Cinema para pensar cidades
O cinema possui artifícios capazes de articular uma linguagem que confere verossimilhança àquele universo, seja ele real ou não, e portanto, para o espectador, cria-se objetivamente uma possibilidade de futuro: um sonho. Então, o filme assume um movimento em duas direções: ele é produto cultural do presente ao mesmo tempo em que lança perspectivas de futuro; ou ainda, ele é produto do presente, mas pode se colocar à parte desse momento para criticá-lo, analisá-lo. A partir do vislumbre, são permitidas as transformações. Ainda que a cidade do cinema não seja a cidade real, mas sim uma representação dela, ou uma escolha-de-observação sobre ela, esta influencia e é influenciada. Em um movimento quase tautológico, filmar a cidade alimenta aquilo que a constrói, até que sua materialidade se pareça com sua versão filmada: cinegenia (1).
Uma vez estabelecida a reciprocidade entre cidade e cinema, interessa aqui aquilo que une estes dois objetos num sistema de representação e representado. O cinema, ao lançar mão de seus artifícios narrativos, possibilita uma leitura de cidade, que é devolvida para o espectador como imagem, que por sua vez, opera transformações de significado na relação espacial subjetiva. Desse modo, o aspecto caótico do cotidiano urbano assume graus de legibilidade e compreensão pelo indivíduo, ainda que o faça através das lentes de diretores, roteiristas, atores etc (2). Além do sonho, o cinema transforma a leitura do presente possibilitando interpretações sobre o agora.
Quando filmada, a cidade também coleta vestígios: os corpos, palavras, gestos, movimentos fugidios do cotidiano. A câmera transforma a cidade em texto, e ao mesmo tempo em coletânea de todas as práticas sobrepostas e justapostas que tomam corpo no espaço urbano. Esse processo acontece mas não sem atravessar uma escolha, pois sendo uma representação, o cinema direciona um olhar: ao mesmo tempo em que mostra algo, deixa de mostrar o que está fora do quadro. A cidade filmada não é a cidade real e tampouco um espelho dela (mesmo nos filmes de caráter documental). É uma lente através da qual o espectador adquire uma possibilidade de visão fora de si, direcionada ao próprio indivíduo e ao seu ambiente.
Valendo-se dessa postura fundamental em relação ao cinema, este texto se apoiará sobre uma articulação entre dois filmes e nas reflexões que eles suscitam sobre o espaço urbano, medo e segregação: O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho e Um Lugar ao Sol, de Gabriel Mascaro (3).
O som ao redor: a rua sob suspeita
O Som ao Redor, escrito e dirigido por Kleber Mendonça Filho e lançado no Brasil em janeiro de 2013, apresenta-se como uma comunhão de histórias cotidianas da classe média brasileira, transcorridas em sua maioria no interior de edifícios da rua Setúbal e no espaço público da própria rua, localizada em Recife, Pernambuco. Não apenas percebe-se que as histórias se justapõem num mesmo universo espacial, como também se entrelaçam e são percorridas pelos mesmos laços estruturais. É possível argumentar que um dos temas centrais da trama é a permanência de relações arcaicas em contextos modernos. As fotografias em preto e branco de uma realidade histórica e rural que iniciam o filme, posicionam um ponto de referência que reverbera ao longo da trama. Remetendo às relações de patrão e empregado, coronelismo, trabalho rural e latifúndios, essa sequência encontra ecos modernos na relação de João com sua empregada Mariá, a qual trata com cordialidade e preocupação, apesar de suas posições de empregador e empregada estarem bem definidas; ecoa também na figura de Francisco, proprietário de vários imóveis na região e na área rural, que emprega seu neto João como corretor imobiliário, e assume um papel de patriarca, de modo que sua “benção” é necessária para que um grupo de vigilantes trabalhe naquela rua; ou ainda na cena em que um grupo de condôminos discute a demissão do porteiro, apesar sua história como trabalhador daquele edifício há anos. Os subalternos de O Som ao Redor são figuras que problematizam as relações da classe média branca por ele retratada. Em uma cena emblemática, João e sua namorada Sofia viajam para as terras de Francisco, em Bonito, onde vão para uma cachoeira. A água transformada em sangue (apenas para o espectador) não explica, mas aponta para o passado violento sobre o qual o patriarcado construiu suas riquezas modernas, das quais disfrutam naquele momento, João, Sofia e Francisco.
Em outra chave de discussão, o filme capilariza em sua narrativa a dualidade entre o espaço privado e o público, o eu e o outro, potencializados por discursos de proteção, ameaça, medo e violência. Já no início do filme, duas crianças brincam pelo estacionamento de um edifício. Vê-se muros, grades e cercas, até que elas chegam em uma quadra cercada onde estão outras crianças e várias babás; algumas crianças, atraídas pelo som elétrico de uma serra, observam, através da grade, um trabalhador serrando uma proteção de janela: a vida acontece entremuros, com o olhar direcionado para fora. O externo também invade o interno, como mostra a saga de Bia para lidar com o cachorro do vizinho e seus incessantes latidos; ou uma bola de futebol que atravessa o muro e cai no prédio vizinho para não encontrar mais retorno. O som tem papel importante nesse quesito, de modo que ele não respeita as limitações espaciais, atravessa frestas e penetra no espaço privado dos apartamentos, força o mundo exterior dentro do universo particular. Esta invasão também é colocada por uma cena onírica, onde a filha de Bia vê pela janela uma multidão de homens negros pobres pulando o muro e violando a entrada do prédio: a alteridade e o medo da invasão se canalizam enquanto subconsciente.
Ao desenrolar de O Som ao Redor, o medo assume formas físicas e manifesta-se como plataforma de relações sociais. Quando o carro de Sofia tem as janelas quebradas e o rádio roubado, a suspeita recai sobre outro morador daquela rua, Dinho, primo de João. Em outras palavras, o crime faz parte daquela realidade, não é externo. O medo e a desconfiança tornam-se presentes através do grupo de vigias da rua, que oferecem o serviço mediante um pagamento, mas não sem a incerteza do que pode acontecer a quem aceite pagar a vigilância. A visão da rua é colocada como uma visão de perigo iminente. Quando observada a partir do interior dos edifícios, se faz através de câmeras de segurança, que colocam em dúvida o caráter de quem anda pela rua; ou é feito com olhar distante, desconectado. Quando observada da própria rua, a freada brusca de um carro, um estrangeiro perdido ou um carro que estaciona em meio a uma noite chuvosa são motivos de desconfiança. É na rua que acontece o roubo, o acidente de automóvel, a agressão física de fato, mas também é lá que se localizam as suposições. No radar dos vigilantes da rua, ela se torna um local que não pertence a ninguém, apenas a Francisco, que anda pela rua escura, murada e vazia até o mar e retorna para seu edifício. É possível interpretar ainda, que o garoto negro que aparece por vezes subindo em telhados, invadindo uma casa, subindo em uma árvore, é uma presença fugidia, mas não ausente: a própria ameaça corporificada (4).
Um lugar ao sol: escolha do distanciamento
Um Lugar ao Sol é um filme documentário escrito e dirigido por Gabriel Mascaro, lançado em 2009 no Brasil. A proposta para o filme é simples: entrevistar moradores de coberturas de edifícios. Baseando-se numa lógica que permite que os moradores falem de si mesmos e de seus espaços, o documentário apresenta nove entrevistas, localizadas no Rio de Janeiro, em Recife e São Paulo. Em um ponto de diferença ao filme O Som ao Redor, aqui é colocado um recorte social direcionado à classe alta.
O filme apresenta as entrevistas de modo que o espaço privado do entrevistado se funda com ele. Como uma fala recorrente entre os entrevistados, a vontade de isolamento gera um espaço privado que é síntese do seu morador, ao mesmo tempo em que é agente de sua separação social e espacial daqueles que não participam de seu universo. Dessa perspectiva, as imagens da rua são colocadas à distância, vistas de cima, tornando-se uma espécie de maquete que não faz parte da realidade dos moradores das coberturas, tornam-se cenário. De maneira análoga, aqueles que transitam pela rua são figuras sem rosto, fora de foco, também observadas à distância.
Nessa relação com o outro reside um jogo de olhar e ser olhado. Aqueles que moram nas coberturas indicam o ponto positivo de não serem observados por ninguém, entra o discurso da privacidade. Ao mesmo tempo, isso permite que eles observem, sejam os prédios mais baixos vizinhos, a distante rua ou a favela próxima, como mostra uma sequência em que uma das entrevistadas filma a cidade do Rio de Janeiro a partir de seu apartamento. Ela, ao falar sobre a comunidade Dona Marta, visível pela janela de seu apartamento, diz que assemelha-se a uma caixinha de brinquedo. Também faz parte da relação com o outro sua negação. Não há vizinhos (nem ao lado, nem em cima), os empregados não precisam transitar no mesmo espaço que os patrões. A distância intermedia as relações (5).
A separação social entre aqueles que têm o privilégio de morar em uma cobertura e aqueles que não podem, ganha autenticidade através da visão que o outro tem do indivíduo privilegiado. Na fala de um dos entrevistados:
“A própria sociedade, quando você chega em baixo e diz para o zelador: ‘Eu vou na cobertura’, as pessoas já te veem de uma forma diferente” (6).
Outro entrevistado mostra as diferenças entre preencher um cadastro descrevendo o endereço como “cobertura”, ou omitindo este complemento: os tratamentos recebidos diferem. Ou seja, a condição de status que a morada confere, apesar de nem todos admitirem, perpassa o imaginário dos moradores das coberturas entrevistados.
Outro tema que subjaz o discurso da maioria dos entrevistados é a questão da segurança. Ao que o filme mostra, eles tiveram a possibilidade de escolha da morada, e que entre os fatores de decisão está, sem dúvida, a impossibilidade de combinar uma moradia dita segura na localização desejada e os luxos espaciais, como quintal, piscina, estúdios etc. Contudo, é comum na fala dos entrevistados a persistência do medo e da insegurança. Uma moradora fala da sua constante insegurança, apesar de possuir um sistema de segurança avançado; outra lembra um momento em que todo o edifício foi assaltado por quinze pessoas.
Cidade filmada: o lugar do outro
O primeiro ponto de convergência entre os dois filmes pode ser caracterizado pela negação do outro. A alteridade que requisita a atenção das personagens em O Som ao Redor é afastada pelas grades, muros e pela descartabilidade da narrativa do outro ao compor sua versão dela. Em Um Lugar ao Sol, as figuras embaçadas que andam pela rua, o afastamento deliberado de vizinhos e a distância de outros (ainda mais quando diferentes), trazem à tela a negação do outro.
Sustentando a negação da alteridade, o segundo ponto de convergência é o papel do espaço privado como agente da segregação, e do espaço público como agente da insegurança. Os muros e grades dos edifícios em O Som ao Redor conformam uma espacialidade de confinamento, do ponto de vista interno, e de exclusão, do ponto de vista externo. Já em Um Lugar ao Sol, os apartamentos de cobertura são manifestações metafóricas e literais da auto-segregação sócio-espacial (7).
O terceiro ponto convergente se liga aos anteriores de maneira ambígua enquanto causa e consequência ao mesmo tempo: o medo como articulador das relações sócio-espaciais. No filme de Kleber Mendonça Filho, a rua é o locus da desconfiança e do crime, tornando complementar o medo da invasão e o medo da presença do outro, fatores centrais que balizam as relações com os vizinhos. No documentário de Gabriel Mascaro, o medo se manifesta na própria escolha dos moradores em se distanciar do “mundo da rua”, e nas ferramentas de segurança, utilizando um discurso de privacidade e privilégios materiais que possibilitam uma vida segura.
Em seguida, o quarto ponto em comum deriva dos outros três por tratar-se das estratégias de segurança. Artifícios como câmeras de segurança, equipes de vigilância da rua e seguranças privados, entre outros, são apresentados como intensificadores da sensação de segurança, ainda que o medo não se dissipe por completo.
Neoliberalismo e a interiorização do indivíduo
As questões que os filmes de Kleber Mendonça Filho e Gabriel Mascaro levantam, apesar de apresentarem nuances particulares das realidades colocadas, não são independentes. Inclusive, é possível dizer que tais práticas estariam embutidas em um panorama maior, caracterizado por um momento de transição entre economias, afetos, políticas e sociabilidades. A permanência de relações arcaicas vistas em ambos os filmes (entre empregados e empregadores) e suas manifestações espaciais (como o apartamento de dois andares para evitar contato com os empregados), ilumina sua inerente incompatibilidade com as dinâmicas atuais, traduzidas em contradições.
“A transição de um mundo no qual, para nós, já não é possível viver ou não achamos desejável viver, para outro mundo – que, contudo, não chegou e talvez não chegue jamais” (8).
A ambiguidade das relações retratadas nos filmes apontam, nesta leitura, na mesma direção da colocação de Pardo. O autor diz que os conceitos e relações sobre os quais foi construída a cidade anterior, já são obsoletos, e inúteis para que a cidade possa fazer frente a seus desafios futuros, ao mesmo tempo em que ainda não terminou-se de instalar o novo modo de operação, causando a reconhecida sensação de eterna construção e destruição. No entanto, este período de transição não teria caráter neutro. Por debaixo de sua aparente lógica caótica, residiriam intenções e direcionamentos hegemônicos que teriam como resultado a destruição do tecido urbano, entendido aqui não somente como os aspectos urbanísticos espaciais, mas também em seus aspectos sociais e políticos.
Para Pierre Dardot e Christian Laval (9), este período é identificável e opera enquanto uma forma de racionalidade que impregna todas as esferas da vida, indo desde o governante até o governado: neoliberalismo.
“O neoliberalismo pode ser definido como o conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens segundo o princípio universal da concorrência” (10).
Para os autores, a estrutura que subjaz as dinâmicas de governabilidade e sociabilidade atuais é a da concorrência. Aplicada nas diversas escalas, ela pauta-se na conquista máxima do controle sobre si. Seja em empresas, governos ou ao próprio indivíduo, esta extensão de atuação é garantida pela simbiose estabelecida entre a iniciativa privada e a estatal, que implica diretamente em uma transformação da subjetividade, agora sujeita à esta mesma lógica. Esta construção deságua em uma perspectiva em que o indivíduo deve gerir a si mesmo, pautado pela lógica da concorrência como se fosse uma empresa, de modo que são conduzidos, pelo próprio Estado-empresa, a transfigurarem-se todos em indivíduo-empreendedores, configurando uma interiorização do indivíduo. Os modos de morada que O Som ao Redor e Um Lugar ao Sol apresentam podem ser lidos como manifestações urbanas dessa interiorização: condomínios verticais, onde cada apartamento protege-se do outro, busca afastar-se dos adjacentes. É preciso atentar para o modelo tentacular que o neoliberalismo, como colocado por Dardot e Laval, que chega a borrar as separações entre esfera privada e pública, e corrói os fundamentos da democracia liberal.
Após uma recuperação da crise da década de 1980, os investimentos começam a ganhar força e a tomar a forma de bens imobiliários. Como Julio Arroyo aponta, uma das consequências da recuperação econômica neoliberal do país foi a verticalização das cidades, aumentando a densidade construída e populacional e competindo com os espaços urbanos de tradição simbólica (11).
Cidades de muros
As formas de morar que ambos os filmes mostram, apesar dos recortes de classe serem diferentes, compartilham a característica perversa de negação do espaço público. A rua se torna apenas espaço para os automóveis e para aqueles que desafiam a lógica de desvalorização do espaço público: o “dono da rua”, aqueles que a vigiam e o andarilho. Ela também aparece como objeto de observação distante, vista através de frestas e sobre os muros, onde transitam corpos enigmáticos.
Essa dinâmica configura um tipo de espaço público controverso, que pode ser definido como público apenas por não ser privado, mas não como locus de uma forma de vida coletiva (12). Ou seja, a própria noção de que o espaço público carrega uma responsabilidade formadora das ideias de coletividade, sociabilidade e democracia é borrada, e passa a competir com outras dinâmicas atuais no mesmo espaço, como a implantação de arquiteturas ofensivas, muros, securitização e vigilância. Como já apontado anteriormente, e ilustrado pelos filmes, essas espacialidades estão ligadas a uma estética da desconfiança e do medo, negando justamente a sociabilidade e a coletividade.
“As transformações recentes estão gerando espaços nos quais os diferentes grupos sociais estão muitas vezes próximos, mas estão separados por muros e tecnologias de segurança, e tendem a não circular ou interagir em áreas comuns. O principal instrumento desse novo padrão de segregação espacial é o que chamo de ‘enclaves fortificados’. Trata-se de espaços privatizados, fechados e monitorados para residência, consumo, lazer e trabalho. A sua principal justificação é o medo do crime violento” (13).
O termo “enclaves fortificados” corresponde a uma gama de objetos urbanísticos que compartilham as seguintes características. São propriedade privada de uso coletivo, valorizam o ambiente privado em detrimento do público, são fisicamente demarcados por muros e grades, são voltados para seu interior e não à rua, controlados por guardas ou sistemas de segurança, impõem algum modo de controle de ingresso, podem ser espaços autônomos em relação à cidade, aqueles que habitam estes espaços escolhem conviver entre pessoas seletas, são espaços indicadores de status.
Como a autora coloca, utilizando São Paulo como exemplo, durante a década de 1970, com financiamento do Banco Nacional de habitação – BNH, a produção imobiliária de edifícios de apartamentos aumentou consideravelmente e, frente aos 12% de apartamentos voltados para o mercado popular, solidificou o apartamento como uma moradia da classe média. Em contraste, nesse mesmo período os pobres habitavam primordialmente as periferias precárias e casas autoconstruídas. Já em meados da década de 1980, em uma São Paulo mais complexa e fragmentada, a fortificação da cidade, tendo em vista o aumento do crime violento, ganha força, carregando com ela ao proliferação de preconceitos, estigmatizando áreas precarizadas da cidade.
Seguindo o rumo da segregação encontra-se a individualização junto a uma transformação simbólica no que se refere ao isolamento, conferindo a ele valores positivos. É perceptível na fala de vários entrevistados de Um Lugar ao Sol, a relação entre qualidade de vida e isolamento. Elementos relacionados à vida comum, como o barulho de carros, os afazeres dos empregados, o lazer na praia, a interferência de vizinhos, são deliberadamente evitados e não têm espaço naquele modo de morar. Tal isolamento implica em uma atomização dos indivíduos, encerrando suas realidades ao seu espaço apenas, mas consumindo as narrativas que ocupam os espaços externos àquele do indivíduo (14). Em Um Lugar ao Sol, por exemplo, alguns entrevistados apontam como um passatempo, a observação das pessoas que andam pela cidade; em O Som ao Redor essa atividade é representada pelos trabalhadores de um lava-rápido da rua, pelas passagens em que Bia observa a casa vizinha com um binóculos, e por todas as cenas dos vigias da rua.
Considerando que a atividade de observar o outro à distância faz parte do mesmo universo da proteção do eu e das estratégias de securitização, adotadas em condomínios de apartamentos, é possível assumir o conceito que Rodrigo Castro Orellana coloca como “dispositivos panópticos”: ferramentas de visibilidade que ocultam a própria verificação, tornando-se agentes de algo ou alguém que não pode ser checado, assim como instituem uma gestão sobre os corpos sem informar seus parâmetros para isso. Aqui, entende-se este conceito ancorado a uma produção arquitetônica (e consequentemente, de cidade) que permite e potencializa uma instituição disciplinar, em outras palavras, uma forma de governo dos corpos. Somados às estratégias de proteção, como muros e grades, os dispositivos panópticos se colocam no espaço urbano via guardas particulares, câmeras e microfones; elementos de vigilância e controle sobre as diversidades, minando as heterogeneidades e conflitos para convertê-los em homogeneidade e conciliação, além de sustentarem um sentimento de desconfiança daquele que é observado. Pode-se dizer, então, que os meios de proteção ficaram sob encargo de cada indivíduo, e a segurança tornou-se um produto seleto.
Assim, sistematizada por uma estrutura neoliberal, com manifestações espaciais nas cidades brasileiras e impactando as práticas sociais, os enclaves fortificados configuram uma lógica de sociabilização e urbanização que não é nova, mas que impregna em todas as esferas da vida. Identificados como produtos modelos de resolução de problemas da morada, como a exclusão da precariedade, do risco e da indeterminação, os enclaves fortificados excluem o que está fora de seus muros, e em relação aos seus espaços intramuros, aparecem como resquícios os espaços de sociabilidade, contudo destinados a um grupo social homogêneo. Nesse ambiente, a figura do síndico aparece como reguladora de condutas, e possui seus artifícios como proibições, controles de acesso e vigilância, que frente às menores divergências, são acionadas com potência por entender que entre iguais as pequenas diferenças se tornam gigantes. Os muros, então, como um dos artifícios de controle, assumem um papel dual de negação (limite) e de reificação (“aqui, sim”) e ao comporem a lógica do condomínio, alteram as dinâmicas de sociabilidade e as construções de subjetividade (15).
Sociabilidades em jogo
“Eu fico mais aqui na piscina né, porque a praia vive muito cheia. E o pessoal hoje em dia na praia, é toda hora ‘quer isso? Quer aquilo?’ Uma guerra né. Você vai, chega lá para arrumar uma cadeira pra sentar já é uma batalha. Para tomar banho (de mar) tá ruim. Infelizmente. É triste falar isso mas... não é bom hoje em dia tomar um banho de mar. Porque, tá sujo. Tá sujo, tem os tubarão. Tomara que corte isso. Vão dizer que eu estou fazendo propaganda negativa da cidade. Mas, eu fico aqui. Eu gosto da privacidade. Faço o que eu quero, trago quem eu quero, ninguém me perturba” (16).
À medida que o espaço privado e individual tem seus traços de refúgio, prisão e privilégio reforçados, a cisão que isso causa rebate no espaço público sedimentando conceitos e alimentando imaginários de ameaça, insegurança, medo, intolerância e caos. Assim, é possível dizer que uma dinâmica espacial não é unicamente espacial, pois deriva de e implica em dinâmicas de força capazes de moldar não só o espaço físico como a sociabilidade que o preenche.
Para Christian Dunker, a dinâmica que os muros provocam nas cidades brasileiras, e que têm papel fundamental na instalação do que ele chamou de uma psicopatologia social no Brasil, fazem surgir figuras de controle, as quais apesar de assumirem diversas formas, possuem objetivos similares: ordenar, regular, gerir. O síndico de condomínio, enquanto figura social que ocupa os mais diversos espaços, em nome de uma ordem superior (armado de frases como “Estou apenas seguindo a lei” ou “Você sabe com quem está falando?”) age como ferramenta de coerção, separando os lados, identificando resoluções simbólicas dos conflitos mas nunca resolvendo-os de fato, apenas gerindo-os.
É possível concordar com Innerarity quando o autor coloca que toda percepção da realidade pressupõe um contexto e, portanto, conferindo à sociedade pós-moderna a característica de multiperspectivista. Essa gama de percepções não permite uma unificação de contextos, que levaria à comunicação, acessibilidade e definição de barreiras vigentes. Em contrapartida, tal diversidade é recebida por um desejo de controle e governo. A figura do síndico é reforçada.
Entendendo a cidade como sendo, por natureza, contraditória e conflituosa, não há como contê-la em uma imagem hermética e uniforme. O mesmo pode-se dizer para a sociabilidade urbana. Ao mesmo tempo em que é necessário algum grau de controle e segurança, é também perigoso suprimir as divergências, negar a alteridade sob o risco de que as diferenças se tornem cisões e erodam, inclusive, aquilo que entendemos por espaço público democrático.
“À imposição da transparência falta precisamente esta ‘ternura’, que não é mais do que o respeito de uma alteridade que não pode ser por completo eliminada. Contra o afã de transparência que se apodera da sociedade atual, seria necessário exercitarmo-nos na atitude da distância” (17).
A distância a que Byung-Chul Han se refere pode ser interpretada de maneira perversa. De acordo com o autor, trata-se de uma distância entre os presentes, estabelecida e compreendida por ambos os lados, de modo que à alteridade, a que ele se refere, é preciso respeito. Ou seja, as diferenças de perspectivas entre grupos sociais ou indivíduos sociais não poderão ser achatadas em uma ilusória concordância, ao contrário, elas devem ser reconhecidas e, por isso, resguardadas às suas distâncias já que possuirão divergências. Um apartamento em uma cobertura é uma resposta, ou um sintoma, a uma tentativa de achatamento narrativo social. Frente à impossibilidade de compartilhar o espaço público com o diferente e garantir a distância que ele pede, isolo-me e torno-me transparente por definir papéis claros: eu, aqui, os outros, lá. No entanto, a proposta de Han encontra dificuldade em colocar-se em prática, devido à falta de lugares (físicos e sociais) em que ela pode tomar forma.
Em O Som ao Redor, o jogo feito entre espaço público e privado pode ser caracterizado pela mútua invasão de um no outro. O som dos carros, do cachorro, do vendedor de rua atravessam os limites e ingressam nos apartamentos, assim como os entregadores; no movimento contrário, o assalto na rua leva o casal até a calçada, a arrogância resguardada a uma classe vai a rua e menospreza flanelinhas.
O que o filme coloca de modo disperso e imaterial são os pontos liminares. Para Stavros Stavrides (18), as bordas entre o público e o privado são porosas, separam enquanto conectam; possuem um papel simbólico de configurar transição para “o outro”, ou seja, validando esse movimento de conexão; podem ser elementos físicos como escadas e praças ou ser criadas pelo uso, como uma rota de migração e uma festa na rua. Nesse sentido, os muros e os apartamentos de coberturas compõem um universo em que as identidades são definidas e localizadas. Não há porosidade. Para sustentar um espaço poroso, uma soleira, é preciso reconhecer o que habita “aqui” e aquilo que habita “lá”, compreender o “outro” e o “eu”. Os limiares não podem ser reconhecidos enquanto a figura do síndico permanecer: ele é um agente do achatamento narrativo, da divisão. Talvez uma figura distinta, como a do observador errante, possa oferecer novas sociabilidades urbanas.
Medo como articulador de relações
A leitura de ambos os filmes apresentados evidencia aspectos do cotidiano que denunciam uma lógica estrutural. A confiança nas câmeras de segurança, a auto segregação em condomínios, a recusa ao espaço público, as empresas de segurança privada, a desqualificação do outro, são elementos que despontam munidos de um discurso de segurança e preservação do espaço próprio, e por vezes não reconhecendo que tais atitudes repercutem perversamente para além da esfera privada, ou que na verdade o que pauta essas escolhas é o medo.
Em sua obra, Slavoj Žižek (19) extrapola as consequências de uma sociedade pautada sobre o medo, e aponta para suas manifestações em forma de negação da alteridade, intolerância religiosa e políticas antimigratórias.
Tal capilarização da dinâmica do medo somada à uma impregnação geracional dos valores apresentados como positivos, acaba por naturalizar todo o capital do medo que sustenta estas práticas, bem como suas manifestações materiais e sociais mais próximas do cotidiano. Não é estranho, por exemplo, validar formas segregatórias de moradia, ou ignorar o espaço público enquanto confirmação espacial da democracia, em nome de uma sensação de segurança.
Para Zygmund Bauman (20), a sociedade moderna foi construída sobre a ideia de que o perigo e a insegurança são inerentes a ela. Percebe-se então uma exacerbação dos medos a partir da redução do controle estatal, e da dissolução da ideia de solidariedade e comunidade, para dar lugar a um entendimento de dever individual do cuidado de si e do fazer por si mesmo. No entanto, como o autor aponta, as saídas encontradas para satisfazer a necessidade de segurança na cidade e sociedade modernas, não acontecem sem contradições, já que tratam-se de soluções locais para problemáticas globais, e portanto, além de insuficientes, são atitudes que implicam efeitos colaterais, como a negação da alteridade, a impossibilidade de articular conflitos, dificuldade em solidificar construções identitárias, entre outras. Também é importante colocar que diante dessa situação, aqueles que não tem poder de escolha (sobre o local de moradia, local de trabalho, relações sociais) têm que conviver entre aqueles considerados excluídos pelos grupos que têm poder de escolha. Quanto mais as dinâmicas sociais forem definidas em termos de interior/exterior, privado/público, dentro/fora, incluídos/excluídos, entre outras dualidades redutoras, o exercício de compor pactos se torna mais difícil: o confinamento em “ilhas de uniformidade” mina a capacidade de uso do espaço público como catalizador da democracia.
“O espectro, que gela o sangue e esfrangalha os nervos, das “ruas inseguras” mantém as pessoas longe dos espaços públicos e as afasta da procura da arte e habilidades necessárias para participar da vida pública” (21).
A partir dos esforços mobilizados, pretende-se colocar que as práticas sócio espaciais, tidas como naturais, efetivadas em nome da segurança e da autopreservação, são manifestações de uma dinâmica estrutural que baseia-se no medo e tem atuação em diversas esferas da vida. A permanência dessa naturalização aponta para uma degradação da vida pública e da capacidade de reconhecer a alteridade como legítima.
Conclusões
Um estudo como este, feito a partir da leitura de peças cinematográficas, deve reconhecer que os recortes apresentados na tela não representam o todo, mas também deve reconhecer que é um recorte factível. O fato do cinema não ser a realidade, mas sim uma representação dela, implica a necessidade do recorte: deve-se escolher o que mostrar e o que deixar de fora, já que a realidade não cabe em um filme. Por isso, o uso do cinema como instrumento para estudos urbanos deve ser feito com cautela; ele oferece questões mais do que respostas. Apresenta situações a partir das quais é possível aprofundar-se e descobrir uma intrincada rede de relações, desde o que foi apresentado no filme (a ponta do iceberg) até questões mais profundas que estruturam o problema. Para conseguir extrair estas questões a partir da leitura dos filmes, é preciso compreender minimamente a linguagem cinematográfica, do mesmo modo que é preciso compreender a gramática de uma língua para ler um artigo. O cinema se torna, então, mais uma ferramenta geradora de questões, que impulsiona o conhecimento. Entretanto, para que esta mídia seja encarada dessa maneira, é preciso superar a ideia de que as formas de representação artística da realidade são prisioneiras dos sentidos, superar a ideia de que nós extraímos da arte apenas o capital emocional-sensorial. Há nela muito do capital questionador, como portas para investigar a realidade.
A observação crítica dos filmes permitiu levantar questionamentos sobre como o modo de vida privado, pautado na importância da propriedade privada, tem impacto sobre o espaço e vida públicos. Em O Som ao Redor, esse impacto se traduz em insegurança, desconfiança e medo do espaço público, que é representado como o local onde se dá a violência, em maior ou menor grau, real ou imaginada; em Um Lugar ao Sol, o impacto é a negação do espaço público e da alteridade, apesar do recorte de classe que é feito no filme, é possível considerar que a escolha desse modo de morar já abrange classes altas e médias, e assume diversas formas como coberturas, prédios de condomínios e condomínios horizontais.
Percebe-se um certo grau de naturalização da negação da esfera pública, uma vez que ela, da forma como é apresentada, não corresponde às demandas de grupos sociais e indivíduos, os quais então buscam construir uma alternativa baseada na delimitação de fronteiras. A cidade murada é uma é um território de delimitações claras entre quem pertence a um determinado grupo e quem é excluído dele. Frente às incertezas e conflitos da esfera pública, busca-se figuras de controle, gestores, ou outras formas de garantia de que o ambiente interno está seguro. A adoção de câmeras de segurança e equipes de vigilância privada, por exemplo, respondem a essa demanda: agem nas fronteiras do espaço privado mirando o espaço público, sendo as ameaças reais ou ilusórias, o que também mostra que existe uma apreensão mercadológica capitalizando o medo.
notas
1
COMOLLI, Jean-Louis. A Cidade Filmada. Ver e poder a inocência perdida: cinema, televisão, ficção, documentário. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2008, p. 179-185.
2
AITKEN, Stuart; ZONN, Leo. Re-apresentando o lugar pastiche. In CORRÊA, Roberto Lobato, ROSENDAHL, Zeny (Org.) Cinema, Música e Espaço. Rio de Janeiro, Editora UERJ, 2009, p. 15-58.
3
Um Lugar ao Sol. Direção Gabriel Mascaro. Pernambuco, Símio Filmes, 2009. DVD, 69 min, som, cor; O Som ao Redor. Direção Kleber Mendonça Filho. Recife, CinemaScopio, 2013. DVD, 131 min, som, cor.
4
RABELLO, Ivone Daré. O Som ao Redor: sem futuro, só revanche? Revista Novos Estudos, n. 101, São Paulo, 2015, p. 157-173.
5
COSTA, Maria Helena B. V.; COSTA, Wendell Marcel A. O Outro e a arquitetura da cidade: as relações de poder em Um lugar ao Sol. Revista Digital de Cinema Documentário, n. 21, [S.l], 2017, p. 97-13,
6
Um Lugar ao Sol (op. cit.).
7
FLORES, Natália Martins; GOMES, Isaltina M. A. M. Os espaços do Eu e do Outro: a tematização da desigualdade social no documentário brasileiro Um lugar ao Sol. Revista Digital de Cinema Documentário, n. 21, [S.l], 2017, p. 114-132.
8
Do original: “La transición desde um mundo en el cual ya no nos es posible vivir o no encontramos deseable vivir, hacia otro mundo – que todavía no ha llegado y quizás no llegue jamás”. PARDO, José Luis. Disculpen las moléstias, estamos transitando hacia um nuevo paradigma. In ARENAS, Luis; FOGUÉ, Uriel (Org.). Planos de (Inter)sección: materiales para un diálogo entre filosofia y arquitectura. Espanha, Lampreave, 2011, p. 353-367. Tradução dos autores.
9
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A Nova Razão do Mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo, Boitempo, 2016.
10
PARDO, José Luis. Disculpen las moléstias, estamos transitando hacia um nuevo paradigma (op. cit.).
11
O autor utiliza cidades argentinas como exemplo, contudo acredita-se que existam concordâncias com processos similares no Brasil, entendendo ambos os países em um contexto político-econômico da América Latina, permitindo então o uso de tais exemplos estrangeiros. ARROYO, Julio. Procesos extremos em las ciudades argentinas de las últimas décadas. Revista Cidades, v. 11, n. 19, São Paulo, 2014, p. 500-549.
12
INNERARITY, Daniel. El nuevo espacio público. Madrid, Espasa Hoy, 2006.
13
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Edusp, 2000.
14
ORELLANA, Rodrigo Castro. Panoptismo, biopolítica y espacio re-flexivo. In ARENAS, Luis; FOGUÉ, Uriel (Org.). Planos de (Inter)sección: materiales para un diálogo entre filosofia y arquitectura (op. cit.), p. 47-67.
15
DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Boitempo, 2015.
16
Um Lugar ao Sol (op. cit.).
17
HAN, Byung-Chul. A Sociedade da Transparência. Lisboa, Relógio D’Água, 2014.
18
STAVRIDES, Stavros. Heterotopias and the Experience of Porous Urban Space. In FRANCK, Karen; STEVENS, Quentin (Org.). In Loose Space: Possibility and diversity in urban life. Londres, Routledge, 2006, p. 174-192.
19
ŽIŽEK, Slavoj. Violência. São Paulo, Boitempo, 2014.
20
BAUMAN, Zygmunt. Confiança e medo na cidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2009.
21
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003.
sobre os autores
Rafael Baldam é arquiteto e urbanista (Unicamp, 2016), mestrando em arquitetura e urbanismo na área de concentração Teoria e História da Arquitetura e do Urbanismo (IAU USP); e editor da Revista Rasante – Intersecções entre Arte e Cidade.
Tomás Antonio Moreira é professor doutor (IAU USP) e PhD em Estudos Urbanos (Université du Québec à Montréal, 2006). Presidente da Comissão de Pós-Graduação do PPGEAU IAU-USP (2018-2020) e ex-secretário executivo da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (2017-2019).