Nas cidades de traçado tradicional os espaços públicos guardam princípios de projeto que são valorizados no pensamento contemporâneo e que influem nas ações sobre a cidade. São princípios endossados e ampliados pelas diversas áreas do conhecimento e aceitos pela sociedade pois estimulam o estilo de vida saudável: caminhar, permanecer e conviver em lugares agradáveis. Uma das respostas para atender a este padrão de vida se faz pelo projeto de espaços que incluam o uso multifuncional do pavimento térreo e a permeabilidade e continuidade dos recintos urbanos. São propósitos que podem ser realizados pela facilidade para o transporte não motorizado, a diversidade das construções, a arborização, o mobiliário urbano e a sinalização, de acordo com uma boa gestão do projeto. Para oferecer dados de referência que alimentem projetos como estes e contribuam para conceituar tópicos sobre a arquitetura da cidade, se decidiu estudar tipos de espaços de acesso coletivo desde a galeria comercial até a quadra aberta. Espaços onde o público possa adentrar a soleira do espaço privado e é recepcionado por fachadas atrativas que fazem o invólucro visual do ambiente urbano.
A vantagem obtida pelo empreendedor, no caso das galerias, é a multiplicação das frentes de loja e espaços de vitrine, ao mesmo tempo em que, oferece ao pedestre a possibilidade de cortar caminho pelo interior da quadra. Na quadra aberta definida neste artigo, a quadra poderá ser descoberta ou não (quando as passagens forem do tipo galerias interiores) e possuir uma ou mais passagem de pedestres, ou, circulação controlada de veículos ligando pelo menos dois acessos para os logradouros que a delimitam. Esta definição considera que uma galeria comercial coberta conectando as calçadas de duas ruas pode ser uma passagem atrativa e faz-se lembrar as belas galerias comerciais europeias que permitem transpor através do interior da quadra. Para efeito de classificação tipológica, se considera como aberta a quadra que possua uma galeria chegando apenas ao fim do lote, portanto, não atravessando a quadra. Quando a passagem atravessa ligando duas ou mais ruas o fato físico da abertura é mais evidente. A classificação que se faz considera o tipo mais simples o da galeria onde se vai e volta pelo mesmo caminho garantindo o sentido do acolhimento das pessoas independentemente do fato físico. Ela permite que o transeunte adentre o espaço privado do lote e ele pertence a quadra.
É interessante observar que em todos os tipos estudados as passagens se situam em lotes, privados ou públicos. O termo quadra aberto difundido devido a Christian de Portzamparc ficou restrito a ideia de passagem através de uma quadra residencial, possuindo as características de um boulevard, desenhado por um exímio arquiteto e viabilizado por seguro mecanismo financeiro. O arquiteto- professor Abílio Guerra, no texto "Quadra aberta, uma tipologia urbana rara em São Paulo", destaca:
“Que tais diferenças demonstram que a tipologia urbana ‘quadra aberta’ não é exclusiva de determinados mecanismos econômicos e/ou princípios estéticos, mas uma possibilidade potencial, que pode ou não ser usada, dependendo da escolha dos projetistas e, principalmente, dos investidores” (1).
Quadras e lotes, o domínio privado e o público
Em São Paulo existem tipos de quadras abertas, cobertas ou descobertas, que permitem subdividir o pavimento térreo por tipos, conforme o grau de passagem entre o domínio público e o privado. A seguir se descreve os tipos mais comuns com foco na maneira de ocupar os espaços e acrescenta-se conceitos de ordem geral quando oportuno.
Tipo 1 – galeria coberta ou não, ocupando a profundidade de um lote
Este tipo é comum na cidade de São Paulo. Observa-se que nas quadras paulistanas padrão de cem por cem metros estas galerias usufruem do lote com profundidade de cinquenta metros. O percurso do pavimento térreo pode se desdobrar para o pavimento superior, para outras lojas e serviços, como é o caso da galeria Le Village situada na rua Augusta 1492, projeto de Siffredi & Bardelli Arquitetos. Os espaços interiores permitem uma boa exposição para as lojas, formando um ambiente agradável tanto para os lojistas como para o público comprador.
Tipo 2 – galeria ligando duas ruas, coberta ou não
Existem diversos exemplos deste tipo na cidade de São Paulo. A Galeria Nova Barão é um exemplo interessante pois está implantada entre dois prédios altos. A passagem livre de pedestres é controlada por um portão de segurança, que se encontra aberto durante os dias úteis e se fecha à noite e aos domingos. Há restrição de horários, como é usual nos tipos de edificação estudadas. O projeto de 1962 é do escritório Siffredi & Bardelli, arquitetos. Esta galeria desenvolvida em dois pavimentos apresenta fácil acesso vertical e integração visual entre os pavimentos.
Tipo 3 – passagem descoberta ligando duas ou mais ruas
Este é um tipo com passagem compartilhada por pedestres e veículos. Representa um tipo menos comum, uma vez que o empreendedor precisará disponibilizar uma área para permitir circulação dos veículos, e conforme o caso fazer doação para a prefeitura da área correspondente à rua, ou então, se responsabilizar por sua manutenção. O espaço urbano obtido é peculiar, pois poderá estabelecer uma ambiência urbana completa, com tratamentos superficiais uniformizados para rua, calçada e edifícios, que poderão ser distintos do logradouro público da região. O espaço interior poderá conter marquises, quiosques comerciais, canteiro central, bancos, vegetação e placas de sinalização. O exemplo escolhido é o Centro Comercial no Bom Retiro, em São Paulo, projeto do arquiteto Lucjan Korngold.
Este tipo demonstra a ideia do que poderiam representar os espaços urbanos segundo o ideário contemporâneo de convivência entre diferentes usos e ocupação do solo, como existem bons exemplos mundo afora e ampla bibliografia (2).
Tipo 4 – passagem coberta pelo interior de um edifício, ligando três ou quatro ruas ao redor da quadra
Este tipo encontra algumas situações exemplares na cidade de São Paulo, como é o caso da Galeria Metrópole e do Conjunto Nacional, situado na avenida Paulista. O Conjunto Nacional ocupa uma quadra típica paulistana de dimensão cem por cem metros (um hectare). Por tratar-se de um empreendimento único, todo o embasamento comercial é transposto por passagens cobertas que desembocam nas ruas envoltórias. As galerias do Conjunto Nacional são amplas e bem articuladas através de pontos de encontro que as redirecionam para diferentes lugares. O projeto é de responsabilidade do escritório do arquiteto David Libeskind.
Tipo 5 – abertura do lote para a cidade, espaços de acesso público
A configuração é de uma praça ou plaza que funciona como um espaço de convivência e de acesso ao centro comercial, ao hall de acesso de prédio residencial, hotel e escritório. A ideia de plaza vem do costume norte-americano das pessoas desfrutarem de um intervalo para almoço pequeno, muitos trazerem seu próprio lanche e ficar por perto do local de trabalho para comer informalmente e descontrair. Um exemplo deste tipo é o Brascan Center, também referência para o objetivo de se criar espaços abertos saudáveis como se pretende hoje em dia. O projeto tem autoria de Konisberger & Vannuchi arquitetos.
Tipo 6 – passagem coberta ou descoberta através de quadra institucional
O exemplo escolhido para ilustrar este tipo é a Praça das Artes. Nesta obra, por iniciativa da Fundação Theatro Municipal, a configuração do projeto foi se alterando desde os estudos iniciais, em consequência de uma seguida anexação de lotes vizinhos. Os procedimentos em relação a desapropriação de lotes e a definição do programa de necessidades foi de responsabilidade da Fundação, e o projeto de autoria do escritório Brasil Arquitetura. Trata-se do tipo de intervenção em uma preexistência, onde o espaço de fruição no interior da quadra é obtido incorporando imóveis contíguos para aumentar a abrangência do projeto na quadra e a conectividade do projeto com as ruas circundantes.
A Praça das Artes apresenta saída para três ruas: a rua Formosa, avenida São João e rua Conselheiro Crispiniano. Ela se coloca como um exemplo de como uma quadra antes problemática e consolidada pode se alterar com um novo projeto, mantendo-se alguns imóveis tombados e permitindo a passagem livre de pessoas pelo nível térreo. Este projeto oferece um espaço aberto amplo entre as ruas e de acentuada sobriedade, na expectativa da realização de eventos culturais que deem cor ao local e animação ao espaço construído.
Tipo 7 – a quadra aberta
Esse tipo não é comum em São Paulo, mas não tanto por esta razão, e sim para se comentar a quadra aberta que ensejou este levantamento de tipos, tratar-se-á do conjunto projetado pelo escritório de Christian de Portzamparc, Les Hautes Formes (3).
Observando a figura, se encontra a esquerda um projeto habitacional chamado Caisse d’Allocations Familiales de Paris; no centro o Conjunto Les Hautes Formes ladeando a rua de mesmo nome; à direita a Université Paris 1, Panthéon Sorbonne. A quadra é formada pelas vias: Rue Baudricourt, Rue Nationale e a Rue deTolbiac. A Rue des Hautes Formes vai da Baudricourt a Nationale e era uma passagem antiga com casas em fileira assobradas e construção modesta de meados do século 19, oficialmente a rua separava duas quadras que foram unidas por Portzamparc (4).
Este pequeno relato sobre esta quadra foi para mostrar como as transformações aconteceram no tempo e se configurou o caráter de lugar, reafirmando sua pré-existência residencial em um contexto de bairro periférico a área central da cidade de Paris.
A Rue des Hautes Formes, antiga Passage des Hautes-Formes, definida por casas em fileira no alinhamento da passagem (pesquisa em fotos antigas) foi redesenhada como uma via local interna ao novo empreendimento de apartamentos subsidiados. Observar na figura o local da passagem onde há um portão com trava simples que as pessoas abrem e fecham para acessar o espaço residencial. Em seguida, mostra-se a passagem interna com pavimentação para pedestres e para veículos, de forma sinuosa e pátios de transição, servindo para chegar aos blocos verticalizados destinados à habitação.
Considerações finais
Motivados por discussões recentes sobre a qualidade de vida no ambiente urbano, em São Paulo, onde a Prefeitura para a elaboração do Plano Diretor De Desenvolvimento Estratégico – PDE 2014, teve este tema como parâmetro, chegando a recorrer a consultoria do escritório de Jan Gehl Associates para reforçar propostas que poderiam em ambiente propício, serem levadas a cabo com competência por profissionais locais; como exercício acadêmico se produziu este trabalho. Também reforçado pelas pesquisas de nosso grupo relacionadas com o assunto da morfologia urbana e tipologia de espaços públicos. De início se considerou a questão da quadra aberta e a particularidade da difícil interação entre público -privado para a realização de projetos urbanos, da qual o edifício Praça das Artes é um exemplo particular, onde uma quadra do centro da cidade foi aberta com uso estritamente institucional. Por sua vez a quadra atravessada pela Rue des Hautes Formas em Paris, que sugere o conceito de quadra aberta, é estritamente residencial. Isto foi nosso incentivo para observar em São Paulo como ocorrem aberturas de quadras, desde o tipo 1, a abertura em um lote relativamente pequeno voltado para uma via arterial até a proposta de controle institucional da Praça das Artes.
Os três primeiros tipos foram considerados porque, sendo as passagens cobertas galerias fechadas ou abertas para um dos lados elas representam situações efetivas de ligação entre duas ou mais ruas que delimitam uma quadra, gerando permeabilidade, atividades comerciais e de serviços no térreo, ambiente de acesso a circulação vertical e uma caminhada atrativa pelas vitrines das lojas, pátios e jardins internos. São tipos de quadras situadas em áreas onde o espaço destinado a atividades comerciais favorece o conceito de passeio e encontros informais.
A quarta e o quinto tipo remetem à discussão da quadra aberta no sentido colocado por Christian de Portzamparc em meados dos anos 1980. Estes tipos se aproximam aos ideais de vida saudável referidos nas concepções mais novas de integração das atividades dos cidadãos para o estar e caminhar por ambientes abertos, saudáveis e agradáveis.
Existem níveis de privacidade que vai desde os logradouros públicos, onde o acesso é livre, onde o imóvel e o terreno são de propriedade pública, como o exemplo de uma praça. O controle fica restrito no prédio público (escola, hospital e outros) onde é indispensável o controle do acesso. No caso dos lotes privados o controle ainda é maior, devido a insegurança que paira em São Paulo e pelo sentido de posse ou vontade de identificar o público que chega: o jardim é meu, pago impostos e a manutenção também, por isto não quero estranhos neste pedaço e como dizem os ingleses: no planejamento da cidade eu concordo com tudo, mas, not in my back Yard ou “nimby”, forma de dizer pelo conjunto das iniciais, corrente entre os urbanistas.
A questão da propriedade do espaço é o grande problema para a fruição de atividades que se procura hoje. Isto acontece nos espaços que associam lazer e comércio e em pontos centrais onde existe habitação, escritórios e outras atividades de serviço nos pavimentos acima. Nestes casos os convidados são benvindos, existe a atração de interesses para que as pessoas adentrem o espaço privado. Tanto na Galeria Nova Barão típica do comércio do Centro ou o charme do apelo às pessoas de classe média para consumir, ir para suas residências, hotel ou cinema no Brascan Center, onde a pequena praça de acesso é aberta, mas vigiada por guardas de segurança não armados. Em São Paulo estamos aos poucos, bem aos poucos, melhorando no sentido de valorizar a necessidade das relações público- privado nos projetos urbanos.
notas
1
GUERRA, Abilio. Quadra aberta. Uma tipologia urbana rara em São Paulo. Projetos, São Paulo, ano 11, n. 124.01, Vitruvius, abr. 2011 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/projetos/11.124/3819>.
2
Ampla bibliografia da qual se aponta autores para o tema, que possui uma história e hoje é tão efervescente:
SITTE, Camillo (1889). A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo, Ática, 1992; CULLEN, Gordon. Townscape. Nova York, Van Nostrand Reinhold, 1961; APPLEYARD, Donald. Livable Streets. Berkeley, University of California Press, 1981; SPECK, Jeff. Walkable city: how downtown can save America, one step at a time. Nova York, North Point Press, 2012; GEHL, Jan. Cidade para pessoas. São Paulo, Perspectiva, 2013; CLEMENTE, Otto; EWING, Reid; HANDY, Susan; BROWNSON, David Ross. Measuring Urban Design Qualities: an illustrated field manual. Princeton, Robert Wood Johnson Foundation, 2005; EWING, Reid; HANDY, Susan. Measuring the Unmeasurable: Urban Design Qualities Related to Walkability. Journal of Urban Design, n. 1, v. 14, Salt Lake City, fev. 2009, p. 65-84; BARTHOLOMEW, Keith; EWING, Reid. Pedestrian & transit-oriented design. Nova York, Urban Land Institute, 2013; KARSSENBERG, Hans; LAVEN, Jeroen; GLASER, Meredith; VAN ‘T HOFF, Mattijs. A cidade ao nível dos olhos: lições para os plinths. Porto Alegre, Edipucrs, 2015.
3
PORTZAMPARC, Christian. Terceira era da cidade. Oculum, n. 9, Campinas, FAU PUC Campinas, 1991.
4
No site Wikipedia encontra-se uma foto antiga e informações sobre este antigo conjunto de residências em fileira, do qual, o terreno formado pela agregação de lotes com profundidade variada serviu para o projeto de Portzamparc. Segue-se que esta quadra ficou parcelada por apenas três terrenos. Cf. visita dos autores ao local e: Rue des Hautes-Formes. Wikipedia, San Francisco, 05 abr. 2011 <https://fr.wikipedia.org/wiki/Rue_des_Hautes-Formes>.
sobre os autores
Adilson Costa Macedo é arquiteto e urbanista pela FAU USP (1964) e mestre pela Harvard University Graduate School of Design (1977). Foi aluno da Bartlett School of Architecture and Planning (1984-1985) com bolsa CNPQ. Professor doutor da FAU USP e da Universidade São Judas Tadeu, participa desde 2010 do grupo de pesquisa Arquitetura da Cidade.
Maria Isabel Imbronito é arquiteta e urbanista (1994), mestre (2003) e doutora (2008) pela FAU USP. É professora na Universidade Presbiteriana Mackenzie e na Universidade São Judas Tadeu, onde desde 2010, lidera o grupo de pesquisa Arquitetura da Cidade.
Jessica Caroline Cavaletti é mestre (2019) e arquiteta (2016) pela Universidade São Judas Tadeu.