De acordo com Marc Breviglieri (1), habitar pressupõe uma familiaridade existente com um espaço, estabelecendo uma relação de estabilidade e de confiança para aquele que o habita. Inscreve-se, a partir desta definição, uma dimensão do habitar que transcende o território: “o habitar não é simplesmente o que habitamos, mas também, aquilo que nos habita” (2). Habitar traduz, assim, a maneira do indivíduo colocar-se no mundo e de participar dele também como um ato de exposição e de engajamento.
O termo habitar apresenta as seguintes definições na língua portuguesa: “1.Ocupar como residência, morar. 2. prover de habitantes; povoar, ocupar. 3. estar presente; permanecer” (3). O habitar qualifica-se para nós como processo, na medida em que trata-se de uma construção individual e social, permanente e contínua, que envolve a apropriação do espaço por indivíduos ou grupos, tornando-o habitado.
Desta forma, o espaço habitado não se limita à dimensão da moradia, mas a qualquer espaço que possa ser apropriado, seja ele público ou privado, resultando em uma ação que, no tempo, é capaz de transformar o espaço em lugar, impregnando-o de sentido e valor. Um lugar se diferencia de uma localidade qualquer por absorver experiências e significados das pessoas que realizam ou realizaram ali alguma atividade, ou compartilham da lembrança de algum evento que teve este lugar como palco. Segundo Edward Relph, “em um sentido mais complexo, lugar se refere às configurações diferenciadas de seu entorno, pois são focos que reúnem coisas, atividades e significados” (4).
Neste artigo o habitar será tratado na dimensão da moradia, e especificamente na moradia popular. As pesquisas que resultaram neste artigo debruçam-se sobre a produção do espaço de moradia popular a partir da construção da habitabilidade, entendendo este último como o espaço que apresenta qualidades para ser habitável. As condições para gerar a habitabilidade podem ser definidas tanto por aspectos materiais – condições físicas consideradas mínimas para habitabilidade de um espaço ou edificação, como salubridade, segurança e normas técnicas – como por aspectos imateriais e simbólicos. De acordo com Maïté Clavel (5), a busca pela compreensão do que seria o habitar não envolve justamente aqueles que produzem os locais que habitamos (os arquitetos, urbanistas, designers) porque estes ocupam-se exclusivamente do habitat, isto é, de aspectos como a distribuição dos ambientes e de suas respectivas metragens quadradas, iluminação, ventilação, abastecimento pelas redes de água, gás e eletricidade etc.
Um sistema de espaços, em geral, se associa a um sistema de valores. Estes, por sua vez são reforçados e até mesmo modificados por um sistema de práticas cotidianas, realizadas nestes espaços pelas pessoas (6). Assim, o espaço é transformado e construído ao longo do tempo em um processo no qual ocorre tanto a manutenção quanto a adaptação de elementos físicos e simbólicos. As práticas que são realizadas pelos habitantes destes espaços acabam moldando seus aspectos físicos e simbólicos e, ao mesmo tempo, as práticas são também moldadas por eles de volta. É através destas práticas, bem como dos conflitos e das formas de solidariedade que elas geram, que as pessoas constroem o lugar.
Neste sentido, dificilmente um arquiteto ou planejador será capaz de criar lugar ao conceber um projeto que irá afetar os moradores de um bairro ou de um conjunto habitacional para uma população reassentada. Uma vez que são os habitantes, através de suas práticas e de seus sistemas de valores, que apropriam-se de um espaço tornando-o um lugar, Relph afirma que: “Planejadores e arquitetos não podem fazer lugar, mas se forem sensíveis às condições locais, podem prover de infraestrutura e construir ambientes que facilitem a criação de lugares por aqueles que vivem neles” (7).
A análise do habitar no caso de moradias populares se justifica a partir da crítica aos diversos programas de produção habitacional dedicada às camadas populares no Brasil, ou mesmo de sua ausência, ao longo dos anos. Diversos autores demonstram em sua análise que as condições de habitabilidade – materiais e imateriais – são extremamente precárias em grande parte dos programas implantados no país até os dias atuais, sobretudo desde o período do BNH e do atual programa de habitação de interesse social, o Programa Minha Casa Minha Vida, bastante criticado por autores como Kazuo Nakano, Raquel Rolnik, Luciana Andrade e Ermínia Maricato (8). Neste artigo buscamos apontar de que formas o espaço habitado é construído em dois casos de moradia popular: o Conjunto Ismael Silva Zé-Keti, localizado no bairro Estácio, e o “condomínio popular” Monte Castelo, localizado no bairro de Ramos, ambos no Rio de Janeiro.
Partimos da hipótese de que um dos aspectos essenciais ao habitar é o engajamento do indivíduo na construção do espaço habitado (9), ou seja, no processo gradual de apropriação do espaço e na sua consequente transformação em lugar. “Habitar é, em determinado espaço e tempo, traçar uma relação com o território, atribuindo-lhe qualidades que permitam que cada um se identifique” (10). Desta forma, desenvolveremos as noções de Espaço Programado e Espaço Criado, aplicado a de dois estudos de caso, buscando compreender o processo de construção da habitabilidade de grupos e indivíduos com o espaço de moradia previamente planejado.
Primeiramente, apresentaremos os dois casos de análise, o Conjunto Ismael Silva-Zé Keti e o “condomínio popular” Monte Castelo. As pesquisas realizadas nos dois casos partiram de um estudo baseado na Antropologia e com a aplicação do método etnográfico, caracterizadas pela realização de observações de campo, entrevistas abertas e semi-dirigidas e descrições dos espaços e de seus usos. Em seguida, traremos as análises produzidas a partir das pesquisas de campo realizadas nos dois casos e buscando observar as formas de apropriação do espaço, identificar a existência de padrões e como se relacionam com a sociabilidade entre os moradores. Estes apontamentos pretendem somar ao debate da produção de habitação social no Brasil, contribuindo para a elaboração de projetos e formulação de métodos participativos em projeto.
Objetos de análise. O Conjunto Ismael Silva-Zé Keti
Para a realização desta pesquisa foram feitas entrevistas abertas, observações em campo e mapeamento de atividades no Conjunto, com registro fotográfico, nos períodos de outubro a dezembro de 2017 e de abril a junho de 2018 (11).
O Conjunto Ismael Silva – Zé Keti, inaugurado em 2014, foi construído no lugar do Complexo Penitenciário Frei Caneca, no bairro Estácio, zona central da cidade do Rio de Janeiro. Do antigo presídio, foram preservados (por decreto de tombamento) parte do muro externo, que em alguns pontos chega a dez metros de altura, e o portal que dava acesso ao Complexo Penitenciário. Este conjunto, que conta com um total de 998 unidades habitacionais, é formado por dois condomínios (o Condomínio Ismael Silva e o Condomínio Zé Keti), separados por uma Clínica da Família e uma praça. Cada condomínio, por sua vez, apresenta 25 blocos que representam os edifícios em forma “H”, apresentando também um síndico responsável pela administração do condomínio, por realizar reuniões condominiais e atender às demandas dos moradores, bem como por contratar os serviços necessários para a manutenção do condomínio, como serviço de limpeza e de segurança. Os valores dos serviços prestados pelo síndico, pelos funcionários e para as eventuais manutenções no condomínio são pagos pelos moradores através da taxa condominial.
Segundo fonte oficial (12), 65% das unidades deste conjunto foram ocupadas por famílias cadastradas pela Prefeitura do Rio, após ficarem desabrigadas pelas chuvas que em 2010 atingiram as comunidades Rocinha, em São Conrado; Prazeres, em Santa Teresa; Turano, no Rio Comprido; Santos Rodrigues e Azevedo Lima, no Complexo do São Carlos, no Estácio. Os 35% restante das unidades do conjunto beneficiam os índios da Aldeia Maracanã (ocupação do antigo museu do índio, no Maracanã) e famílias que ocupavam ilegalmente edifícios públicos abandonados.
Seguindo o padrão do Programa Minha Casa Minha Vida, cada condomínio contém, além dos edifícios, um salão de festas, uma quadra e um parquinho infantil. Há, além disso, em cada um, uma guarita, um portão ao lado dela para pedestres e outro, elétrico, para carros, que consistem nos únicos pontos de acesso aos condomínios, que são cercados em todo o seu perímetro.
No que diz respeito à implantação dos blocos de apartamentos, tanto o Ismael Silva quanto o Zé Keti apresentam dois tipos de implantação: um que se assemelha a outros empreendimentos do Programa, e outro que difere por completo deste padrão. Em cada condomínio dos conjuntos do Programa Minha Casa Minha Vida há uma rua-estacionamento, ao longo da qual todos os edifícios são dispostos, em perfeito alinhamento. Este tipo de implantação, comum em empreendimentos do Programa Minha Casa Minha Vida, gera um espaço comum de aspecto árido e extremamente monótono, composto pela rua-estacionamento e pelos espaços residuais entre os edifícios com as dimensões mínimas exigidas para o afastamento entre as edificações.
Apesar da implantação descrita acima, em ambos os condomínios existem variações de ângulos e de espaçamento entre os blocos de apartamentos nestas áreas que, apesar de muito sutis em planta, geram espaços diferenciados entre eles. Um aspecto marcante deste empreendimento reside no fato de que, em cada um destes condomínios, parte dos blocos não têm seu acesso pela rua-estacionamento, e sim por caminhos de pedestres, cuja implantação forma diferentes ângulos e espaços entre eles. Os espaços conformados nestas áreas têm um acesso relativamente mais restrito, se comparado às áreas cujo acesso se dá pela rua estacionamento. Possuem também um caráter mais intimista, uma vez que se “escondem” entre os edifícios. Se conformam então como espaços coletivos de aspecto intermediário, tornando-se mais íntimas que os locais acessíveis pela rua-estacionamento.
O “Condomínio Popular” Monte Castelo
O segundo caso de análise caracteriza-se por uma forma de moradia popular definida pela ocupação, por uma população de baixa renda, de imóveis de função industrial abandonados e sua reconversão em moradia pelos próprios habitantes. Tais ocupações se iniciaram no fim dos anos 1990 e início dos anos 2000 e situam-se no bairro de Ramos, sob lotes lindeiros ou próximos à avenida Brasil, localizadas entre a referida avenida e a via férrea onde a companhia de trens urbanos Supervia opera o ramal Saracuruna. Três ocupações vêm sendo pesquisadas: “Condomínio Areais Brancas”, “Batidão” e “Monte Castelo”.
A pesquisa empírica nas ocupações foi iniciada no final do ano de 2006 e se dividiu em duas fases, de acordo com a continuidade do trabalho de campo: a primeira fase, de 2006 a 2009, e a segunda iniciada em 2013 e ainda em curso. A ruptura do trabalho empírico contribuiu, entre outros, para o desenvolvimento de uma análise sobre as transformações no espaço, nas relações interpessoais e nas representações da moradia para os habitantes das ocupações, que serão apresentadas neste artigo.
As três ocupações apresentam muros e portas ou portões de acesso. No interior, encontramos unidades de moradia particulares (casas ou apartamentos) e espaços coletivos de uso comum. Cada ocupação apresenta um síndico, responsável por representar os moradores em procedimentos de legalização e também por administrar todo tipo de problema dentro da ocupação, de conflitos entre vizinhos até problemas de ordem técnica, como por exemplo o rompimento de tubulação de esgoto. Os habitantes pagam uma “taxa de condomínio”, que corresponde normalmente aos gastos e investimentos coletivos, como faxineira, porteiro, consertos e manutenção.
Situadas em grandes terrenos de produção industrial – cuja área varia de 3.800m2 a 12.000m2 – os imóveis já apresentavam as redes de infraestrutura básica antes da ocupação, como água, energia elétrica e esgoto. Os moradores adaptaram e prolongaram as redes de acordo com a conformação das moradias, sendo todos eles atendidos. Alguns condomínios apresentam redes legalizadas, outros não.
Todas estas características, comuns às ocupações da avenida Brasil, nos levaram a denominar esta forma de moradia como “condomínios populares”, ou copropriétés de fait (13) na primeira fase da pesquisa empírica devido a diversas características semelhantes à tipologia morfológica e funcional do condomínio. A pesquisa de campo, realizada de forma mais frequente no Monte Castelo, leva, no entanto, a novos dados, transformações e perspectivas sobre estes condomínios. A pesquisa se desenvolve, assim, a partir de uma análise diacrônica dos fenômenos sociais e das transformações do espaço desta ocupação, mais especificamente, possibilitando identificar processos semelhantes em outras formas de moradia popular.
Nossa abordagem sobre a produção da habitabilidade nos dois casos de moradia leva igualmente em conta o tempo de existência de cada uma. A pesquisa sobre o condomínio popular Monte Castelo levou a caracterização de três fases distintas do desenvolvimento desta moradia coletiva, relacionando práticas, produção do espaço e sociabilidade entre os moradores: 1.o início da ocupação, 2.sua consolidação e 3.degradação (14). Portanto, traremos aqui as relações observadas entre forma e sociabilidade nos dois campos, buscando relaciona-las também com estes diferentes momentos.
Forma e sociabilidade: a construção do lugar e valores impressos no espaço no caso do Monte Castelo e do Ismael Silva – Zé Keti
O Conjunto Ismael Silva – Zé Keti apresenta espaços que podem ser caracterizados como programados, isto é, que foram projetados para usos e funções específicas; e espaços que podem ser denominados como criados, designando espaços onde ocorrem atividades e práticas realizadas pelos moradores, que não foram previstas em projeto. Já no Monte Castelo, todos os espaços podem ser compreendidos como criados, já que o condomínio se caracteriza pela reconversão da antiga usina em moradia, realizada pelos próprios habitantes. A partir dessa caracterização nos interessa analisar como estes espaços são apropriados pelos moradores e como contribuem na construção da habitabilidade dos dois casos de moradia.
No Conjunto, os locais programados como área de lazer pertencentes ao condomínio – salão de festas, a quadra e o parquinho infantil – estão sob a gestão do síndico. Os moradores podem reivindicar melhorias e aprovar ou reprovar medidas sugeridas pelo gestor para estas áreas, mas não podem intervir nelas por conta própria. O salão de festas é o lugar de confraternizações planejadas, organizadas, regradas. O morador que deseja usar este local deve agendar uma data e seguir as regras quanto ao volume da música e o horário de uso do salão. Durante o tempo de uso o salão se torna um espaço privado, cujo acesso e organização espacial são definidos por quem o está alugando no momento. Por ser um local que pertence ao mesmo tempo a todos, não é permitida qualquer modificação na sua estrutura, de modo que, ao final do tempo de uso, o salão deve ser entregue nas mesmas condições em que foi cedido inicialmente. Assim, este é um espaço onde não existem marcas individuais dos moradores, é um local que permanece neutro, impessoal, e praticamente inalterado em relação à sua forma original. A quadra é frequentemente utilizada pelas crianças e jovens para a função programada, mesmo tendo sofrido degradação do alambrado que circundava o espaço. O parquinho encontra-se completamente destruído após processo degradação que, segundo relatos de alguns moradores, foi iniciado tão logo o Conjunto foi inaugurado.
Já as áreas de acesso aos blocos de apartamentos, as reentrâncias resultantes da forma em “H” vista em planta, indicam a apropriação dos moradores e a construção da habitabilidade. Elas são de responsabilidade dos moradores de cada edifício e não apresentam a mesma forma de gestão dos locais programados como áreas de lazer. Assim, apesar de acessíveis a todos, estas áreas são apropriadas somente por seus respectivos moradores, que decidem qual tratamento este local receberá, sendo raros os casos em que não houve empreendimento neste espaço. Entre os exemplos observados nos blocos do Conjunto, o local, originalmente marcado pelo caminho pedonal em concreto e o espaço residual coberto por grama, passa a ser completamente ou parcialmente revestido de concreto, ou torna-se um jardim, como na maior parte dos casos. O revestimento de concreto favorece seu uso para o estacionamento de motos e bicicletas dos moradores, enquanto o cultivo dos jardins contribui de forma significativa para a construção do lugar. A decisão sobre o que será feito deste espaço é tomada pelos moradores do edifício. Existem casos em que um morador começa, sozinho, o trabalho de plantio de um jardim, podendo ocorrer de outros se juntarem a esta empreitada ou não. Em alguns casos, um ou mais moradores iniciam um jardim, mas o restante dos moradores do edifício não concorda com este uso, dificultando a sua manutenção.
Estas áreas de acesso aos blocos podem ser compreendidas como resultado da construção do espaço habitado e que apresentam grande valor para os moradores. Eles são lidos pelos habitantes como uma espécie de extensão do hall de entrada que é o espaço coletivo do bloco. É nestas áreas que os moradores de um determinado edifício podem materializar a forma como querem se mostrar tanto para seus vizinhos quanto para si. O diagrama abaixo identifica uma gradação dos espaços no Conjunto: dos mais privados [1] aos de caráter mais público [4].
No “condomínio popular” Monte Castelo, observa-se uma produção do espaço muito semelhante. Os pisos dos corredores de acesso às unidades foram revestidos a partir da iniciativa dos seus moradores durante o momento caracterizado pela consolidação da ocupação. Os moradores de cada um dos corredores rateavam o valor e responsabilizavam-se pela colocação do revestimento em todo o corredor. Esta iniciativa necessita não só do contato entre os vizinhos, mas também de um engajamento de cada um em uma negociação sobre a decisão, rateio e colocação do revestimento no piso dos corredores. A ação empreendida demonstra o cuidado e a valorização de um espaço que é compreendido com uma extensão de cada uma das unidades que constituem um mesmo corredor da ocupação, contribuindo igualmente para a manutenção de uma rede de vizinhança que caracteriza a sociabilidade neste momento de consolidação do Monte Castelo. Nesta etapa, as dificuldades resultantes da ocupação do espaço e de suas primeiras adaptações já havia sido vencida. Os moradores relatavam com orgulho a resistência que os fez permanecer e construir cada casa juntos no momento inicial do empreendimento coletivo e lembravam das dificuldades em momentos de enchentes e de insalubridade vividas tão logo haviam ocupado a antiga usina. A segunda etapa, se caracteriza pelo sentimento de vitória e pela memória coletiva construída ao longo do processo que resultou na consolidação das moradias e dos espaços de lazer (piscina, campo de futebol e praça). A valorização e cuidado com o espaço imediatamente exterior às unidades é igualmente percebido no Monte Castelo, através da observação das diferentes fachadas das unidades de moradia, que indicam a maneira como cada um dos habitantes manifesta sua individualidade no interior da ocupação.
A sociabilidade entre os vizinhos de um mesmo bloco foi observada também no processo de criação e manutenção dos jardins do Conjunto. Um caso que ilustra o fato no Condomínio Zé Keti, é o de Valdir, morador de um apartamento localizado no térreo, que costuma conversar com outros moradores desde sua janela. Quando indagado sobre o exuberante jardim na entrada do edifício, Valdir informou-nos de que conhecia a moradora responsável pelo cultivo e manutenção deste espaço. De acordo com este morador, a mantenedora demonstra ser bastante ciumenta em relação ao seu jardim, repreendendo crianças que oferecessem qualquer risco às suas plantas. Valdir nos contou também que, observando esta senhora subir e descer do quarto andar do edifico para regar o jardim diariamente, decidiu comprar para ela uma mangueira. A partir deste momento ele passou a se responsabilizar também por regar e repreender crianças ou adultos que demonstrem ser uma ameaça ao jardim.
Outro fato observado no interior do Conjunto revela a construção do espaço habitado a partir da forma resultante da implantação dos blocos no interior dos condomínios, que apresenta certa variedade de espaços residuais, de diferentes tamanhos e formatos. As áreas localizadas entre os fundos dos edifícios que são acessíveis pela rua-estacionamento e a frente dos edifícios acessíveis pelos caminhos pedonais são mais reservadas. É justamente nestes locais, que apresentam saliências, reentrâncias, sombras e adequada ventilação, onde encontramos um maior número de pessoas usando o espaço comum entre os blocos de edifícios: crianças brincando, pessoas trazendo cadeiras para sentar e conversar, pessoas fazendo churrasco, e vizinhos conversando de pé, através da janela, com um morador do térreo, enquanto comem e bebem. Estes espaços entre os blocos de apartamentos, onde não foram destinadas funções ou usos e que não receberam qualquer qualificação no projeto do Conjunto são, assim, criados pelos moradores, a partir da sua apropriação temporária.
No que se refere às atividades de lazer, a produção do espaço pelos moradores do Monte Castelo é identificada tanto em espaços vazios da construção original quanto em locais que apresentavam outras atividades, como o antigo vestiário e refeitório dos funcionários, o primeiro localizado no piso térreo do edifício principal e o segundo no primeiro andar. Estes últimos se transformaram em bares e funcionavam, no momento de consolidação de ocupação como locais de encontro de grupos com interesses distintos dentro do Monte Castelo: aqueles que se manifestavam contra a gestão do síndico e aqueles que se manifestavam a favor, incluindo os parentes do mesmo síndico. Tornavam-se assim lugares identificados por discussões que manifestavam conflitos, concordâncias e encontros entre aqueles que compunham os grupos de apoio ou de resistência à gestão do “condomínio popular” naquele momento. As atividades de lazer mais utilizada pelas crianças, como a piscina, a quadra e a praça, foram construídas nos espaços livres do terreno, onde provavelmente funcionava um estacionamento e uma oficina. A produção do espaço passa a identificar, tanto no caso do Conjunto quanto do “condomínio popular”, a sociabilidade caracterizada por grupos que constituídos por interesses comuns, vínculos de vizinhança e faixa etária, contribuindo também para a manutenção destas relações a partir da construção do espaço habitado.
Um grande número de moradores do Condomínio Zé Keti relata ainda que prefere, e que é mais vantajoso do ponto de vista financeiro, realizar os churrascos nestas áreas livres do condomínio, ao invés do salão de festas. No Condomínio Ismael Silva, observa-se a realização desse tipo de reunião mais íntima entre vizinhos principalmente na entrada dos blocos de apartamentos ou nos espaços entre eles, na área em que os edifícios não se voltam diretamente para a rua-estacionamento. Nos blocos acessíveis diretamente pela rua-estacionamento, quando existem pontos de vendas de bebidas e artigos de mercearia mantidos por moradores de apartamentos térreos, é comum observar pessoas bebendo e conversando. Observa-se no caso do Conjunto que as normas determinadas para o uso de certos espaços coletivos terminam por transferir atividades previstas em espaços programados, contribuindo para sua realização em espaços criados pelos moradores e que vão progressivamente constituindo lugares no interior do Zé Keti. A realização dos churrascos nas áreas livres do condomínio produz o lugar de lazer, mesmo que não permanente, constituindo uma ação criativa e efêmera. As práticas se manifestam de forma semelhante ao que se observa nas favelas, onde as atividades de lazer acontecem em espaços livres, próximos de casa ou de bares que servem de apoio para sua realização, de forma muitas vezes improvisada e livre.
Apontamentos finais
No caso do Monte Castelo houve a adaptação de um espaço fabril para o uso habitacional que se consolidou com o tempo e conforme os moradores foram se apropriando, transformando o espaço em lugar. O ambiente construído originalmente não contava com as condições físicas consideradas mínimas para habitabilidade de um espaço ou edificação, como salubridade, segurança e normas técnicas. Em um primeiro momento foram estabelecidas estas condições mínimas de habitabilidade, do ponto-de-vista material. Consolidada esta etapa, os moradores tornaram este espaço de fato habitado, isto é, iniciaram a construção de elementos capazes de expressar sua identidade e através dos quais é criado o sentimento de pertencimento mútuo entre habitante e habitação. Neste momento, caracterizado pela consolidação, foi observado que alguns moradores dividiram suas unidades, criando cômodos independentes que pudessem ser alugados, aumentando o orçamento familiar. Os moradores construíram a ocupação, aproveitando e adaptando as estruturas existentes das fábricas, segundo um sistema de práticas e valores associados aos espaços, que se aplicava à favela de origem, o Parque União, localizada na Maré, mas também segundo aspirações e desejos em relação a espaços e práticas que não tinham antes.
No caso do Conjunto Ismael Silva – Zé Keti, os moradores foram inseridos em um ambiente de habitação bastante diferente de seu local de origem. Em primeiro lugar pode ser apontada a morfologia do Conjunto, que adota o formato em condomínio fechado. A rigidez espacial gerada pelo alinhamento dos edifícios ao longo de uma rua-estacionamento soma-se ao fato de que as unidades habitacionais não podem sofrer qualquer tipo de transformação em sua planta. O primeiro destes aspectos dificulta a apropriação dos espaços de uso coletivo e atenua-se somente nos pontos em que os edifícios não têm seu acesso pela rua-estacionamento. Já o segundo torna impossível uma prática bastante comum em assentamentos informais, que é a produção do espaço da habitação de forma dinâmica. Em outras palavras, a prática de adaptação das unidades habitacionais, de acordo com o crescimento ou da necessidade de complementação de renda, como no caso do Monte Castelo, torna-se inviabilizada pela planta padronizada e imutável projetada para este Conjunto.
Assim, apesar das inúmeras críticas relacionadas à forma do edifício “H” e sua reprodução em Conjuntos habitacionais, criando cenários monótonos, pode-se constatar no caso do Conjunto estudado que ela gera estes pequenos espaços de reentrância que podem ser lidos pelos moradores como uma espécie de “soleira” (15). Da mesma forma funcionam os corredores do “condomínio popular” Monte Castelo, distinguindo-se tanto do restante do espaço público quanto do espaço individual, ou mais íntimo. As reentrâncias e os espaços entre edifícios, no caso do Conjunto, e os corredores, no caso da ocupação possuem a qualidade de “intervalo”. Segundo Herman Hertzberger, “esta dualidade existe graças à qualidade espacial da soleira [o intervalo] como um lugar em que os dois mundos se superpõem em vez de estarem rigidamente demarcados” (16). O espaço lido como residual pelo arquiteto ou planejador é incorporado ao sistema de valores, espaços e atividades (17) pelos moradores, que tiram partido da forma e estabelecem práticas e usos que vão além da função programada (o acesso), atribuindo-lhe significado. Todas estas práticas realizadas pelos moradores nos dois casos têm, como convergência a transformação de espaços residuais de um projeto rígido e monótono em lugares carregados de valores simbólicos que expressam e reafirmam a identidade e o sentimento de pertencimento destes moradores. O processo de apropriação dos espaços em curso que vem sendo observado no Conjunto corresponde àquele que foi verificado no Monte Castelo: no momento caracterizado pela consolidação, os espaços compreendidos como residuais, estavam transformados em lugares, onde era possível identificar práticas ali realizadas e grupos que ali se reuniam.
Constata-se que a rigidez dos espaços programados, no que diz respeito a sua função, é um fator que dificulta sua apropriação. Acrescenta-se a este último a inadequação em relação à sua forma e/ou localização no caso do Conjunto, evidenciado quando observamos os novos espaços criados pelos moradores para a realização dos churrascos. Outro fator interessante na análise do espaço programado e o espaço criado refere-se à construção coletiva e engajamento pessoal presente no segundo tipo. A produção dos espaços no Monte Castelo, no início da ocupação e no seu momento de consolidação, envolveu grande parte dos moradores no processo e impregna o “condomínio popular” de valor, como lugar de memória e de certo orgulho entre aqueles que participaram do processo.
Assim, as transformações espaciais (entendidas como demarcações individuais nos espaços coletivos) realizadas pelos moradores ocorrem nos espaços que eles interpretam como pertencentes a eles. É possível observar que o pertencimento, nestes casos, é recíproco: o lugar pertence ao morador e o morador se sente como pertencente a este lugar. As apropriações “informais” do espaço (realização de churrascos, colocação de cadeiras para conversar) ocorrem principalmente nos espaços que não receberam uma “função” no projeto original, no caso do Conjunto. São os espaços entre os edifícios, próximos às suas entradas, e nos fundos dos blocos. Já nos espaços projetados para determinadas funções, como salão de festas, as quadras e a rua-estacionamento, os usos ocorrem majoritariamente conforme o que foi projetado para acontecer. Em casos em que há um uso que não se adequa à função destes espaços são tomadas providências a partir da criação de regras e do impedimento de uso do espaço para além da função para a qual foi programado, como salão de festas, que foi gradeado para evitar que as crianças brincassem ali.
Habitar implica em se identificar com o espaço, se ver refletido nele, olha-lo e lembrar do percurso residencial realizado até ali, é pertencer. Tomando este pressuposto teórico como referencial, procuramos dar, neste artigo, uma contribuição através de uma análise do espaço e de suas práticas, buscando evidenciar sua relação com o processo de construção de uma habitabilidade por seus moradores. A transformação dos espaços é capaz de revelar o valor impregnado tanto no espaço coletivo da moradia, quanto nas relações que ali se estabelecem e se constroem.
notas
NE – Este artigo foi originalmente apresentado no evento XVIII Enanpur. MACHADO-MARTINS, Maíra; TROTTA, Carolina de Carvalho Gambôa. A produção do espaço e a construção da habitabilidade em duas formas de moradia popular. Anais do XVIII Enanpur. Natal, EDUFRN, 27-31 mai. 2019 <https://bit.ly/2zogJJ2>.
1
BREVIGLIERI, Marc. Penser l’habiter, estimer l’habitabilité. Tracès – Bulletin technique de la Suisse romande/ Espazium – Les éditions de la culture du bâti, Zurique, 2006 <https://hal.archives-ouvertes.fr/hal-01578031>.
2
Idem, ibidem, p. 9.
3
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva, 2009, p. 1003.
4
RELPH, Edward. Reflexões sobre a emergência, aspectos e essência de lugar. In MARANDOLA JR, Eduardo. HOLZER, Werther. OLIVEIRA, Lívia de (Org.). Qual o espaço do lugar? São Paulo, Perspectiva, 2012, p. 25.
5
CLAVEL, Maïté. Elementos para uma nova reflexão sobre o habitar. Antropolítica Revista Contemporânea de Antropologia, n. 38, Niterói, 1. sem. 2015, p. 152 <https://bit.ly/37lydCx>.
6
VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva. Apêndice: Lições da rua: O que um racionalista pode aprender no Catumbi. In LIMA, Roberto Kant de; MELLO, Marco Antonio da Silva; FREIRE, Leticia de Luna. Pensando o Rio – políticas públicas, conflitos urbanos e modos de habitar. Niterói, Intertexto, 2015, p. 303.
7
RELPH, Edward. Op. cit., p. 26.
8
NAKANO, Kazuo; ROLNIK, Raquel. As armadilhas do pacote habitacional. Le Monde Diplomatique Brasil, n. 20. São Paulo, mar. 2009 <https://bit.ly/3dVotkU>; ANDRADE, Luciana. É possível transformar em cidade a anticidade? Crítica ao urbanismo de empreendimentos do PMCMV. In AMORE, Caio Santo; SHIMBO, Lúcia Zanin; RUFINO, Maria Beatriz Cruz (Org). Minha casa... e a cidade? Avaliação do programa minha casa minha vida em seis estados brasileiros. Rio de Janeiro, Letra Capital, 2015; MARICATO, Ermínia. O “Minha Casa” é um avanço, mas segregação urbana fica intocada. Carta Maior, São Paulo, mai. 2009 < https://bit.ly/3d1qKtH>.
9
Para uma melhor compreensão das terminologias empregadas ao longo deste artigo, buscamos defini-las da seguinte forma: a produção do espaço refere-se à construção física no espaço de moradia, à transformação deste espaço a partir estruturas edificadas pelos próprios moradores. Refere-se, assim à dimensão material da produção e transformação do espaço a partir de uma ação criativa. Conflitos na moradia popular informal e espontânea. Por outro lado, a construção do espaço (habitado) é o termo empregado para referir-se ao processo gradual de apropriação dos habitantes e grupos, que evoca as etapas deste processo entendendo o fator tempo como inerente a este processo.
10
SEGAUD, Marion. Antropologia do espaço: habitar, fundar, distribuir, transformar. São Paulo, Edições Sesc São Paulo, 2016, p. 97.
11
A pesquisa de campo foi realizada em conjunto com Juliana Correia de Souza, graduanda em Arquitetura e Urbanismo da PUC Rio e bolsista Pibic, sob orientação da professora Maíra Machado Martins.
12
Subsecretaria de Comunicação Social <http://www.rj.gov.br/web/imprensa/exibeconteudo?article-id=2143149>.
13
MACHADO-MARTINS, Maíra. Habiter une ancienne usine à Rio de Janeiro les invasões de l’Avenida Brasil. Paris, L’Harmattan, 2014.
14
MACHADO-MARTINS, Maira. Conflitos na moradia popular informal: observações sobre a transformação dos ‘condomínios populares’ da avenida Brasil. In CUNHA, Neiva Vieira da; FREIRE, Leticia de Luna; MACHADO-MARTINS, Maira; VEIGA, Felipe Berocan (Org.). Antropologia do conflito urbano: conexões Rio-Barcelona. Rio de Janeiro, Lamparina, 2016.
15
HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. 2ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 1999, p. 35.
16
Idem, ibidem, p. 32.
17
VOGEL, Arno; MELLO, Marco Antonio da Silva. Op. cit.
sobre as autoras
Maíra Machado-Martins é arquiteta e urbanista (FAU UFRJ, 2004), mestre em Urbanismo (Université Paris XII, 2005) e doutora em Planejamento e Urbanismo (Université Paris-Est, 2011). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC Rio e autora do livro Habiter une ancienne usine à Rio de Janeiro, les ‘invasões’de l’Avenida Brasil (l’Harmattan).
Carolina de Carvalho Gambôa Trotta é arquiteta e urbanista (FAU UFRJ) e mestre em Arquitetura (PPGAU PUC-Rio).