas” (5).
Do ponto de vista da nossa trajetória, é importante ressaltar que o complexo comercial era definido por um conjunto arquitetônico específico, onde podem ser destacados como elementos principais: o Cais do Valongo, os armazéns/depósitos, o Lazareto da Gamboa e o Cemitérios dos Pretos Novos (6). Cada um desses espaços desempenhava uma função, como se fossem aparelhos onde eram operados diferentes tipos de programas, porém unidos pelo mesmo sistema. Podemos pensar que o negro-africano era, do ponto de vista do seu escravizador, a matéria bruta; sem forma. Ao passar gradativamente por um ou mais desses espaços, ia sendo moldado, até encaixar-se em uma forma, até estar ‘enformado’. Esse processo de ‘enformar’ do negro-africano tinha como produto final, um ser escravizado. Ao longo do processo de ‘montagem’ desse sujeito escravizado, diferentes dispositivos com seus mecanismos e técnicas específicas de disciplina e regulamentação eram acionados, fazendo surgir a necessidade de espaços diferentes onde cada programa poderia ser operado de forma mais eficiente.
Seria muito difícil abordar a complexidade do funcionamento do Valongo nesse breve texto, visto que a mercadoria humana não foi tratada de forma igual ao longo do tempo, o Valongo foi tomando forma aos poucos. O Lazareto e o Cais datam de 1810 e 1813, respectivamente, sendo que o Cemitério dos Pretos Novos já estava em funcionamento em 1772. Além do período histórico, os diversos tipos de ‘identidades de um escravizado’ acionavam aparelhos e programas específicos (7). Se uma carga de negro-africanos apresentasse alguma doença contraída durante a viagem, era direcionada da Alfândega (atual Casa França-Brasil) automaticamente ao Lazareto da Gamboa. Caso uma mesma carga não fosse para quarentena, poderia seguir até o Cais do Valongo, onde era automaticamente levada para os armazéns onde seriam expostos à venda. Vindo o cativo a falecer, o Cemitérios dos Pretos Novos seria sua última parada. Eram muitos os caminhos que um corpo negro-africano poderia percorrer dentro do Valongo, porém a sua existência fora dos limites do complexo comercial só era autorizada mediante a sua aquisição por parte de algum senhor; caso contrário como dizem as palavras do Marquês de Lavradio, os que não se enquadrassem na forma de escravizados não deveriam sair do Valongo “nem ainda depois de mortos” (8).
Necropolítica: uma relação de poder que exige espaços
Retomemos à questão que nos assombra porém, não mais perseguiremos um espectro, já podemos encarar a face do nosso fantasma. Então reorganizemos a pergunta: O complexo comercial do Valongo pode ser visto como um exemplo de “arquitetura da morte”?
A recalibração da pergunta nos dá a chance de acessar um outro caminho e dialogar diretamente com um dos autores que abordaram largamente o papel da morte e da violência no ambiente colonial, o camaronês Achille Mbembe. Em seus estudos, destaca-se um conceito fundamental para nossa reflexão; a necropolítica. Na tentativa de dissolução do eixo gravitacional imposto por um pensamento eurocêntrico, Mbembe toma as experiências que ocorreram fora do continente europeu como o ponto de partida para entender as relações de poder onde a eliminação do ‘outro’ caracteriza a essência do poder soberano. Ao iniciar o texto onde dedica-se exclusivamente a essas questões o autor aponta,
“Este ensaio pressupõe que a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode viver e quem deve morrer. Por isso, matar ou deixar viver constituem os limites da soberania, seus atributos fundamentais. Ser soberano é exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e manifestação do poder” (9).
A necropolítica, seria então, uma relação de poder onde a morte ocuparia um lugar central. Diferente da ideia de biopolítica, como apresentada pelo filósofo francês Michel Foucault, não é mais a vida que é o fruto do cálculo e o alvo preferencial das estratégias de disciplina e regulamentação dos corpos e das populações. Portanto, o pensamento de Mbembe não é uma antítese da biopolítica de Foucault, porém demonstra-se como um desdobramento, em vias de uma complementação.
Achille Mbembe aponta que o regime totalitário imposto pelo nazismo — para Foucault, o Estado nazista era tido como o arquétipo máximo do Estado combinando seu poder racista, assassino e suicida — teve como precedente histórico a colonização e o sistema escravista, onde podem ser visivelmente identificadas a fusão entre a lógica de criação ficcional de um inimigo, o estabelecimento do estado de exceção como norma, e a instrumentalização generalizada da existência humana levando a uma destruição material de corpos e populações inteiras julgadas como supérfluas ou indesejadas (10). Aqui identificamos uma particularidade na ideia de morte e na forma como ela é acionada por Mbembe na necropolítica, sendo a escravização colonial o momento onde a população de todo um continente foi identificada como “o inimigo” e “o corpo” passível de eliminação em que, dada sua função como força laboral, nenhuma outra dimensão da sua existência valia ser considerada, era uma condenação a “morte social” (11).
Dentro dessa dimensão social da morte, podemos incluir todos os esforços intelectuais responsáveis por produzir uma ficção de soberania racial do branco-europeu com relação ao negro-africano, que através de um exercício de intensa produção fantástica construiu um mundo onde a raça passou a definir características morais, éticas e estéticas. Esse processo de construção de discurso “sobre” o negro-africano, que ocorreu até o século 18, Achille Mbembe chama de um “primeiro momento da razão negra”, que produziu discursos racistas em diversas áreas da existência humana servindo para legitimar práticas de segregação que podemos sentir até hoje. Nesse movimento o branco-europeu construiu a ideia de “Humanidade” que, a cada passo dado em direção ao “Universal”, mais distanciava-se do homem negro-africano, que findou como prisioneiro de sua própria pele, e assim, já encontrava-se excluído de qualquer noção de ser-humano utilizada para fundar as bases do mundo modern (12).
A segunda dimensão da morte era a destruição física do corpo do escravizado. Essa era a decisão extrema a ser tomada, mesmo quando era a primeira, não por levar em consideração a eliminação da vida do cativo, visto que essa não lhe pertencia, mas sim por que a sua eliminação significava a perda de uma fonte de renda. A morte física de um escravizado, nesse contexto era justamente o índice da insuficiência de todos os mecanismos de controle da soberania, e a impossibilidade de retirar qualquer proveito da existência do corpo que fosse descartado (13).
Ambas as experiências de morte pensadas por Mbembe são levadas a cabo através da violência. Enquanto a Europa concluía seu plano de elevar-se como a alta sociedade do Planeta Terra, a violência foi sendo operada de forma desmedida nos territórios além-mar. Era essa violência que sustentava o projeto de civilidade europeu, como nos aponta Mbembe,
“Foi graças ao dinheiro acumulado pelos plantadores das Índias Ocidentais que a Inglaterra do século 18 pôde financiar a cultura emergente do gosto, as galerias de arte e os cafés, lugares por excelência de aprendizagem da civilidade. […] Como a civilidade e o consumo de produtos de luxo vêm a par, o café, o açúcar e as especiarias tornaram-se ingredientes necessários à vida do homem civilizado” (14).
O que fica evidente é que as terras conquistadas no período colonial eram indispensáveis para a manutenção da “civilização de costumes”, onde a sociedade ascendia aos mais altos padrões de desenvolvimento econômico e intelectual, terceirizando a barbárie para os territórios habitados pelos “selvagens”. Por essas vias sinuosas dá-se a construção do mundo colonial separado pelas fronteiras raciais, onde o negro-africano é alçado ao posto de inimigo (visto que nem se quer detém uma humanidade acabada) e a sua eliminação é legitimada pelo discurso da soberania.
Se por um lado, no contexto colonial, a necropolítica era o sistema de poder que manifestava nos corpos de negro-africanos a sua condição de “morto-vivo” (15) através da violência e da morte, também exigia a criação de aparelhos próprios para operar os seus programas de disciplina e regulamentação. Seria possível citar uma imensa lista de técnicas e práticas de tortura que foram desenvolvidas dentro desse universo para marcar a carne e a mente, porém era na criação de arranjos espaciais específicos às suas necessidades que o necropoder conseguiu alargar sua ação assassina a níveis genocidas. Achille Mbembe já aponta esse caminho quando nos diz que,
“A ‘ocupação colonial’ em si era uma questão de apreensão, demarcação e afirmação do controle físico e geográfico — inscrever sobre o terreno um novo conjunto de relações sociais e espaciais. Essa inscrição de novas relações espaciais (‘territorialização’) foi, enfim, equivalente à produção de fronteiras e hierarquias, zonas e enclaves; a subversão dos regimes de propriedade existentes; a classificação das pessoas de acordo com diferentes categorias; extração de recursos; e, finalmente, a produção de uma ampla reserva de imaginários culturais” (16).
A divisão das pessoas por categorias e a hierarquização dos espaços, também favoreceu a instituição de direitos diferentes para cada categoria de pessoas inseridos no mesmo espaço. A ação espacial, no contexto colonial era o próprio exercício da soberania. Ainda recorrendo a Mbembe podemos afirmar que,
“O espaço era, portanto, a matéria-prima da soberania e da violência que ela carregava consigo. Soberania significa ocupação, e ocupação significa relegar ao colonizado a uma terceira zona, entre o estatuto de sujeito e objeto” (17).
A ação colonial, através do sistema necropolítico de poder, exigiu a criação de espaços específicos para operar sua ação violenta e assassina. O mundo colonial era o lugar onde a fronteira entre o espaço do colonizador e do colonizado eram visível e materialmente delimitadas. Era possível tocar o limite onde começava a zona do “ser” e terminava a do “não-ser” (18). Esse mundo maniqueísta (19), onde a divisão entre bem e mal eram tangíveis e sustentada por arranjos espaciais próprios, demonstra que o pensamento sobre o espaço e a sua função — na forma de aparelhos destinados a reproduzir as programações genocidas — acrescia uma função assassina à existência dessa arquitetura no interior das lógicas de poder necropolítica, que iniciam-se com a escravização colonial e alcançam os nossos dias. Podemos dizer, dando mais um passo na investigação da nossa pergunta inicial, que não estamos mais falando de uma arquitetura, mas sim de uma necroarquitetura.
Sentimos novamente o assombro do nosso fantasma que retorna. Contemplemos o Valongo agora, com essa perspectiva da necroarquitetura. É perceptível na trajetória com que o “Mercado” se transforma em um “complexo”, que a necessidade de criação de novos espaços dentro da estrutura do Valongo era ditada pela necessidade de aperfeiçoamento do seu potencial de produção, distribuição e descarte de negro-africanos Esses espaços, antes de serem a manifestação de um estilo arquitetônico ou elementos específicos que identificam as construções a uma categoria histórica da arquitetura, eram a expressão arquitetônica do necropoder. O Valongo manifestava-se espacialmente como a materialização de uma forma de controle de corpos e mentes de negro-africanos transformados em escravizados, que tinha como objetivo a sua total eliminação simbólica e/ou física. O que é possível identificar nas estruturas que nascem dentro desta mesma lógica é que a sua existência implica o exercício da violência como norma, estabelecendo um “estado de exceção permanente”, que do contrário do “campo biopolítico”, não estava lidando com a “vida nua” mas sim relegava o cativo a “morte-em-vida”, categoria que por si só já expressa a condição de “morte reiterada na vida” ao qual era subjugada toda a população negro-africana (20).
Por agora, vamos nos valer dessa explicação para seguir com nossa reflexão. O complexo comercial do Valongo pode ser um exemplo de necroarquitetura, ou seja, era a expressão material dos interesses necropolíticos que o sustentavam. Os espaços funcionavam em interface visando exercer o máximo do seu potencial assassino, agindo na vida de milhares de corpos de homens e mulheres, que deveriam inserir-se em uma forma de existência que preconcebia a sua existência como inferior e, que por essa razão, poderia ser explorada e eliminada a depender da vontade do seu soberano. Talvez por isso, na teoria de Mbembe, a “morte” venha antes da “vida”. A experiência do negro-africano tornado o “morto-vivo” concentra-se na dimensão de “morte” que sua “vida” passou a carregar após o contato com o branco-europeu na figura do colonizador.
Não que a sua existência se resuma a isso, pelo contrário, são inúmeros os casos de fuga de cativos do Valongo, bem como é possível encontrar diversos pontos de resistência e luta da população negro-africana em toda a história do período colonial, e para além dela. Desde o período da escravização até os dias de hoje os corpos e mentes colonizados e violentados produzem experiências particulares de resistência e subjetivação que marcam as suas sobrevivências ao longo dos séculos; porém, todas as ‘mortes’ que foram operadas até que um sopro de vida pudesse ser dado precisam ser lembradas e respeitadas, como constelações que insistem em brilhar em meio a grande noite que ainda não se findou em alguns pedaços do céu.
Necroarquitetura: arma contra o corpo e a alma
A necroarquitetura não é um caso isolado em que podemos presenciar a arquitetura sendo utilizada como mecanismo de controle. Michel Foucault já havia identificado uma “arquitetura operativa na transformação dos indivíduos” ao produzir suas reflexões sobre o poder moderno; da mesma forma, o também francês Georges Bataille, vislumbrava na arquitetura uma “fisionomia de personagens oficiais”, que produzia um sentimento de opressão na população. Ambos os filósofos partem das suas experiência com as instituições modernas européias, para elaborar tais concepções. Porém, não teria a ação colonial, através da necroarquitetura, unido o uso da arquitetura na sua função operativa de “transformação de indivíduos” com a capacidade de opressão simbólica? Enfim, não seria essa a causa do nosso assombro perante o complexo comercial do Valongo, ser ao mesmo tempo instrumento e símbolo da morte materializado no espaço físico?
Comecemos com a perspectiva de Michel Foucault. As técnicas de planejamento espacial estão no centro das suas concepções sobre a produção de um “sujeito útil e dócil”, que era também o objetivo das técnicas de disciplina e regulamentação do poder biopolítico. Como símbolo desse tipo de relação de poder temos a estrutura do “Panóptico de Bentham”, que consistia em um modelo arquitetônico que a partir de seu arranjo espacial, cria um mecanismo de visibilidade ininterrupta, impossibilitando a formação de zonas de obscuridade. Vejamos a descrição de Foucault do modelo arquitetônico “panóptico”:
“Na periferia, uma construção em anel; no centro, uma torre; esta possui grandes janelas que se abrem para a parte interior do anel. A construção periférica é dividida em celas, cada uma ocupando toda a largura da construção. Estas celas têm duas janelas: uma abrindo-se para o interior, correspondendo às janelas da torre; outra, dando para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de um lado a outro. Basta então colocar um vigia na torre central e em cada cela trancafiar um louco, um doente, um condenado, um operário ou um estudante” (21).
No panóptico, o espaço é pensado para produzir a experiência disciplinar necessária para a docilização do corpo, ou seja, a possibilidade de vigilância intermitente inibe ações ilícitas ou que rompem com o padrão de normalidade instituído pelo poder soberano. Nessa estrutura o poder desenvolve-se no interior, os ambientes são arranjados de modo a permitir a recondução dos efeitos do poder, modificando e controlando comportamentos (22). O controle é total, não há saída.
Vejamos o funcionamento de um armazém de venda de escravizados no Valongo, conforme descrito por Jean-Baptiste Debret, em texto e imagem. Iniciaremos com as palavras,
“Reproduzi aqui uma cena de venda. Reconhece-se pelo arranjo da loja, a simplicidade do mobiliário de um cigano de pequena fortuna, vendedor de negros recém-chegados. Dois bancos de madeira, uma poltrona velha, uma moringa (pote para água) e o chicote (espécie de gravata de couro de cavalo) suspenso ao seu lado, formam o mobiliário de seu entreposto. Nesse momento, os negros aí depositados pertencem a dois proprietários diferentes. A diferença da cor dos panos que lhes cobrem serve para distingui-los; um é amarelo e o outro vermelho escuro” (23).
A vigilância é um elemento fundamental para o funcionamento do armazém de cativos. Tal faz-se presente não só na figura do próprio vendedor de escravizados e seu cliente, mas também no chicote, instrumento de tortura, que funciona como o indício da violência que instaurava o terror necessário para a efetivação da necropolítica. Eram muitos os inibidores de conduta utilizados no interior desses espaços para modificar o comportamento dos cativos, na verdade, toda a cidade era organizada de modo a produzir a vigilância e o controle do negro-africano escravizado e, por consequência, dar a sensação de conforto e a segurança do soberano (24). Vamos agora à imagem.
O que podemos alcançar com a aquarela de Debret é uma dimensão muito maior do que a simples experiência de controle sendo operada no interior de um armazém do Valongo. O movimento que o olho faz ao percorrer a imagem constrói a própria narrativa, que descreve a hierarquização da sociedade que dividia-se entre a zona do “não-ser”, e o espaço soberano.
É possível notar o aspecto de clausura com que eram mantidos os cativos. Vemos somente uma fonte de contato com o “fora”, com o que está além das paredes e possivelmente com a própria liberdade. A porta, por onde entra a luz natural no ambiente é também o único elemento que nos leva para além da cena. A presença desta saída nos dá fôlego para imaginar um mundo que vá além dessa situação deplorável, mas que quando encaramos o “fora” nada podemos ver além da luz. Uma luz que ofusca e faz arder o olhar de quem é obrigado a acostumar-se com a escuridão do cárcere. A luz pode ser a liberdade, mas também a dor.
A cegueira causada pelo ofuscamento impede que identifiquemos qual é a forma do “mundo” fora do armazém, da mesma maneira que deveria ser ainda mais incerto e difuso para qualquer cativo que atravessasse a soleira. O cativo que vislumbra a mão estendida do seu algoz, tem também a sua frente uma ponte entre o dentro e o fora, uma possibilidade de alcançar o que está além. Mas sair do armazém dessa maneira significava deslocar-se da categoria temporária de mercadoria e tornar-se “propriedade de alguém”. Deixar o armazém como escravizado, não era o mesmo que liberdade ou segurança, pelo contrário, significava ser inserido em um novo aparelho de controle; agora com uma nova programação de violência e morte. Debret nos dá a ver a própria noção da divisão maniqueísta do mundo colonial que, deixava evidente os limites entre o espaço habitado pelos “selvagens” e instaurava a soberania na posição privilegiada de onde conseguia realizar o controle total.
Muitas são as possibilidades que essa imagem nos apresenta, mas fiquemos com estas observações, por enquanto. Partiremos agora para as concepções de Bataille.
Diferente de Foucault, George Bataille identifica na arquitetura a capacidade de expressar “a fisionomia de personagens oficiais”, ou seja, reproduzem em sua superfície o poder; são elas mesmas a cara do poder. A arquitetura, o corpo do edifício e sua forma, são a representação da soberania que ao erguerem-se no espaço passar a servir de inspiração às boas condutas e inibir o comportamento social. A opressão simbólica exercida, dá-se no campo do temor, que ameaça simbolicamente a vida do indivíduo. Bataille nos diz com suas próprias palavras que,
“De fato, apenas o ser ideal da sociedade, aquele que ordena e proíbe com autoridade, se expressa nas composições arquitetônicas propriamente ditas. Assim, grandes monumentos se levantam como diques, contrapondo a lógica da majestade e da autoridade a todos os elementos turvos: é sob a forma de catedrais e palácios que a Igreja e o Estado se dirigem e impõem silêncio às multidões” (25).
É na dimensão simbólica que a arquitetura funciona como um elemento repressivo na perspectiva de Bataille. A exterioridade, a sua presença monumental, faz cessar as vozes e intimida a movimentação, garantindo ao soberano a segurança e a contenção das ondas que possam levantar-se contra os seus interesses; uma forma de coerção absoluta. Isso explica, para o filósofo, os ataques que sempre são realizados a tais monumentos quando ambiciona-se atingir as estruturas de poder. Atacar o monumento é atingir o homem, pois eles são como se o próprio homem fosse. Os espaços pensados dentro dessa lógica são os responsáveis por produzir a “admiração e o espanto”, a “ordem e a restrição”; elementos que auxiliam a criação de “multidões sombrias”, subalternas (26).
Façamos então nossa última incursão ao “mercado de almas”. A morte, sendo o objeto principal dos esforços de controle do soberano, na necropolítica, vira também o emblema máximo de um poder que silencia definitivamente os que não estiverem devidamente inseridos nos padrões de conduta e materializa essa inibição no espaço. Vejamos o relato do viajante alemão G. W. Freireyss, que esteve no Cemitério dos Pretos Novos, em 1814,
“Próximo à rua do Valongo está o cemitério dos que escapam para sempre da escravidão... na entrada daquele espaço cercado por um muro de 50 braças em quadra […] alguns pretos estavam ocupados em cobrir de terra os seus patrícios mortos, e, sem se darem ao trabalho de fazer uma cova, jogam apenas um pouco de terra sobre o cadáver, passando em seguida a sepultar outro.
No meio deste espaço havia um monte de terra da qual, aqui e acolá, saíam restos de cadáveres descobertos pela chuva que tinham carregado a terra e ainda havia muitos cadáveres no chão que não tinham sido ainda enterrados.
Nus, estavam apenas envoltos numa esteira, amarrados por cima da cabeça e por baixo dos pés. Provavelmente procede-se o enterramento apenas uma vez por semana, como os cadáveres facilmente se decompõem, o mau cheiro é insuportável. Finalmente chegou-se a melhor compreensão, queima de vez em quando um monte de cadáveres semidecompostos” (27).
O que é nomeado por cemitério, na verdade, era um grande local de desova de corpos de negro-africanos descartados pelos armazéns e outros aparelhos do complexo comercial. A falta de dignidade com que se dava o enterramento, a visão do “monte de cadáveres semidecompostos”, “o mau cheiro insuportável”; diversos são os elementos dados pelo relato de Freireyss que nos aproximam do que deveria ser a morte materializada em seu estado mais bruto dentro do Valongo. Qualquer negro-africano que ultrapasse os limites, ou ao menos pensasse em alguma tomada de posição contra a sua situação de cativo, tinha em seu campo de visão a pilha de mortos ao qual poderia vir a fazer parte, caso transgredisse as normas de conduta. Se não fosse com a visão dos cadáveres, poderia ser através do cheiro dos corpos queimando, se não fosse a partir do olfato, poderia ser ouvindo o som da carne crepitando nas fogueiras; enfim, eram inúmeros as possibilidades de produzir a opressão através da superexposição da morte no Valongo, os arranjos espaciais eram pensados para deixar a morte na superfície. Porém, nenhum deles parece ter trabalhado tão “à flor da terra” quanto no Cemitérios dos Pretos Novos (28).
Fica evidente com esse breve percurso no pensamento de Foucault e Bataille, bem como em todas as paradas anteriores, que a “necroarquitetura” consegue conjugar os dois tipos de controle, operativo e simbólico, apontados pelos autores em suas concepções. Porém muitas outras associações e leituras ainda precisam ser feitas. O trabalho só começou.
A intenção desse percurso reflexivo em nenhum momento foi produzir o exorcismo do fantasma. Destrinchar a experiência do Valongo, para que possamos nos livrar do assombro e habitar sem medo a casa mal-assombrada, nunca foi o objetivo. O que existe aqui, é o desejo de viver o luto e alcançar, através do confronto com a experiência de dor, a emancipação e o apaziguamento de milhares de almas que precisam descansar na plenitude. Suas mortes não foram em vão.
Pensar uma “necroarquitetura”, passa a ser uma forma de produzir uma denúncia de toda a violência e do genocídio que ceifou milhares de vidas de homens, mulheres e principalmente crianças. A reflexão inerente a esse gesto torna possível encontrar um caminho de cura e liberdade. O genocídio não terminou, a necropolítica ainda atua. Por isso esse texto é também um chamamento, é uma convocatória, para que nos engajemos na busca por identificar e combater o jogo perverso, violento e tenebroso dos volumes dispostos sob a sombra da morte; a necroarquitetura.
notas
1
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. 7ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2014, p. 13.
2
KARASCH, Mary C. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo, Companhia das Letras, 2000, p, 75.
3
HONORATO, Claudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831. Dissertação de mestrado. Niterói, ICHF UFF, 2008, p. 73.
4
Idem, ibidem, p. 32.
5
IPHAN. Sítio arqueológico Cais o Valongo, Proposta de inscrição lista de patrimônio mundial. Dossiê de candidatura, 2016, p. 21.
6
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Valongo, cais dos escravos: memória diáspora e modernização portuária na cidade Rio de Janeiro, 1668 – 1911. Relatório de Pós-doutoramento. Rio de Janeiro, PPGArq UFRJ, 2013, p. 10.
7
KARASCH, Mary C. Op. cit., p. 75.
8
Para texto completo do Edital de 12/04/1774 ver: CAVALCANTI, Nireu Oliveira. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In FLORENTINO, Manolo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade (Rio de Janeiro, séculos 17-19). Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2005, p. 47.
9
MBEMBE, Achille. Necropolítica, n. 1, São Paulo, 2018, p. 5.
10
MBEMBE, Achille. Necropolítica, una revisión crítica. In GREGOR, Helena Chávez Mac (Org.). Estética y violencia: necropolítica, militarización y vidas lloradas. Cidade do México, MUAC, 2012.
11
MBEMBE, Achille. Necropolítica (op. cit.), p. 27.
12
MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 2ª edição. Lisboa, Antígona, 2014.
13
Idem, ibidem, p. 26.
14
MBEMBE, Achille. Políticas da inimizade. Lisboa, Antígona, 2017, p. 36.
15
Idem, ibidem, 2018, p. 29.
16
Idem, ibidem, p. 38.
17
Idem, ibidem, p. 39.
18
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador, Edufba, 2008, p. 28.
19
Sobre o mundo colonial e sua divisão maniqueísta ver Idem, 1968.
20
MBEMBE, Achille. Necropolítica (op. cit.).
21
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: Nascimento da prisão. 27ª edição. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 210.
22
Ibdem, ibidem, p. 194.
23
DEBRET, Jean-Baptiste. Apud IPHAN. Op. cit., p. 89.
24
KARASCH, Mary C. Op. cit., p. 100.
25
BATAILLE, Georges. Architecture. In BATAILLE, Georges. Oeuvres complètes. Tomo 1. Paris, Gallimard, 1970, p. 171.
26
Idem, ibidem.
27
FREIREYSS, Georg W. Viagem ao interior do Brasil nos anos de 1814-1815. São Paulo, Edusp, 1982, p. 134.
28
PEREIRA, Júlio César Medeiros da Silva. À flor fa terra: o cemitério dos pretos novos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Garamond, 2007.
sobre o autor
Luis Gustavo Costa Araújo é arquiteto e urbanista formado pela Sociedade Educacional de Santa Catarina. Doutorando no departamento de pós-graduação em História Social da Cultura da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, na linha de pesquisa de História da Arte da Arquitetura.