Esta série de dois artigos constitui uma reflexão, com certo atraso cronológico, de duas exposições distintas em tema e escala, mas que tem em comum uma ideia de design aeronáutico, e de terem sido produzidas pelo Museu da Casa Brasileira da Secretaria Estadual de Cultura de São Paulo, administrada pela organização social de cultura A Casa Museu de Artes e Artefatos Brasileiros. Para este autor, arquiteto, colaborador de duas bienais internacionais de arquitetura em São Paulo – ainda no tempo em que estas exposições eram realizadas no Pavilhão da Bienal – e professor universitário, é motivo de imensa alegria comentar estas duas mostras, por retomar sua paixão primordial desde a infância, bem anterior à Arquitetura e Urbanismo: a História da Aviação e da tecnologia aeroespacial, e o design da primeira metade do século 20.
As vastas dimensões temporais das duas exposições tornaram o encargo bem mais complexo do que a resenha originalmente imaginada, daí a demora na conclusão do texto, que é redigida ainda sob impacto do falecimento do engenheiro e designer aeronáutico Joszef Kovács, que projetou 57 aviões e planadores (ocorrido neste 14 de julho de 2019, aos 93 anos). As dimensões do artigo ultrapassaram os limites fixados pela revista Arquitextos do Portal Vitruvius, exigindo que fosse dividido em dois artigos menores. Este é o primeiro deles.
A primeira exposição a comentar é, justamente, a primeira mostra com tema e curadoria específica, de fato, sobre a história do design aeronáutico no Brasil, realizada fora do âmbito dos museus nacionais com acervos de História da Aviação: Design na Aviação Brasileira, com projeto de criação de Guto Lacaz, iniciativa do Museu da Casa Brasileira, em exposição de 01 de junho a 20 de agosto de 2017, com expressivo êxito de público.
Alguns meses depois da exposição, começaram a ecoar na imprensa especulações sobre uma fusão entre a Empresa Brasileira de Aeronáutica AS – Embraer e a Boeing, a gigante da indústria aeronáutica americana e mundial. Uma joint venture foi anunciada na imprensa em dezembro de 2017, provocando muita controvérsia, até sua aprovação oficial pelo Governo Federal, em janeiro de 2019. Relembrar esta mostra torna-se importante no contexto do debate do acordo de fusão, tão crucial para o incerto futuro da indústria aeroespacial brasileira.
A segunda exposição, realizada quase um ano depois da primeira, não necessariamente versou sobre aviação, mas sobre o estilo streamline, parcialmente inspirado no design aeronáutico e que, por outro lado, também realimentou formalmente o design de aeronaves, equipamentos aeronáuticos, trens e automóveis: Design Aerodinâmico – Metáfora do Futuro, com curadoria de Adélia Borges e Patrícia Fonseca, montado no Museu da Casa Brasileira – MCB, de 21 de abril a 03 de julho de 2018, que também obteve grande êxito de público.
Esta primeira exposição, Design na Aviação Brasileira, foi organizada pela A Casa Museu de Artes e Artefatos Brasileiros / Museu da Casa Brasileira da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo, em co-realização com Instituto Embraer e em parceria institucional com a Força Aérea Brasileira / Ministério da Aeronáutica, European Transonic Windtunnel – ETW e Deharde Maschinenbau M. Hofffmann GmbH. Os patrocinadores foram Goodyear, SAAB, United Technologies e Boeing. A exposição foi criada por Guto lacaz, com produção da Prata Produções – Valeria Prata e Mariana Oliveira.
A mostra conta uma trajetória histórica rica em criatividade e engenhosidade, mas relativamente pouco conhecida do público. Claro que todos aprendem desde a infância que o inventor Alberto Santos-Dumont (1873-1932) foi o primeiro a conseguir alçar voo numa aeronave mais pesada do que ar, o célebre 14-bis, decolando do Campo de Bagatelle, Paris, em 1906. O avião tornou-se personagem-chave da história do século 20, junto com o automóvel e o computador, e Santos-Dumont tornou-se um herói brasileiro mítico, um dos definidores de uma identidade cultural brasileira, como Oscar Niemeyer, Lucio Costa, Tom Jobim, Chico Buarque, Glauber Rocha, Pelé e Mané Garrincha. Como cada um desses casos, Santos Dumont pode ser muito citado, mas a biografia e realizações não são bem conhecidas. Mesmo com a disseminação da Internet, poucos brasileiros podem citar com conhecimento seus feitos e sua vida trágica. A chegada do século 21 trouxe a celebração do centenário de cada um de seus feitos, bem como uma abordagem historiográfica mais crítica de sua obra, menos laudatória, mas sem desmerecer seu gênio – com o lançamento de vários livros, filmes e exposições, como a interessante mostra Santos-Dumont na Coleção Brasiliana Itaú, montada no Instituto Itaú Cultural de 26 de novembro de 2016 a 29 de janeiro de 2017.
Apesar de ter sido um grande sucesso de público visitante, a exposição não logrou despertar um interesse maior por parte do público mais jovem, que parece cada vez mais desinteressado por qualquer tema ou abordagem do passado mais distante. Assim, a exposição Design na Aviação Brasileira foi montada em um momento propício, ao procurar engajar um público não especializado na tecnologia aeroespacial, possibilitando descobrir uma trajetória tão peculiar do Brasil desde o século 18, com o padre Bartolomeu de Gusmão, até os aviões mais recentes da Embraer no século 21.
O memorial da exposição, exposto logo na entrada do espaço de exposições, esclarecia que objetivo não seria exibir um mostruário de produtos, mas destacar a “técnica e a invenção a serviço do Homem”, buscando-se “expandir a compreensão sobre a produção do design” junto ao público em geral.
Esta tomada de descoberta se fazia logo na entrada da exposição, através de linha do tempo tridimensional (1), extremamente original e bem pesquisada, que engajava o visitante através de miniaturas (todas em escala 1:100) de cada aeronave representativa da cronologia da História do Design Aeronáutico no Brasil, desde Gusmão até o avião cargueiro/tanque Embraer KC-390. Talvez a peça didaticamente mais importante da mostra, constituiu-se de painel cronológico com maquete de cada aeronave acompanhada de sua denominação, nome do fabricante e ano de concepção ou fabricação.
Os modelos em escala, de boa qualidade, mostram as aeronaves em voo, sem o trem de aterrissagem baixado, presos ao painel através de suporte padronizado, como que sobrevoando, em formação rasante, a linha do tempo. Tais maquetes primaram por uma apropriação sintética, sem os detalhes das réplicas de plastimodelismo, que podem chegar ao requinte de mostrar flaps, ailerons e hélices móveis, a textura da rebitagem de fuselagem, asas e cauda, bem como o interior da cabine de comando ou passageiros. Os modelos desta timeline vieram sem detalhes transparentes de carlinga, cockpit ou cabine de comando (canoplas e aberturas em acabamento fosco); mas a finalidade aqui foi mais demonstrar a grande diversidade de soluções formais, bem como o leque de variantes e upgrades de cada modelo, de acordo com necessidades ou imprevistos cambiantes ao longo do tempo. E faziam sentido como prática museológica, na medida em que mais resistentes ao convívio diário de visitantes, apesar dos avisos para que o observador não se aproxime do painel, e nem toque nas miniaturas. Nesta lamentável era do selfie, há sempre o risco de colisão de corpos ou membros com qualquer elemento natural ou construído em exibição.
O painel foi dividido em dois campos cromáticos de fundo para a linha de tempo, que de fato constituem-se de duas linhas distintas. O primeiro campo, cor amarelo-bege, abrange a cronologia que vai de 1709 a 1966; o segundo campo, cor azul-celeste, vai de 1968 a 2017.
Para este autor, uma observação mais atenta deste painel cronológico despertou algumas questões. Note-se que cada um dos aeroplanos expostos tem uma história muito interessante, intrigante por vezes, e poderia ser tema de um artigo completo. Aqui, em função do espaço e do escopo, isto não será possível.
Logo no início da cronologia, fez-se justiça ao Padre Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724), que propôs o primeiro balão de ar quente (1709), com uma bela maquete de seu Passarolo. Além dos exemplos mais célebres de Santos-Dumont, os mais-pesados-que-ar 14-bis (1906) e o no. 20 Demoiselle de 1909, lembrou-se também do “São Paulo”, o primeiro aeroplano construído no Brasil, pelo inventor Dimitri Sensaud de Lavaud (1882-1947, personalidade mais conhecida na França), no qual realizou o primeiro voo de mais-pesado-que-ar na América Latina em 1910. Todos com maquetes muito delicadas.
Na sequência, outros modelos de exemplos pouco conhecidos, como os aeroplanos Muniz 5 (M-5), de Guedes Muniz e o Convertiplano ITA de 1952, este sendo um raro e curioso tipo de convertiplano com asas de curvatura composta (que lembram vagamente o desenho das asas de lendários caças da II Guerra Mundial, como o Supermarine Spitfire Mk1 e o Aermacchi 202 Folgore). Os mais jovens podem associar a sua configuração de rotores aos dos drones de asas rotativas atuais, mas quem percorreu as páginas de revistas de tecnologia da década de 1950, como Popular Mechanics, pode-se lembrar de uma especulação efervescente no campo do convertiplanos, ou compound aircraft, como os autogyros do espanhol Juan de la Cierva (1895-1936). A consolidação dos helicópteros veio nos anos 1940, com os primeiros modelos bem-sucedidos da alemã Focke-Achgelis, os de Igor Sikorsky (1889-1972) e a invenção da primeira turbina a gás para asa rotativa, a Turbomeca Artouste para o Alouette II (1947). Assim, seria evidente que o próximo passo seria uma fusão de rotor horizontal com vertical, que permitisse uma performance de aeroplano com a capacidade de decolagem e pouco na vertical (VTOL). Mas as dificuldades da transição vertical / horizontal foram tão grandes que só no fim do século 20, com o V-22 Osprey, tal fusão foi conseguida a contento.
Abaixo deste, outra raridade pouco conhecida, o pequeno helicóptero Beijaflor desenvolvido pelo CTA/IPD do Ministério da Aeronáutica. Note-se que o fundador da Focke-Achgelis, o lendário Henrich Focke (1890-1979, projetista também do caça Focke-Wulf FW-190 e variantes), numa passagem pelo Brasil, contribuiu para a criação tanto do Convertiplano ITA como do Beijaflor. A importância fundamental da contribuição de Focke para a engenharia aeronáutica brasileira, como um todo, ainda está para ser documentada (2).
Assim, o ano de 1952 marca o nascimento da pesquisa nativa no projeto de aeronaves, em âmbito federal, através do CTA Centro Técnico de Aeronáutica (fundado em 1946, atual DCTA) e de seu corolário, o ITA Instituto Tecnológico de Aeronáutica (1950), e na forma de duas aeronaves de desenho original, sintonizado com o que se discutia no cenário internacional. Observe-se que a linha do tempo não deixa de registrar o nascimento também de uma indústria aeronáutica local e incipiente, em São Paulo, uma saga heróica ainda a ser melhor divulgada (3).
O campo amarelo-bege se encerrou com os modelos do Aerotec T-23 Uirapuru (1965) e do Neiva T-25 Universal (1966), ambos treinadores básicos da FAB, e entre os primeiros produtos da nascente indústria aeronáutica brasileira a alcançar razoável êxito comercial local e internacional nas versões militar e civil. O pequeno e balanceado T-25 continua operacional, 48 anos após sua introdução na Academia da Força Aérea em Pirassununga.
A linha do tempo saltou para 1968, já no campo azul, marcado pela empreitada do ITA/DCTA de dois projetos, que levaram à extraordinária aventura da criação de uma empresa estatal brasileira de produção de aeroplanos, a Embraer. Mesmo para os que eram apenas adolescentes ou crianças na década de 1970, era difícil de acreditar que o Estado Brasileiro conseguisse fabricar aeroplanos, como o esbelto planador EMB 100 Urupema (aqui exposto o protótipo), o EMB-400 Bandeirante (modelo histórico, protótipo preliminar), o EMB-200 Ipanema agrícola (histórico, protótipo preliminar de 1969), o primeiro avião a jato fabricado no Brasil, o EMB-326GB Xavante (1971); e o EMB-110 Bandeirante (modelo do protótipo de produção, bem maior do que o de 1968).
O Bandeirante foi o primeiro grande sucesso de vendas da Embraer, com 499 unidades produzidas, um feito para o Brasil na época, sendo bem avaliado na relação custo-benefício no mercado de aviação regional da Europa Ocidental e dos EUA. A versão militar de transporte também foi bem recebida na América Latina. Na FAB, voa até hoje, sem que tenha aparecido um substituto à altura, em termos de economia e desempenho.
Quando o Xavante (AT-26, na nomenclatura FAB) foi apresentado à imprensa, causou considerável impacto. Ali estava, em pintura de camuflagem padrão tropical, um pequeno e ágil avião de treinamento a jato de transição para o caça supersônico Dassault Mirage III, em vias de aquisição. E também sendo um ágil caça de CAS, “close air support” na terminologia inglesa – apoio aproximado às tropas em terra, e com alguma capacidade de combate ar-ar, pela manobrabilidade. De fato, o Xavante era uma versão produzida, sob licença, do Aermacchi MB-326, mais um produto da mente fértil do grande engenheiro Ermanno Bazzocchi (1914-2005). Um dos maiores sucessos da indústria aeronáutica italiana, foram produzidas 800 unidades, vendidas para 13 países no período 1961-75 (fora o Brasil, que também exportou 13 unidades), servindo na Aeronautica Militare Italiana até 1981. O modelo na exposição é o protótipo histórico, sem pilones ou hardpoints nas asas (4).
Este autor arriscaria dizer que, com algum upgrade de aviônicos digitais, materiais compósitos e armamento, talvez ainda pudesse ser comercializado hoje (perdão, engenheiros!). Os 166 AT-26 encomendados pela FAB viabilizaram a Embraer como empresa industrial e serviram até 2010-13.
Outro destaque foi o utilitário EMB-121 Xingu (1976), parte da série de turboélices experimentais desenvolvidos a partir do Bandeirante, no Projeto 12X. Foi o primeiro avião pressurizado da Embraer. Mais um sucesso de exportação, foi selecionado pela Força Aérea Francesa e Marinha Francesa para treinamento de pilotos. Atualmente a Aéronavale é o maior operador internacional do Xingu, com 23 unidades.
A linha do tempo permitia perceber que a cada ano era lançado um novo projeto, sempre inovador e original, gestado às vezes por anos a fio, vencendo dificuldades técnicas formidáveis. O ano de 1977, por exemplo, marcou a introdução de variante do EMB-110, o Bandeirante Patrulha EMB-111 – a Embraer respondendo aqui ao desafio de criar uma aeronave de patrulha marítima, uma das atribuições militares mais complexas que existem, e ocasionada por dificuldades internacionais do momento político que impediram a aquisição no Exterior de patrulheiras no estado da arte.
Em 1980 surgiu o EMB-312 Tucano, inovação sui-generis, naquele momento, no campo dos aviões militares. Todos que viveram esse período lembram-se do espanto causado pela apresentação do treinador, com suas linhas inusitadas e ousadas, o cockpit com assentos escalonados em tandem, o possante motor turboélice, o trem de pouso triciclo. E em voo oferecia alta manobrabilidade, velocidade e considerável performance aerobática. Nessa época os treinadores avançados costumeiramente eram jatos (como os Cessna T-37, Northrop T-38 Talon, Alpha Jet). A crise do petróleo dos anos 1970 e a necessidade de substituição dos T-37 (por circunstâncias tanto técnicas como políticas do período) levaram a FAB a procurar uma alternativa mais econômica e viável, especificando um turboélice de alto desempenho para ser seu novo treinador avançado.
A história do Tucano AT-27 terminou um pouco esquecida, como a do Xavante, do Bandeirante e do AMX, à sombra de outras realizações da Embraer. Não há espaço neste artigo para detalhar aspectos de cada aeroplano, mas acredito ser necessário comentar alguns casos, como estes, para as novas gerações.
A origem distante do T-27 remonta à proposta de um upgrade do treinador básico da Neiva, que seria denominado Universal II (1975-78), desenhado por Joseph Kovács (1925-2019, falecido antes da publicação deste artigo), engenheiro de origem húngara e um dos mais importantes nomes da engenharia aeronáutica brasileira. Kovács era o principal projetista da Neiva (incluindo o T-25). Quando a Neiva foi absorvida pela EMBRAER, Kovács passou a colaborar com outro lendário projetista, Guido Fontegalante Pessotti (1933-2015), professor do ITA, chefe de equipe de projetos e responsável pelos aeroplanos mais bem sucedidos da EMBRAER, grande homenageado da exposição (5).
Em termos formais, pode-se afirmar que o Tucano causou tamanho impacto internacional que acabou se configurando num padrão para treinadores CAS desenvolvidos por outros países. E o próprio Tucano tornou-se uma escolha preferencial para muitas forças aéreas, como a Royal Air Force britânica (fabricado pela Shorts Brothers irlandesa) e a L’Armée e l’Air francesa, totalizando 624 unidades fornecidas para 18 países, em 16 anos de produção. Foi o primeiro grande êxito da EMBRAER no quesito defesa e segurança. O modelo exposto na linha do tempo é o do protótipo histórico, sem pilones ou hardpoints, mas pintado no padrão da Academia da Força Aérea em Pirassununga.
A seguir, o ano de 1983 foi assinalado pelo EMB-120 Brasília, o primeiro grande sucesso comercial internacional da EMBRAER. Entrou em serviço em 1985, já considerado na época o o bimotor de passageiros mais veloz, mais econômico e mais leve em sua categoria. Em 1994 já era o avião regional de passageiros mais vendido no mundo. No total, foram produzidas 352 unidades para 33 clientes civis e militares no período 1983-2001, grande parte deles nos EUA.
Depois, em 1985, a linha do tempo foi marcada pela entrada em serviço de uma ambiciosa parceria italiana com a Aermacchi, desta vez para atender a requisitos comuns da FAB e da AMI de 1981, de caça de ataque CAS, interdição e reconhecimento. Não seria necessário que fosse supersônico, pois era necessário que conseguisse localizar e atacar alvos em terra com precisão, a baixa altitude. Cerca de 200 aviões foram montados, 60 deles para a FAB, sem vendas para outros países. Resultado um pouco desapontador, em comparação com os sucessos anteriores da EMBRAER e Aermacchi, mas constituiu ponto de prestígio, para a indústria brasileira, a parceria na produção de um avião de combate, padrão OTAN, no estado da arte na época. O modelo na timeline é do AMX experimental histórico (1985), com mísseis ar-ar tipo Sidewinder nos wingtips, mas sem os hardpoints ou hardware típicos para uma missão CAS.
Curiosamente, na sequência de maquetes que vai do EMB-400 Bandeirante (histórico, protótipo preliminar), EMB-200 Ipanema (histórico, protótipo preliminar), EMB-110 Bandeirante (histórico, protótipo de produção), EMB-121 Xingu até o EMB-111 Badeirulha, verificou-se a estranha ausência de hélices nas naceles dos motores. Qual a importância disso? Detalhe talvez preciosista, mas fica a curiosidade de quantas pás haviam em cada hélice, e o desenho delas.
Esta questão mostrou-se patente diante do modelo do CBA-123 Vector na linha do tempo (1990). Aqui as hélices voltavam a estar presentes, mas neste caso seria absolutamente inviável deixar de mostrá-los, dada a rara e curiosa configuração pusher dos motores, montados em pilones horizontais junto à popa da fuselagem.
O CBA-123 Vector foi uma rara iniciativa conjunta entre a Embraer e a Fama (atual FAdeA) argentina, viabilizada através de acordo (1986) entre os presidentes José Sarney e Raúl Alfonsín, no bojo da redemocratização dos dois países. O objetivo era produzir um turboélice pressurizado para aviação regional e executiva (até 19 passageiros), com os dois países se beneficiando de uma troca de exigências no projeto e fabricação de aviões, a partir do EMB-120. O resultado: um aeroplano pioneiro, inovador, avançado, seguro, silencioso e confortável para seu tempo, nos aviônicos, na aerodinâmica, no sistema de propulsão.
Na época (1990) não havia competidores nesta categoria em velocidade e segurança. Mesmo hoje é difícil encontrar bimotores turboélice com configuração pusher de hélices de seis pás (!!), asas de secção supercrítica e cauda em T, que estão claramente visíveis na maquete. No modelo também pode-se notar outra característica pioneira para aquela época, mas presente em muitos aeroplanos posteriores: a ousada solução de carenagem do tipo wing-to-fuselage fairing, que fixa as asas à fuselagem.
Apesar de tantas inovações, e do design de estilo atraente, o seu custo unitário era muito alto (talvez por ser avançado demais para seu tempo). A década de 1990 presenciou o fim da Guerra Fria, a disseminação dos microcomputadores, a popularização da Internet a reorganização do capital em direção a uma economia global. Assim, as necessidades da aviação regional e executiva foram evoluindo para maior capacidade de passageiros e alcance, com maior velocidade, eficiência e economia. Assim, a necessidade por jatos regionais predominou. O CBA-123, um tour-de-force de virtuosismo projetual e técnico, foi vergonhosamente abandonado, e o único protótipo brasileiro foi restaurado 2008-09 com ajuda do Senai SP.
Como tantas soluções de projeto que não vingaram, a memória do CBA-123 persiste um pouco nos jatos EMBRAER ERJ Regional Jets (1989-93 em diante), aeroplanos de grande porte (37 a 50 passageiros) que só puderam ser projetados de forma bem-sucedida graças à experiência adquirida no Vector. Podemos sentir sua influência no desenho dos ERJ na cauda em T, nas duas turbinas dispostas em pilones à popa da fuselagem, nos aviônicos digitais, carenagem do tipo wing-to-fuselage fairing, que inicialmente foram moldados em kevlar, e depois, com materiais compósitos. Os jatos executivos da série Embraer Legacy (2002-13) e Phenom (2007-08) também possuem estas características, já que baseadas também nos ERJ.
A seguir a linha do tempo mostrou o primeiro avião pulverizador agrícola da Embraer “verde”, um Ipanema EMB-202A movido a etanol (1992), importante contribuição para cumprimento dos acordos internacionais para redução de emissão de gases causadores de efeito estufa (foi o ano da ECO-92, a Conferência Mundial para o Meio-Ambiente da ONU realizada no Rio, marco da conscientização da crise ambiental mundial).
Perto deste, um exemplo notável de iniciativa individual: o pequeno, interessante Pyxis, de Roberto “Neco” Stickel, um miniplanador com possíveis variantes motorizadas. Neco Stickel é engenheiro, designer, ilustrador, projetista, desenhista perspectivista, inventor e um evidente fã de aviação (sua coleção de modelos de aviões é célebre). É um dos mais notáveis expoentes de uma bela prática profissional atualmente em extinção, a do desenho em perspectiva manual de projeto de artefatos e edifícios. Extinção injusta para este autor, que como professor de arquitetura ainda insiste, para ouvidos cada vez mais surdos, da importância do desenho manual (e da maquete física manual) como meio de reflexão dentro do processo de projeto.
Note-se que, no ano seguinte, o Museu da Casa Brasileira montou a exposição Desenhando a cidade: Neco Stickel, com mais de 70 perspectivas cônicas de edifícios feitos à mão, incluindo estudos e esboços de perspectivas, mostrando como era o processo de enquadramento e vista do edifício em seu entorno. Estudos emocionantes de se ver, pois é possível perceber o imenso prazer com que desenhava manualmente, esta alegria ansiosa e inebriante de sentir o desenho surgindo no papel aos poucos, do sítio ao volume aos detalhes, e se encaixando no entorno, que qualquer desenhista a mão sabe. Tal processo, de tentativa e erro, de reflexão criativa, é algo que parece passar ao largo de quem faz os atuais “renders” na tela do computador, um diminutivo digital um tanto vulgar do termo mais tradicional “renderings”. Algo se perdeu no caminho, ao menos na arquitetura, e no ensino de arquitetura.
Voltando aos aeroplanos, o Vector marcava o fim da série “Embraer histórica” da timeline. A partir de 1992, a empresa entrou numa nova era, quando se dividiu em Embraer Comercial e Embraer Segurança e Defesa. Daqui em diante não serão necessários comentários detalhados, na medida em que os aviões já são mais conhecidos do grande público, seja através da mídia ou como passageiros. Mesmo este autor, em viagem de pesquisa acadêmica a quatro cidades dos EUA, fez os trajetos interestaduais a maior parte do tempo em aviões ERJ de linhas aéreas regionais americanas.
A linha do tempo mostrou a introdução da série de jatos comerciais regionais de porte do ERJ-145 de 1998 até o ERJ-140 e ERJ-145XR de 2001, seguindo-se os bijatos comerciais de porte maior, abandonando-se a cauda em T por uma solução mais comum (e lay-out dos motores de forma mais convencional) da série E-170 (2002), E-190 e E-195 (2004). Pelas maquetes, podemos perceber que, nas diversas variantes, o desenho das asas passa a ser cada vez mais orgânico e sofisticado. Note-se nas maquetes que os wingtip fences e winglets, presentes em projeto comerciais da Boeing e Airbus a partir do fim dos anos 1980, aparecem pela primeira vez no EMB-145MP militar, e depois estariam presentes na maioria dos jatos comerciais da Embraer a partir do EMB-145 XR, com exceção dos ERJ-140 de 2000, o Phenon 100 de 2007 (com asas retas), o KC-390 militar de 2015 e os jatos de passageiros de porte E-190 (2016), E-175 e E-195 de 2017.
Da série ERJ emergiram as interessantes e bem-sucedidas versões militares como o EMB-145MP de patrulhamento marítimo, primeiro aeroplano da Embraer equipado com winglets nas pontas das asas. O modelo da timeline está configurado na versão P-99, estranhamente não adotada pela FAB (na época já necessitando substituir ou complementar os Bandeirulha com um avião de patrulhamento marítimo dotado de hardware para guerra anti-submarina). Ou seja, com quatro hardpoints para torpedos e mísseis ar-mar.
Na sequência da timeline estava o EMB-145 AEW&C (Airborne Early Warning & Control), versão para alerta aéreo antecipado e controle do espaço aéreo, com um bom radar active array Saab/Ericsson Erieye sueco, proposto e adotado como plataforma de vigilância aérea de fronteiras R-99/E-99 do projeto Sistema de Vigilância da Amazônia – Sivam, da FAB. Como o Sivam é parte do Sistema de Proteção da Amazônia – Sipam do Governo Federal, quando a FAB identificou a necessidade de aeronave moderna para coibir tráfego aéreo ilícito na região amazônica (e de baixo custo para complementar a ação dos E-99/EMB-145 Multi Intel), outra adaptação do EMB-145 foi adotada: o R-99 para missões de reconhecimento por sensoriamento remoto, em conjunto com a rede de radares.
A linha do tempo também registrou alguns experimentos interessantes, mas pouco conhecidos do grande público, que demonstram o senso de iniciativa, inovação e capacidade tecnológica da engenharia aeronáutica brasileira, como o Planador P-1 do ITA (1995), projeto pouco conhecido, com asas de enflechamento negativo; o hidroavião monomotor biplace, de origem francesa, Super Petrel CS da Edra e Scoda Aeronáutica (2002); os monomotores biplace de trem de pouso fixo da Quasar Aeroálcool (2006 em diante), pioneiros do voo com motor movido a biocombustível, iniciativas de Omar José J. Pugliesi e James Waterhouse, em maquete com hélice; o monomotor biplace de turismo Wega 180 (2010-13), um feito admirável da Wega catarinense, em maquete com hélice; o pequeno monomotor Super Flamingo da Aeropepe (2013), modelo com hélice; o 2014 Anequim CEA da UFMG (2014), com hélice; e do mesmo ano, o T-XC da Novaer (comentário abaixo) (6).
O fim do século 20, na linha do tempo, foi também marcado pela aparição do A-29 Super Tucano, uma evolução natural do já revolucionário AT-27 Tucano. A história do A-29 mereceria também um livro inteiro. Em resumo, a previsão para a retirada de serviço do venerando AT-26 Xavante (por atingir limite de vida operacional), e a necessidade recorrente de um aeroplano de interdição CAS, interceptação e patrulhamento para o Sivam, culminaram no programa comum ALX da FAB, cujos requisitos foram atendidos pelo A-29. A FAB concluiu que um turboélice seria ideal para o Sivam e ao mesmo tempo substituir o Xavante em suas funções de treinamento e ataque. O mercado internacional, neste violento início do século em que vivemos, também buscou modelos que atuassem como treinadores e aviões CAS, daí seu sucesso crescente de vendas.
A maquete do A-29 Super Tucano possuía quatro pilones com hardware tipo tanques de combustível alares e, possivelmente mísseis MAA-1 Piranha da Mectron, hélice de 5 pás, e pintura padrão de exibição da Embraer.
A partir de 2001, no bojo do boom econômico, que depois seria abalado pelos atentados do 11/09, a Embraer lançou a série de jatos executivos Legacy e Phenom, começando pelo Legacy 600, seguido pelo Lineage 1000 de grande porte, o primeiro Phenom 100 de asa reta em 2007, o Phenom 300 enflechado (2008), o Legacy 450, com seu belo desenho de asas lembrando pássaros ou os saudosos aviões V ingleses dos anos 1950, como o Handley Page Victor e o Vickers Valiant; seguiu-se depois o Legacy 650 (2008-09) e o Legacy 300 de 2012.
Por fim, por volta de 2012 também a EMBRAER iniciou a modernização do AMX de 1985, denominada A-1M, seguindo o padrão adotado de upgrade para o A-29 e o caça Northrop Tiger F-5M da FAB, incluindo novo radar, HUD (Head-Up Display), Hotas (Hands On Throttle And Sticks) e MFD (Multi-Functional Display), sistema FLIR (Forward looking infra-red) entre outras novidades. Na maquete, podemos verificar a presença de sonda para reabastecimento em voo pelo sistema probe-drogue, e mísseis ar-ar nos wingtips, possivelmente do tipo MAA-1 Piranha da Mectron brasileira (desenvolvido pelo CTA e Mectron).
É com espanto, para quem viu o Bandeirante e o Xavante voarem na infância, verificar que a Embraer produziu mais de 8000 aviões até 2017, conforme texto de Guto Lacaz para o catálogo da exposição (7).
A primeira sala de exposição constituiu um espaço dedicado à evolução histórica dos processos de projeto de aeronaves, desde os primeiros protótipos e variantes do EMB-110 Bandeirante até os grandes jatos de porte da série E-190/175/195, com uma abordagem original, fora-de-série e muito didática.
Em feiras de aeronáutica como as de Farnborough Airshow, EuroSatory e LAAD Defense & Security, a abordagem expositiva é dirigida ao público profissional, com destaque para os aviões em si, sua capacidade de resposta a especificações, características dimensionais e funcionais, facilidades de treinamento, custos operacionais e de manutenção, conforto, etc. Quase nunca vemos uma exposição dedicada didaticamente à prática de projeto e montagem de aeronaves em ambiente industrial.
Nesse salão, os organizadores tiveram o cuidado de mostrar a evolução histórica dos meios de projeto e construção, incluindo exemplares preciosos de magníficos desenhos técnicos em papel vegetal, modelos em escala reduzida de airframes para testes em túnel de vento, displays com materiais de desenho utilizados numa época ainda recente (ou ao menos para este resenhista), fotografias de testes em túnel de vento para desempenho e controlabilidade, de ensaios estáticos de resistência das asas, além de fragmentos de filmagem de ensaios aerodinâmicos de aterrisagem de aviões (reais) em pista molhada.
Guto Lacaz concebeu para esta sala um modelo, em escala conceitual, de túnel de vento com um perfil pivotante de asa de aeroplano (ou seria um flap), com uma hélice acionada por um motor de ventilador que, quando acionada por botão, faz flutuar a “asa”. Absolutamente impecável enquanto demonstrador didático do princípio do túnel de vento e da aerodinâmica alar.
Numa das paredes estavam expostas, em reproduções de grande porte, fotografias dos primeiros galpões industriais da Embraer, com linhas de produção do Ipanema e do Bandeirante. Tais fotos, todas pertencentes ao Acervo Histórico Embraer, revelam um claro e merecido orgulho da empresa, num momento de luta pioneira pela consolidação da indústria aeronáutica no Brasil.
Abaixo destas, fotografias igualmente expressivas e reveladoras mostravam vários profissionais da Embraer em atividade no cotidiano da produção de projetos de aeronaves. Para aqueles que se iniciaram em profissões de projeto como arquitetura, design e engenharia, antes dos anos 1990, é impossível não sentir certa nostalgia afetiva por uma época em que projetar era uma prática de prancheta. E em pranchetas enormes, com luminária de braço e tecnígrafo, capazes de conter com folga uma prancha A-0 ampliada.
Nestas fotos, pudemos sentir de forma quase palpável a imensa habilidade e competência gráfica, tridimensional destes projetistas (quem precisaria de programas BIM com profissionais assim?). Numa delas, havia uma perspectiva explodida, vazada e transparente (cutaway) de uma aeronave sendo finalizada numa prancheta, um tour-de-force gráfico. E em outras duas fotos, vimos nas pranchetas bolômetros, gabaritos, escalímetros e imensas curvas francesas necessárias para o desenho, em escala 1:1 inclusive, das longarinas e vigas das fuselagens, asas e ailerons.
Abaixo, displays com exemplos destes materiais de desenho complementaram as ilustrações acima, também do Acervo Histórico da Embraer. Esta mostra de instrumentos de desenho não poderia deixar de evocar essa nostalgia afetiva, mencionada acima, para qualquer profissional que tenha se formado no manuseio destas ferramentas: régua de cálculo, borracha azul, lapiseira 2.0 com caixa de mina de grafite, réguas, bolômetros e outros gabaritos de desenho, caneta técnica nanquim com carga e recarga, compasso kern em estojo, transferidor, “mata-gato” (máscara metálica de correção de desenho técnico a grafite, para ser usado com borracha, sendo “gato” um apelido para pequeno erro de desenho), escalímetros, régua de normógrafo e “aranha” da Leroy / Keuffel and Esser K+E, mata-borrão e até mesmo uma prancheta portátil com tecnígrafo. Pessoalmente senti falta de esquadros, mas estes podem ser vistos nas fotos.
Entre outros exemplos históricos, chamavam atenção os working diagrams, incluindo uma perspectiva de um bimotor com todas as peças do airframe codificadas, provavelmente utilizada como guia para a montagem do casco na própria fábrica.
Fotos um pouco mais recentes exibiam etapas de projeto e produção de aeronaves com sistemas digitais de projetação e gerenciamento de produção, incluindo computadores, telas planas e tablets. Como parte dos exemplos gráficos desta forma de produção, também estavam expostos renderings digitais de aeronaves, que empalideciam ao olhar treinado diante da parede oposta, onde brilhava uma seleção de desenhos técnicos manuais expostos em delicados displays iluminados com backlit. Desenhos magníficos, de perspectivas cutaway ou diagramas de vista em corte seccionado tridimensional (sem revestimento dos cascos).
As telas planas mostravam desenhos em 3D de aeronaves executivas de porte Legacy 500, os primeiros jatos executivos em sua categoria a adotar, como bem observa o catálogo, a tecnologia fly-by-wire integral, substituindo os servocomandos convencionais. Como o comando do piloto deixa de ser mecânico, resulta num voo mais suave e seguro (FlightGlobal Achievement Award categoria Inovação de 2010, como destaca o catálogo) (8).
Prosseguindo no percurso do MCB, o salão central do museu recebeu uma extraordinária amostragem de motores, porta de emergência, trem de pouso, manuais técnicos, modelos e uma secção de fuselagem em escala real, acompanhados de modelos em escala das aeronaves correspondentes. São itens museológicos preciosos e eloquentes de uma história épica da tecnologia brasileira.
Entretanto, o que mais chama a atenção neste salão é a secção de um trecho de fuselagem central (cabine de passageiros) de uma aeronave de passageiros ERJ, que demonstra muito bem as relações de dimensionamento / desempenho do interior (incluindo fiação), completo com casco e cavername estrutural de longarinas, tirantes e revestimento, deck superior (de passageiros) com bancos instalados e deck inferior (de bagagem), com malas para demonstração. O deck de passageiros é acessível para o público através de escada tipo portaló de aeroporto.
Foi um bocado chocante verificar a leveza e espessura laminar de um casco de avião pressurizado, particularmente para este autor arquiteto acostumado com a espessura de paredes perimetrais de tijolos e blocos da construção civil.
Os outros exemplos do salão também não deixaram de ser espantosos em sua complexidade, desde o motor Pratt & Whitney turboélice P56-27 de 680hp, adotado para um bimotor relativamente simples como o Bandeirante de 1972, até o imensamente sofisticado trem de pouso do ERJ-145 de 1995, inteiramente fabricado pela Embraer / Eleb, completo com baú de peças de reposição – prova indubitável da maturidade tecnológica e profissionalismo atingido pela indústria aeronáutica brasileira. Da mesma forma, temos a porta de saída de emergência de um avião pressurizado. A rebitagem é extremamente precisa e sofisticada, bem como as manivelas de abertura.
Mais fotos históricas nas paredes convidam a comparar o EMB-110 Bandeirante de 1965-72 – em voo, pousado e em linha de montagem – com o novíssimo KC-390 de 2015 sendo montado num pavilhão fabril bem maior.
Os posters e manuais técnicos de manutenção e pilotagem constituíam também relíquias de uma era analógica, na medida em que tais manuais são disponíveis online, com mapeamento de acesso em tempo real. Mas são bons exemplos de design, elaborados com cuidado para serem resistentes ao uso cotidiano, fáceis de usar e manusear, e em formatos diversos, incluindo um manual com encadernação tipo agenda filofax. Havia também um documentos como o fac-símile do anteprojeto do planador Urupema no ITA, sob orientação de Guido Pessotti em 1964.
A última sala foi convertida em espaço de realidade virtual através de simulador ótico de projetor de animatrônicos CGI que permite explorar o interior do KC-390. O simulador não funcionou bem para quem tem óculos de grau.
Uma maquete em escala 1/8 de um caça Saab Gripen NG engastado na parede junto a um espelho encerrou o percurso expositivo. O Gripen JAS-39 é um caça supersônico de 5ª geração, definição que exigiria outro artigo, pela complexidade – em resumo, seria um aeroplano de combate aéreo que incorpora as tecnologias dos anos 1980-90 em diante, e de surpreendentemente longa gestação, tal como seus contemporâneos Rafale e Eurofighter Typhoon. Este autor lembra de ter visto um rendering de um estudo preliminar do Gripen, desenvolvido pela SAAB sueca, pela primeira vez num livro de 1986 (voou inicialmente em 1988), mas que só entraria em serviço na Flygvapnet em 1993.
O Gripen venceu a concorrência do Programa FX-2 de caça multifuncional da FAB, com contrato assinado 27/10/2014 no valor de R$15,9 bilhões (a ser incorporado a partir de 2019), e após uma longa e sofrida sequência de atrasos e cancelamentos desde o Projeto FX anterior. De fato, a busca por um caça supersônico capaz de assegurar a defesa e o patrulhamento de um território de escala continental como a do Brasil já tinha se iniciado dos anos 1990, mas só concretizada agora (9).
A versão da FAB possui helmut-mounted display – HMD, head-up display – HUD, capacete de mira montada Targo da AEL Sistemas; e o contrato inclui uma pareceria offset de transferência de tecnologia internacional em aviônicos e sensores, fusão de dados e consciência situacional, networking/netcentric warfare, integração do motor, sobrevivência e vulnerabilidade em cada tipo de missão, de acordo com hardware empregado em cada ambiente operacional; integração de armamentos, novas configurações de missão totalizando 12 áreas de cooperação industrial (10).
Esta instalação não se mostrou muito feliz, pois não serviu para demonstrar nenhum dos aspectos citados acima. A maquete estava presa verticalmente em balanço por um suporte apoiado no duto de saída do reator (como num teste de túnel de vento), num arranjo um pouco grotesco e pouco elegante, na opinião deste autor. Pior, pouco didático na medida em que o Gripen parece estar em voo rasante junto ao espelho. A função deste seria mostrar as diversas cargas alares e ventrais deste caça multimissão. Mas, como a distância entre o espelho e a maquete é muito pequena, nem mesmo encostando a cabeça no espelho seria possível verificar o que os vários hardpoints podem carregar. Todavia, é possível reconhecer nos wingtips os mísseis ar-ar V3E A-Darter de 5ª geração, desenvolvidos pela Denel sul-africana, Mectron (atual SIATT), Avibrás e Opto Eletrônica (Brasil). O V3E também equipará o A-1 e o Northrop F-5BR, principal vetor de defesa aérea da FAB atual.
Guto Lacaz e o arquiteto Giancarlo Latorraca, diretor técnico do MCB, esclareceram posteriormente que o modelo do Gripen NG foi fornecido pela patrocinadora Saab, não tendo sido produzido pela Curadoria.
No jardim do museu, duas grandes atrações externas surpreendentes: a primeira sendo uma das máquinas de voar (ornitópteros) elaborados por Leonardo da Vinci por volta de 1485. Leonardo, como se sabe, imaginou, em seus fólios de desenhos, várias propostas de paraquedas, planadores asa-delta e até mesmo um tipo de helicóptero. O ornitóptero do jardim foi adaptado e montado por Guto Lacaz para que crianças pudessem experimentar uma das propostas de Leonardo, que provavelmente concebeu sua máquina em madeira e pano. O protótipo de Guto foi feito em metal, possivelmente para garantir mais segurança para as crianças, que acionavam os pedais das asas do ornitóptero, sempre com auxílio de monitores educadores.
Por fim, a certa distância da máquina de Leonardo, entre as árvores, a segunda surpresa, como grande finale da exposição: um exemplar de teste da FAB do A-29 Super Tucano, sem hardware ou pilone nos hardpoints, mas já ostentando matrícula e camuflagem padrão da FAB.
Na entrada e na saída do museu, como que saudando o público na entrada e despedindo-se dele na saída, uma maquete 1/2 do planador EMB-100 Urupema de 1968, um dos primeiros planadores de alto desempenho (para ser utilizado inclusive em competições de voo a vela). Projetado ainda no CTA, foi o primeiro produto fabricado pela Embraer, com uma já avançada estrutura em sanduíche de madeira com colmeia de papelão e resina epoxy.
Para este artigo, o autor realizou uma entrevista com Guto Lacaz e o diretor técnico Giancarlo Latorraca, e mais o arquiteto, colega docente e professor do Senac SP Marcelo Suzuki, sobre a exposição. A entrevista acabou se tornando um debate muito rico sobre as alegrias e dificuldades de organizar tal exposição, questões sensíveis e compreensíveis para este autor, que também participou da organização de empreitadas complexas, como duas edições da Bienal Internacional de Arquitetura.
Latorraca e Lacaz relataram como a ideia, totalmente original, de uma mostra de design aeronáutico surgiu dentro do próprio MCB, sem a sugestão externa de patrocínio ou apoio de nenhuma instituição relacionada à indústria aeronáutica brasileira ou internacional, apesar das polêmicas acesas na mídia daquele período, acerca do Programa FX-2, da proposta ousada KC-390, das vendas internacionais de defesa, e do Sivam, entre outros.
Lacaz e Latorraca também comentaram, de passagem, questões das culturas profissionais distintas no Brasil, e a dificuldade ainda existente no País em entender a tecnologia, e a história da tecnologia, como um fato cultural, de divulgação cultural, educacional, inclusive para o grande público não especializado. Para este autor, isto está evidente, por exemplo, no catálogo impresso, cujo belo projeto gráfico original de Guto Lacaz sofreu com a edição, a cargo da Embraer, em impressão offset preto e branco. De fato, o catálogo expositivo é o que permanece como contribuição cultural concreta de uma exposição, pela natureza efêmera de sua realização – não trata de um panfleto ou folder de estande de mostra tipo Laad, até mesmo por que os objetivos são distintos. A brochura resultante ainda assim se mantém muito interessante, com imagens e comentários importantes, a linha do tempo com escala gráfica é bastante didática e reveladora sobre a trajetória da tecnologia aeronáutica no Brasil.
Logo ao adentrar o museu, ao perceber a escala dos artefatos, desde os motores até o Super Tucano no jardim, foi possível imaginar as imensas dificuldades logísticas de transporte e montagem de tais itens no MCB. Estes itens mais pesados só poderiam ser transportados na estrada e nas ruas de São Paulo à noite. De fato, foi necessário até mesmo desmontar esquadrias para que estes artefatos pudessem ser expostos sem danificar paredes e janelas. Quem assistiu documentários em vídeo no Youtube sobre montagens de exposições de aviões, trens, navios (como dos museus do Smithsonian Institution) pode ter uma ideia da grande dificuldade logística e de planejamento que constitui a montagem e desmontagem de tais mostras no interior ou exterior de museus.
Também foi mencionado o cuidado com a possível recepção pelo público em geral, ou mais acostumado a mostras de arte, arquitetura e design, em como seria recebida uma exposição que incluísse artefatos militares.
Para este autor, pode-se ver a aeronave como uma extensão do guerreiro e do cidadão comum em suas atividades profissionais ou de lazer. No caso das aeronaves de defesa, seriam como a armadura, a lança, a espada e a montaria do cavaleiro da Idade Média ou do guerreiro samurai. O piloto de combate “enverga” o avião como armadura e monta na “fera” mecânica como num cavalo, o HUD como capacete e as armas manejadas pelo joystick do glass cockpit. Assim, a alta tecnologia que constitui a plataforma do sistema conecta-se com uma tradição multimilenar do guerreiro da Antiguidade Ocidental e Oriental, este ofício dos mais antigos da História, e cuja necessidade infelizmente permanece até hoje, como defesa contra o instinto agressivo do ser humano, que parece impossível de debelar.
Em se tratando de design, muitos aproximam os caças da elegância formal das espadas japonesas tradicionais, como as katanás e as wakizashis, que também são frutos de imenso esforço e conhecimento adquirido pelos artesãos na sua manufatura. Reconhecendo-se nestas espadas seu potencial letal, são lâminas de dois gumes, expressões de forma e função, que podem ser ofensivas ou defensivas, de paz ou de guerra, dependendo de quem empunha e das circunstâncias em que as mãos tocam na bainhas, empunham ou desembainham tais artefatos.
A mesma coisa ocorre com os materiais de defesa de alta tecnologia, como o A-29 que podia se ver no pacífico jardim cheio de crianças do MCB, numa manhã ensolarada de domingo. São máquinas de ataque como de defesa. Podem patrulhar o território e suas fronteiras, combater atividades ilícitas na Floresta Amazônica, ajudar a encontrar sobreviventes de acidentes, impedir a exploração ilegal de riquezas, e assegurar que um inimigo seja desencorajado de atacar.
Portanto, nada mais justo que o Museu da Casa Brasileira abra seus espaços para uma mostra que inclua artefatos que maravilham não apenas pelo gênio inventivo e capacidade tecnológica, mas também por uma ideia brasileira de design aeronáutico; sugerindo ao público visitante que as relações de forma e função – inerentes a tudo que é concebido, montado ou construído – não só valem para a arquitetura e o design industrial de artefatos domésticos e de trabalho, como também valem para o transporte, a defesa e a segurança aérea do País e suas cidades, entendendo-se as cidades em que vivemos como as casas dos brasileiros.
notas
NA – Este artigo é dedicado à memória de Joszef Kovács (1925-2019). Agradecimentos a Guto Lacaz, Giancarlo Latorraca, Marcelo Suzuki e Amanda Mitre. Ver segunda parte do artigo: FUJIOKA, Paulo Yassuhide. Duas exposições de design aeronáutico. Parte 2. Arquitextos, São Paulo, ano 20, n. 236.08, Vitruvius, jan. 2020 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/20.236/7622>.
1
LACAZ, Guto et. al. Design na Aviação Brasileira. Catálogo de exposição. São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2017, p. 13-28.
2
Heinrich Focke e o helicóptero brasileiro – Heinrich Focke (1890-1979) foi um dos pioneiros da aviação na Europa no início do século 20. Revista Aero Latina, 29 mar. 2016 <http://revistaaerolatina.blogspot.com/2016/03/heinrich-focke-e-o-helicoptero-brasileiro.html>.
3
Sobre os aeroplanos brasileiros na linha do tempo, as informações foram retiradas dos seguintes tratados de referência, além do website da Embraer: ANDRADE, Roberto Pereira de. A Construção Aeronáutica no Brasil 1910/1976. São Paulo, Brasiliense, 1976; ANDRADE, Roberto Pereira de. História da Construção Aeronáutica no Brasil. São Paulo, Aquarius, 1982 e Autograph, 1991; ANDRADE, Roberto Pereira de. Aircraft building – A Brazilian heritage. São José dos Campos, Embraer, 2008.
4
Ver também os seguintes tratados de referência, por dois autores consagrados, Bill Ginston e Bill Sweetman: GUNSTON, Bill. The Illustrated Encyclopedia of the World’s Modern Military Aircraft – A technical directory of today’s major warplanes. Londres, Salamander Books, 1977; SWEETMAN, Bill. Aircraft 2000 – The Future of Space Technology. Londres, Hamlyn / Octopus Group, 1974.
5
Ver ANDRADE, Roberto Pereira de. A Construção Aeronáutica no Brasil 1910/1976. São Paulo, Brasiliense, 1976; ANDRADE, Roberto Pereira de. História da Construção Aeronáutica no Brasil. São Paulo, Aquarius, 1982 e Autograph, 1991; ANDRADE, Roberto Pereira de. Aircraft building – A Brazilian heritage. São José dos Campos, Embraer, 2008 e LACAZ, Guto et. al. Op. cit. Ver também: PLAVETZ, Ivan. Há algo de novo no ar – Estão chegando o Peregrino e o sonho das Estrelas. Revista Tecnologia e Defesa, n. 130, ano 29, Jundiaí, Tecnodefesa Editorial, p. 78-86, 2012; PLAVETZ, Ivan. Joseph Kovács – Quase uma lenda. Revista Tecnologia e Defesa, n. 131, ano 29, Jundiaí, p. 76-78, Tecnodefesa Editorial, 2012; VASCONCELOS, Yuri. Asas do Sul – Dois novos fabricantes de aviões se instalam no estado de Santa Catarina. Revista Pesquisa Fapesp, n. 210, São Paulo, Fapesp, ago. 2013 <http://revistapesquisa.fapesp.br/2013/08/13/asas-do-sul/>
6
Ver PLAVETZ, Ivan. Há algo de novo no ar – Estão chegando o Peregrino e o sonho das Estrelas (op. cit.) e PLAVETZ, Ivan. Joseph Kovács – Quase uma lenda (op. cit.) e também: VASCONCELOS, Yuri. Op. cit.
7
LACAZ, Guto et. al. Op. cit., p. 8. Ver também: Sobre nós. Embraer, São José dos Campos <https://embraer.com/br/sobre_nos>.
8
LACAZ, Guto et. al. Op. cit., p. 35.
9
Para informação atualizada após redação deste artigo, ver: VASCONCELOS, Yuri. O novo caça da FAB. Revista Pesquisa Fapesp, n. 210, São Paulo, Fapesp, ago. 2013.
10
FONTOURA, Alexandre. ’Sit Rep’ do Gripen NG. Revista Segurança & Defesa, n. 128, Rio de Janeiro, Contec Editora, 2017, p. 16-23.
sobre o autor
Paulo Yassuhide Fujioka é arquiteto e urbanista (FAU USP) e professor doutor (IAU USP) desde 2005. É autor da dissertação de mestrado O Edifício Itália e a arquitetura dos edifícios de escritórios em S. Paulo (FAU USP, 1996). Também é autor da tese de doutorado Princípios da arquitetura organicista de Frank Lloyd Wright e suas Influências na arquitetura moderna paulistana (FAU USP, 2003). De 1997 a 2000 foi Assistente de Curadoria da 3ª e da 4ª Bienal Internacional de Arquitetura em São Paulo, eventos organizados pela Fundação Bienal e pelo Instituto de Arquitetos do Brasil. Como arquiteto foi colaborador dos arquitetos Hector Vigliecca (1986-89), Affonso Risi, Jr. e Leo Tomchinsky (1989-91).