As cooperativas habitacionais foram institucionalizadas no Uruguai em 1968 através da Lei Nacional de Habitação e se constituíram em um sistema baseado em processos sociais de produção e gestão da habitação. Desde então, foi produzido no país um grande número de conjuntos, em geral constituído de unidades habitacionais e equipamentos complementares, onde o morador participa em todas as etapas ‒ da gestão, do projeto e, em alguns casos, até da construção.
Essas urbanizações, segundo vários estudos (1), são exemplos bem sucedidos no campo da habitação social, pois, além da alta qualidade arquitetônica e espacial, os moradores possuem um forte sentimento de pertencimento ao lugar e uma apropriação intensa dos espaços coletivos.
Dentro desse contexto, a presente investigação trabalha com a hipótese de que, ainda que o processo cooperativo tenha sido fundamental, as questões arquitetônicas e urbanísticas, propostas por arquitetos inseridos em um contexto de crítica aos rígidos dogmas das primeiras fases do Movimento Moderno, são aspectos fundamentais para o êxito, em muitos aspectos, das urbanizações.
Essa hipótese está embasada na confluência que ocorre a partir desse momento, de uma produção baseada no sistema cooperativo e uma nova proposta da relação arquitetura-cidade no campo disciplinar. A presença desses novos conceitos nos projetos das cooperativas da época é destacada por vários autores. Cecília Almeida e Agustín Pintos apontam que, se a corrente produção de urbanizações, dos setores privado e público, era conformada a partir da proposta divulgada no Congresso Internacional da Arquitetura Moderna – Ciam, de blocos isolados implantados de maneira repetitiva, na produção de conjuntos habitacionais através do sistema cooperativo existiu
“Um maior cuidado no tratamento dos espaços abertos, como ruas para pedestres e jardins, bem como um melhor estudo da gradação do espaço público para o privado. A arquitetura desses anos é carregada com a bagagem ideológica do Team X, mas isso é tomado de forma crítica. Buscava-se relacionar os conjuntos com a cidade existente” (2).
Nessa perspectiva, este artigo possui o objetivo de expor com mais detalhe a repercussão da crítica aos posicionamentos dominantes do Movimento Moderno ‒ crítica que circulava no cenário arquitetônico e urbanístico, a partir do segundo pós-guerra ‒ nas estratégias projetuais da Zona 1 da Cooperativa Habitacional José Pedro Varela ‒ JPV (Montevidéu, 1971).
Embora tenha surgido uma série de manifestações críticas ao conteúdo em geral universalista das teorias arquitetônicas e urbanísticas próprias das primeiras gerações do Movimento Moderno, as propostas encampadas pelo Team 10 e pelo grupo dos metabolistas – cujos membros participaram também dos encontros do Team 10 – são de mais evidente influência no contexto disciplinar uruguaio – as mais citadas por críticos e arquitetos ‒, e por isso se constituirão como base teórica principal deste estudo.
O contexto arquitetônico e urbanístico do segundo pós-guerra – o Team 10 e os metabolistas
O Team 10 (3), formado em meados dos anos 1950 e composto por arquitetos da chamada terceira geração, critica os princípios excessivamente dogmáticos defendidos pelas gerações anteriores. Opõe-se à cidade funcional, rejeitando seu espaço universal e sua organização a partir das quatros funções da Carta de Atenas, assim como a ideia do “coração da cidade” (4) como espaço de ressignificação urbana.
Como destaca Colquhoun, um argumento central no discurso do Team 10 era que
“A chave da comunidade na cidade não residia em um 'centro urbano' separado, composto de edifícios públicos representativos, mas sim no âmbito da própria residência, onde relações mais imediatas poderiam ser estabelecidas entre o núcleo familiar e a comunidade” (5).
De uma maneira geral, a questão básica posta pelo grupo era a da “reidentificação” do homem com seu habitat. Isto impunha, como aponta Montaner, o desafio de “encontrar uma relação precisa entre a forma física e a necessidade social e psicológica das pessoas” (6).
O Manifesto de Doorn (7), escrito em 1954, constituiu-se de uma síntese das primeiras discussões do grupo, indicando que o habitat seria conformado na relação entre casa e comunidade. O manifesto refletia, em parte, a discussão sobre o problema da separação estremada entre arquitetura e cidade – intensificada, segundo esse grupo, pelos preceitos urbanísticos estabelecidos pelas gerações anteriores. A superação dessa disjunção se constituiu como base de grande parte das reflexões propostas e implementadas nesse momento.
Os arquitetos ingleses Alison e Peter Smithson foram figuras centrais dentro do Team 10, com uma contribuição teórica e projetual fundamental. Em 1953, escreveram An urban Project (8), onde declaravam sua rejeição ao conceito de unidade de vizinhança, criadora de núcleos urbanos isolados. Defendiam que a formação de verdadeiros grupos sociais se dava com a flexibilidade dos limites dos vários agrupamentos sociais e urbanos e com a facilitação da comunicação entre eles. Refletiam sobre a relação entre casa e rua, defendendo a volta, de certa forma, da ideia tradicional de rua, que criava o que chamaram de “grupos-espaços”, locais com capacidade de satisfazer as necessidades humanas de identificação e pertencimento. Ainda indicavam a necessidade de tornar visíveis esses agrupamentos sociais – rua, bairro, cidade ‒ como “realidades plásticas finitas”. O projeto Golden Lane ‒ apresentado detalhadamente nesse artigo ‒ representaria a aplicação desses princípios.
No mesmo ano, por ocasião do Ciam IX, em Aix-en-Provence, o casal apresentou a grelha Urban Reidentification. Fotos de Nigel Henderson mostrando a apropriação da rua por parte das crianças em um bairro de Londres eram colocadas ao lado das categorias casa, rua, bairro e cidade ‒ “escalas de associações humanas” ‒ como base da exposição de uma proposta de cidade – o projeto Golden Lane.
O texto que acompanhava a grelha (9) reforçava os argumentos presentes em An urban Project, insistindo no tema da identidade e propondo que a “hierarquia das associações humanas” deveria substituir a hierarquia funcional da Carta de Atenas. Dentro de uma ideia geral de mobilidade como potencializadora da coesão entre todas as escalas de associação, reforça a proposta das streets-in-the-air ‒ chamadas doravante neste texto de “ruas elevadas” ‒ como uma das alternativas para as grandes cidades, constituindo-se como formas de circulação em prédios de grande altura e relacionando os habitantes com os espaços coletivos e, consequentemente, com a cidade.
No artigo Cluster City. A new shape for the community (10), de 1957, os arquitetos defendiam uma ideia de cidade mais complexa, menos geométrica – em alusão crítica aos planos axiais de Le Corbusier ‒ e onde os elementos urbanos estivessem relacionados aos fluxos e às conexões. Os autores definiam cluster como uma agregação em movimento, que se constituiria como uma estrutura que pudesse “crescer e ainda ficar livre, e ser facilmente compreendida em cada estágio do desenvolvimento” (11). Qualquer agrupamento seria um cluster, seja um grupo de casas formando uma rua ou um grupo de ruas formando um bairro e assim por diante.
No projeto do Golden Lane, de 1952, Alison e Peter Smithson aplicaram a ideia de cluster como forma de agregação, de criação do que chamaram “territórios de identidade”. Unidades habitacionais e ruas elevadas ‒ como locais de encontro ‒, conformariam agrupamentos em comunicação mútua, restituindo parte da relação entre casa e rua que ocorre na cidade tradicional. Por sua vez, a conformação dos edifícios proporcionaria um fechamento e um território demarcado aos jardins no nível do solo – configurando um outro nível de cluster. A ideia de flexibilidade e crescimento estava presente nas unidades habitacionais tipo duplex: um pátio-jardim no mesmo nível da rua galeria ‒ nível de acesso às habitações ‒ poderia proporcionar dois dormitórios extras, ou, um dormitório extra e um terraço às unidades (12).
Os Smithson, junto aos arquitetos de sua geração, estavam preocupados em criar uma nova ordem espacial para as cidades a partir de uma estrutura que gerasse significados e proporcionasse ao cidadão a compreensão de seu habitat. O termo infraestrutura – ao invés da expressão megaestrutura com a qual trabalhavam os metabolistas ‒ dava forma a essas ideias. Indicava, como destacou Van Eyck em 1962, uma estrutura geral que poderia propiciar uma identidade especificamente urbana (13) ao mesmo tempo que propiciava flexibilidade e mobilidade. Por outro lado, o termo mobilidade implicava uma ideia de circulação não em termos funcionais ‒ uma das quatro funções básicas da Carta de Atenas, por exemplo – mas como comunicação, a essência das associações humanas (14).
Aldo van Eyck, arquiteto holandês, trabalhou com uma base interdisciplinar, buscando referências na antropologia, na sociologia e nas artes plásticas. Conceitos como comunidade e identidade vão sustentar a proposta de criação de lugares, que está na base de toda a sua arquitetura.
Em 1962 ‒ como um amadurecimentos de temas anteriormente tratados ‒, publicou um importante trabalho: Steps toward configurative discipline (15). Nesse texto, o arquiteto refletia sobre o que considerava a questão fundamental para a apropriação da cidade pelo morador: a inter-relação dos “fenômenos gêmeos”, “unidade e diversidade, parte e todo, pequeno e grande, muitos e poucos, simplicidade e complexidade, mudança e constância, ordem e caos, individual e coletivo” (16). A necessidade fundamental da interconexão entre esses termos opostos, representada em uma configuração e expressão física clara (17), tem consequências diretas na relação entre diferentes estágios multiplicativos ‒ as associações humanas ‒ e diferentes escalas ‒ casa, bairro e cidade, por exemplo.
Segundo o arquiteto, a configuração das inter-relações deveria se dar através de lugares intermediários ‒ inbetween places – espaços abertos (18) para a expressão das reciprocidades dos fenômenos opostos antes citados (19). Nesse espaço aberto, um fenômeno avança sobre o outro, adquire algo do outro, e por isso há uma semelhança configurativa entre eles: “A casa, por exemplo, é assim também parte da rua, enquanto a rua, reinterpretada, é incluída na casa [...]. Todos os ingredientes são redefinidos e estreitamente mesclados” (20).
Este tema está relacionado diretamente com a questão da relação entre diferentes escalas – à qual Van Eyck dedicou especial atenção ‒ “a natureza urbana de uma casa e a natureza doméstica de uma cidade” (21). Essas expressões indicam, como já foi apontado anteriormente dentro do contexto de pensamento do Team 10, a preocupação com problema da relação – ou da cisão ‒ entre as disciplinas da arquitetura e do urbanismo.
Uma obra que representa essa estrutura teórica é o Orfanato de Amsterdã (1956-1960). Nesse projeto, o arquiteto propõe uma arquitetura de espaços de transição (inbetween spaces) e a proposta “segue a concepção de um sistema reticulado, dessa vez em cubos que se repetem e se alternam em áreas cobertas e descobertas, paredes opacas e transparentes, formas abertas e fechadas e variações” (22). Os espaços intermediários evidenciam o que é significativo de cada lado desses “fenômenos gêmeos”.
Essa reunião de opostos gera uma “clareza labiríntica”, combinando “o que é aparentemente incompatível; aquilo que é claro com o que é labiríntico; aquilo que é aberto com aquilo que é fechado ou o simples com o complexo” (23), criando uma trama ‒ um mat building ‒ que se espalha pelo terreno e, potencialmente, pela cidade, conectando arquitetura com o território mais amplo no seu entorno.
O Metabolismo, instituído em 1960 no Congresso Mundial de Design, em Tóquio, através do manifesto “Metabolismo 1960: Propostas para um novo urbanismo”, também foi um movimento importante nesse cenário. Arquitetos como Kiyonori Kikutaki, Kisho Kurokawa, Fumihiko Maki, Masato Ohtaka, Noboru Kawazoe, – sob a liderança de Kenzo Tange ‒ usando metáforas biológicas, propuseram uma cidade concebida como um elemento vivo e orgânico, em eterno crescimento e mudança. O projeto da Baía de Tóquio, vai se tornar projeto símbolo desse movimento ‒ exemplo fundamental da ideia de megaestrutura.
Kenzo Tange propõe, de maneira geral, uma cidade composta de infraestrutura – os equipamentos de transporte e comunicação ‒ e estrutura – obras arquitetônicas (24). A estrutura teria um ciclo metabólico mais curto, se comparado com o ciclo da infraestrutura. Isto significava planejar as cidades dividindo-as em elementos de caráter permanente e em elementos transitórios que estariam em constante relação.
O arquiteto japonês também sugere a criação de ligações tridimensionais em obras arquitetônicas de grande porte, criando conexões entre os vigésimos andares de dois edifícios distintos, por exemplo. “Tudo isso significa que somos confrontados com a necessidade de criar relações inteiramente novas entre elementos de infraestrutura e estrutura” (25). Coincidindo com princípios do Team 10 e do casal Smithson, nessas propostas estavam latentes os ideais de mobilidade e comunicação.
Considerando que, como indicava Kenzo Tange (26), apesar do inchaço da cidade, o homem continuava a se movimentar a pé em um contexto em escala humana, os metabolistas de alguma forma tentaram conectar princípios universais com modelos mais tradicionais. Dentro dessa linha de pensamento, Fumihiko Maki com o texto Collective form – three paradigma (27), de 1964 – escrito em colaboração com Masato Ohtaka −, ampliava as possibilidades de atuação na cidade contemporânea, apresentando – conjuntamente com outros dois tipos de “forma coletiva”, quais sejam a “forma composicional” e a “forma de grupo” ‒ uma ideia de “megaestrutura/ megaforma” flexível e aberta, mais plural e aberta à mobilidade. Sua multiplicidade de possibilidades de conexão entre as partes configurava “sistemas funcionais independentes adequados, dando-lhes uma interdependência ideal através da provisão de juntas físicas em pontos críticos” (28). Como finalmente apontava Tange, em conexão com as ideias de sua geração, a real natureza do urbano implicava “diversidade, intercâmbio, flexibilidade, escolha de contatos” (29).
É evidente a semelhança desse esquema com a proposta de cidade como “semitrama” de Christopher Alexander. A semitrama ‒ presente nas cidades com um crescimento espontâneo ao longo do tempo – também constitui uma estrutura complexa e com os elementos em constante interconexão (30).
A Zona 1 da Cooperativa Habitacional José Pedro Varela e o contexto arquitetônico e urbanístico do segundo pós-guerra
O Conjunto Habitacional José Pedro Varela se localiza em Montevidéu, Uruguai, a cerca de 10 Km do centro da cidade. A urbanização total é formada pela Zona 1, Zona 3 e Zona 6, sendo a Zona 1 composta por uma área com edifícios de quatro pavimentos com apartamentos e outra com edifícios de dois andares com apartamentos duplex. O setor da Zona 1, onde se localizam os blocos de quatro pavimentos, constitui-se como objeto de estudo desta investigação.
Os projetos das três zonas – cuja implantação se propunha como ativadora de um processo de melhoramento da região ‒ foram desenvolvidos em sistema cooperativo de Ajuda Mútua (31), pelo Instituto de Assistência Técnica Centro de Assistência Técnica e Social – Cedas, em conjunto com os arquitetos Jorge di Paula, Norberto Cubría, Walter Kruk e colaboradores. O setor estudado ‒ que possui 633 unidades habitacionais, distribuídas em 33 edifícios de 4 pavimentos, e equipamentos coletivos e comércio ‒ foi concretizado entre 1971 e 1975 (32).
O terreno possui uma área de 86.056 m² com forma aproximada de um trapézio. A implantação se dá através da disposição de edifícios lineares, conformando uma malha com eixos em duas direções principais, paralelas aos limites do terreno, formando ângulos de 60º e 120º. Essa malha gera uma série de praças com interconexões variadas. Em uma área livre no extremo nordeste do terreno estão localizadas a escola e uma quadra de esportes e, na principal rua de penetração no conjunto, os locais de comércio.
Os edifícios estão conectados por uma rede de circulações horizontais ‒ em todos os pavimentos ‒ e verticais, comportando-se estas últimas como rótulas que unem dois ou três edifícios entre si. Algumas circulações verticais foram posicionadas na porção mais central dos edifícios mais longos, mantendo uma distância entre si de no máximo 50 m.
Os volumes dos edifícios se constituem de prismas horizontalizados, com comprimentos variados, mas com uma estrutura modular expressa na grelha que sustenta as circulações horizontais, anexada à fachada longitudinal dos blocos. A expressão plástica se completa com as esculturais circulações verticais de concreto armado.
As 710 unidades habitacionais da Zona 1, de um, dois, três ou quatro dormitórios, organizam-se em uma malha modular, onde a “rígida modulação construtiva e uma estruturação adequada das instalações [...] permitiu a sobreposição livre de habitações de acordo com qualquer combinação horizontal e vertical” (33).
São bastante evidentes os pontos de confluência de alguns conceitos presentes nas estratégias projetuais aplicadas no JPV com o contexto internacional antes mencionado. A organização geral do conjunto, que procura estabelecer relações variadas e ricas, a relação entre diferentes escalas, a presença das ruas elevadas e a flexibilidade no agrupamento das unidades habitacionais, são alguns dos pontos que refletem, de alguma maneira, as questões colocadas naquele cenário.
A implantação do conjunto expressa ao mesmo tempo padronização e complexidade: volumes individuais – elementos primários de geometria simples, protótipos consolidados nos Ciam’s ‒ são organizados em arranjo orgânico, conformando um complexo sistema de circulações horizontais e verticais.
A malha – definida em parte pela infraestrutura viária do entorno ‒ gera um esquema que permite um crescimento com uma potencial capacidade de penetração no tecido urbano circundante e assim de conexão com o entorno. Essa flexibilização dos limites dos agrupamentos ou, ainda, a ideia de mat-building (os Smithson e Van Eyck), rompem com os limites estritos entre objeto arquitetônico e cidade. O posicionamento dos elementos urbanos está relacionado aos fluxos e às conexões.
O JPV também compõe uma ideia de “cidade metabolista” onde os equipamentos de caráter fixo e permanente de comunicação horizontal e vertical – infraestrutura ‒, e os edifícios lineares de diferentes longitudes, de caráter transitório, conformados a partir de necessidades mais efêmeras – elementos da estrutura ‒, estão em constante relação.
Os clusters no JPV são verdadeiros “galhos” que, a partir de uma ordem gerada pela rede de infraestrutura de mobilidade e comunicação (os Smithson), combinam-se em uma organização ordenada, mas flexível, gerando os espaços coletivos e se relacionando de maneira variada com esses, formando então clusters maiores e menores.
A combinação desses clusters-galhos, compõe uma rede ‒ uma “semitrama” (Alexander) – com uma geometria que se volta sobre si, conformando, então, uma “megaforma aberta e flexível” (Maki e Ohtaka), potencializadora de mobilidade, com muitas possibilidades de conexão entre as partes, e que possibilita uma “escolha de contatos” (Tange).
A articulação dos clusters em semitrama cria áreas de convívio coletivo abertas-fechadas – praças e “grupos-espaços” (os Smithson) ‒, locais para suprir as necessidades humanas de identificação e pertencimento. Constituem-se como “realidades plásticas finitas” (os Smithson), que potencializam relações sociais na comunidade, despertando sentimentos de pertencimento, ao mesmo tempo que representam as relações casa-rua-bairro-cidade.
Na estratégia de valorização dos espaços coletivos – de transição ‒, as ruas elevadas são um tema muito especial presente na cooperativa uruguaia e que é reflexo muito direto do pensamento dos anos 1950 que procura, mesmo em edifícios em altura, aproximar o morador do espaço público e coletivo, por excelência, que é a rua.
Esses “territórios de identidade” (os Smithson) se constituem como interface entre a cidade e o espaço mais doméstico e criam um espaço contíguo às habitações, de uso coletivo, mas que, por possuir uma grande proximidade da residência, pode vir a ser apropriado de maneira mais privada pelos moradores.
As ruas elevadas criam “conexões tridimensionais” (metabolistas) estabelecendo novas relações entre os edifícios. Assim, escadas e passagens elevadas interligam lugares e atividades individuais e coletivas, tanto no nível do solo como em pavimentos superiores, em uma relação muito dinâmica.
Cada edifício do JPV é um subcluster (Van Eyck), um “estágio multiplicativo”, que estabelece o verdadeiro potencial do habitar a partir da presença da rua elevada ‒ a instalação pública ‒ imediata à habitação, e que articula espaço interior e exterior de maneira clara e consistente (Van Eyck).
Desse modo, a “megaestrutura JPV”, como já comentado, é composta dos elementos de ciclo de vida mais duradouro – escadas e circulações – e os elementos mutáveis e transitórios, que respondem às demandas mais específicas e cambiantes de cada diferente família – as unidades habitacionais. A flexibilidade lograda na organização interna das unidades, mesmo em um edifício em altura, implica a busca de um atendimento adequado aos diferentes grupos familiares moradores do conjunto.
Por sua vez, a unidade habitacional ‒ a casa ‒ deve assimilar em sua estrutura, de maneira espontânea, “as instalações públicas que esta etapa requer e que lhe pertencem inseparavelmente” (34). Desse modo, nas reentrâncias ‒ inbetween places –, no “espaço aberto” no limite das unidades habitacionais, um fenômeno avança sobre o outro, adquirindo “semelhança configurativa” e expressando suas reciprocidades, o caráter de cada lado (Van Eyck).
Por fim, as diversas possibilidades de gradação entre os espaços públicos e privados, partindo do espaço privado das unidades habitacionais, passando pelos espaços coletivos semipúblicos do conjunto ‒ ruas elevadas, pátios e ruas internas ‒ e chegando no espaço público da cidade, são atos que criaram uma positiva transição entre as diversas escalas da cidade. Esse tratamento adequado da inter-relação dos “fenômenos gêmeos”, assim como a correta relação entre elementos fixos e mutáveis, configuram-se como exemplos contundentes das diversas interpretações locais das propostas de além-mar.
Considerações finais
De maneira geral, este estudo se constitui como uma mostra da circulação de ideias, no campo disciplinar, neste importante período ‒ os anos 1950 a 1960 – período de reconstrução da Europa do pós-guerra, período de grande migração campo-cidade na América Latina.
Nesse contexto de efervescência crítica na cultura arquitetônica e urbanística do Uruguai, projetos como o do conjunto José Pedro Varela tiveram um caráter de experimento. Naquele momento, várias propostas investigaram novas abordagens para a questão habitacional, com base em grande parte da adaptação daquelas ideias internacionais a um contexto específico, consagrando-se como modelos para a produção habitacional subsequente naquele país.
Tem-se consciência das limitações presentes na aplicação de algum dos conceitos do Team 10 e dos metabolistas a projetos de grandes escalas e em edifícios de grandes alturas. Nesse sentido, a pequena escala – mais controlável – dos projetos cooperativos uruguaios facilitou a inserção desses princípios de maneira melhor sucedida. Acredita-se também que os espaços coletivos projetados facilitam de alguma maneira a autogestão.
De todas as formas, mesmo frente à extrema complexidade relativa à produção da habitação no cenário atual na América Latina ‒ que necessita, evidentemente, novas e ajustadas interpretações teóricas e críticas ‒, as propostas habitacionais uruguaias, da época em estudo neste artigo, apresentam pressupostos conceituais e soluções projetuais que se mantém consistentes e vigentes.
notas
NA – O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
1
Ver, por exemplo CASTILLO, Alina del. Una exposición sobre las cooperativas de vivienda uruguayas. In VALLÉS, Raúl; CASTILLO, Alina del (Org.). Cooperativas de vivienda en Uruguay. Medio siglo de experiencias. 2ª edição. Montevidéu, Facultad de Arquitectura, Universidad de la República; São Paulo, Governo do Estado de São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2015; ALMEIDA, Cecilia; PINTOS, Agustín. Corredor: transición entre lo público y lo privado, en la vivienda. Tesina del Curso Producción de Vivienda con asesoramiento del Centro Cooperativista Uruguayo. Montevidéu, FADU UdelaR, 2015 <http://www.fadu.edu.uy/tesinas/files/2015/08/Tesina-Corredor.-Almeida-Pintos-2015-baja.pdf>.
2
ALMEIDA; PINTOS. Op. cit., p. 46-47. Também outros autores como BLECHMAN, Mario; CASARAVILLA, Jorge. Habitando [lo] Colectivo. Espacios de mediación en el habitar colectivo. Especialização. Montevidéu, FADU UdelaR, 2012 e VALLÉS, Raúl. Una mirada al sistema cooperativo de viviendas en Uruguay. In VALLÉS, Raúl; CASTILLO, Alina del. Cooperativas de vivienda en Uruguay. Medio siglo de experiencias. 2ª edição. Montevidéu, Facultad de Arquitectura, Universidad de la República; São Paulo, Governo do Estado de São Paulo, Museu da Casa Brasileira, 2015, apontam a incorporação de propostas que propunham uma ruptura bastante explícita com o modelo de arquitetura e urbanismo correntemente presente no contexto da habitação social.
3
O grupo adotou esse nome quando ficou responsável pela organização do décimo Ciam. Destacam-se, dentre seus membros participantes, os arquitetos: Aldo van Eyck, Alison e Peter Smithson, Georges Candilis, Giancarlo de Carlo, Jaap Bakema, Ralph Erskine e Shadrach Woods. Como participantes ocasionais e convidados, entre outros: Christopher Alexander e os metabolistas Kisho Kurokawa, Fumihiko Maki, Kenzo Tange.
4
O “coração da cidade” foi o tema do Ciam VIII, realizado no ano de 1951 em Hoddesdon, Inglaterra. Nesse momento se reconhecia a importância de um espaço urbano não estritamente funcional configurado por espaços cívicos e culturais para a existência de uma genuína vida pública na cidade.
5
COLQUHOUN, Alan. Arquitectura moderna. Una historia desapasionada. Barcelona, Gustavo Gili, 2005, p. 219.
6
MONTANER, Josep Maria. Depois do movimento moderno. Arquitetura da segunda metade do século XX. Barcelona, Gustavo Gili, 2011, p. 30.
7
Disponível em Team 10 online <http://www.team10online.org/>.
8
SMITHSON, Alison; SMITHSON, Peter. An urban Project. Architect’s Yearbook, v. 5, 1953. Esse artigo, assim como “Cluster City. A new shape for the community”, estão disponíveis no apêndice de AMORIM, Mariana Souza Pires de. O Novo Brutalismo de Alison e Peter Smithson. Em Busca da Ordem Espontânea da Vida. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, CCS PUC-Rio, 2008, p. 128-148.
9
MUMFORD, Eric Paul. The CIAM Discourse on Urbanism, 1928-1960. Cambridge, The MIT Press, 2002, p. 234-235.
10
SMITHSON, Alison; SMITHSON, Peter. Cluster City. A new shape for the community. Architectural Review, nov. 1957.
11
Idem, ibidem, p. 336.
12
No texto An Urban Project, anteriormente citado, os arquitetos indicam várias outras possibilidades de usos desse yard-garden: meio de acesso às habitações, lugar de jardinaria, atividades várias e até comércio.
13
VAN EYCK, Aldo. Steps toward a configurative discipline. Forum, n. 3, ago. 1962, p. 358 <http://www.arch.ttu.edu/courses/2008/summer/mexicostudio/Handouts%20Vernooy/Theory/Theory_van_Eyck.pdf>.
14
Idem, ibidem, p. 355.
15
Idem, ibidem.
16
Idem, ibidem, p. 348.
17
“Realidades plásticas finitas” chamariam os Smithson, reforçando sempre uma proposta que encara o espaço como algo peculiar em sua realidade habitável, afastando, assim, o pensamento moderno que trata o espaço como uma entidade abstrata.
18
Esse espaço aberto não é o “vazio [que] tem espaço para nada além de mais vazio”, referência clara ao urbanismo moderno. É um vazio dotado de identidade. Idem, ibidem, p. 348.
19
Idem, ibidem, p. 349.
20
Idem, ibidem, p. 351-352.
21
Idem, ibidem, p. 350.
22
BARONE, Ana Cláudia Castilho. Team 10: arquitetura como crítica. São Paulo, Annablume, 2002, p. 121.
23
VAN EYCK, Aldo. Entrevista concedida a Anete Araújo e Olívia Fernandes de Oliveira. Salvador, 1996. In ARAÚJO, Anete; OLIVEIRA, Olívia Fernandes de. Claro e Labiríntico. Revista de Urbanismo e Arquitetura, Salvador, v. 5, n. 1, 1999, p. 129 <https://portalseer.ufba.br/index.php/rua/article/view/3142/2321>.
24
TANGE, Kenzo (1968-1971). Tokaido – Megalópoli, el porvenir del archipiélago nipón. In KULTERMANN, Udo (Org.). Kenzo Tange 1946-1969, arquitectura y urbanismo. Barcelona, Gustavo Gili, 1970, p. 148-149.
25
Idem, ibidem, p. 148-149.
26
TANGE, Kenzo (1961). Un plan para Tokio, Hacia una reorganización de las estructuras. In KULTERMANN, Udo (Org.). Op. cit., p. 122.
27
MAKI, Fumihiko; GOLDEBERG, Jerry. Linkage in collective form. In MAKI, Fumihiko. Investigations in collective form. A Special Publication: The School of architecture, n. 2, St. Louis, jun. 1964 <https://library.wustl.edu/wp-content/uploads/2015/04/maki-entire.pdf>.
28
Idem, ibidem, p. 12.
29
TANGE, Kenzo (1968-1971). Tokaido – Megalópoli, el porvenir del archipiélago nipón. In KULTERMANN, Udo (Org.). Op. cit., p. 148.
30
ALEXANDER, Christopher (1965). La ciudad no es un árbol. Cuadernos Summa-Nueva Visión. Christopher Alexander: Nuevas ideas sobre diseño urbano. Buenos Aires, n. 9, set. 1968, p. 20-30 <https://sistemasdeproyecto.files.wordpress.com/2012/10/alexander-c-una-ciudad-no-es-un-c3a1rbol.pdf>.
31
Na modalidade Ajuda Mútua, a mão de obra dos sócios é utilizada na construção das habitações.
32
CUBRÍA, Norberto; DI PAULA, Jorge. El desafío de la escala: conjunto “José Pedro Varela”. In NAHOUM, Benjamín (Org.). Una historia con quince mil protagonistas: las cooperativas de vivienda por ayuda mutua uruguayas. Sevilha, Consejeira de Obras Públicas y Transportes; Montevidéu, Intendencia Municipal, 1999, p. 166; VALLÉS, Raúl; CASTILLO, Alina del. Cooperativas de vivienda en Uruguay. Medio siglo de experiencias. 2ª edição. Montevidéu, Facultad de Arquitectura, Universidad de la República; São Paulo, Governo do Estado de São Paulo, Museu da Casa Brasileira. Op. cit., p. 109 e CUBRÍA, Norberto. Cooperativas de Vivienda: José Pedro Varela Zona 1. Revista Vivienda Popular, n. 4, Montevidéu, dez. 1998, p. 28.
33
CUBRÍA, Norberto; DI PAULA, Jorge. El desafío de la escala: conjunto “José Pedro Varela” (op. cit.), p. 171.
34
VAN EYCK, Aldo. Steps toward a configurative discipline. Forum, n. 3, ago. 1962, p. 351 <http://www.arch.ttu.edu/courses/2008/summer/mexicostudio/Handouts%20Vernooy/Theory/Theory_van_Eyck.pdf>.
sobre as autoras
Carolina Ritter é arquiteta e urbanista (2015) e mestranda (2017_) no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas.
Célia Gonsales é doutora em arquitetura (Universidad Politécnica de Cataluña, 2000), e docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pelotas. Coordena a pesquisa Habitação e cidade na segunda metade do século XX: alternativas à proposta funcionalista na habitação social do Uruguai, Peru e Colômbia.