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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Observa-se em projetos urbanos de megaeventos esportivos do Rio de Janeiro o surgimento de espaços insólitos: brechas urbanas não projetadas, modificadas pelo uso temporário que sofrem uma transformação para abrigar novos usos culturais.

english
In urban projects for sport mega-events in Rio de Janeiro, the emergence of unusual spaces can be seen: unplanned urban gaps, modified by temporary use and which undergo a transformation to shelter new cultural uses.

español
En los proyectos de megaeventos deportivos urbanos en Río de Janeiro, se puede ver la aparición de espacios insólitos: brechas urbanas no proyectadas, modificadas por el uso temporal que experimentan una transformación para albergar nuevos usos culturales


how to quote

SELDIN, Claudia; VAZ, Lilian Fessler; BARROS, Caio César de Azevedo; COSTA, Pedro Vitor Ribeiro; GAVINHO, Thomas Ilg. Usos temporários em espaços gerados pelos megaeventos. Apropriações insólitas e resistência através da cultura. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 241.03, Vitruvius, jun. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.241/7776>.

O Rio de Janeiro é uma cidade marcada pelas desigualdades. Em áreas mais desprivilegiadas, como as favelas e periferias, os investimentos em urbanização são menores, as políticas públicas são ineficientes e as carências são múltiplas. O desequilíbrio nos investimentos entre as regiões traduz-se em um desequilíbrio na distribuição de equipamentos culturais tradicionais pela cidade, fortemente concentrados nos bairros mais nobres. Esse quadro vem fazendo com que grande parte da população carioca de renda mais baixa se veja obrigada a criar espaços alternativos de arte, cultura e lazer em locais muitas vezes inesperados. Neles, os usos são frequentemente temporários ou intermitentes, indicando uma nova forma de apropriação espacial, calcada na não-permanência, e que começa a se multiplicar como maneira legítima de ocupar a cidade e lutar pelo direito à mesma.

Neste artigo, abordaremos três exemplos desses espaços que chamamos de “insólitos”. Todos se situam na Zona Oeste carioca, a que concentra maior porcentagem de população de baixa renda, e estão ligados às obras realizadas no âmbito dos megaeventos esportivos ocorridos durante a década de 2010. Esses casos ainda se localizam em recortes que podem ser compreendidos como “sobras” ou “brechas urbanas” – espaços vazios, residuais, desapercebidos na paisagem, escondidos ou relegados pelo poder público. As atividades neles atualmente desenvolvidas permitem sua transformação através da modificação de sua função original, o que aponta para a necessidade de lugares múltiplos, que abriguem diversas modalidades e linguagens culturais.

Os espaços que classificamos como insólitos consistem em áreas não planejadas ou não projetadas, modificadas por muita força de vontade de uma camada da população que busca opções culturais e de lazer mais acessíveis e próximas de suas residências. Eles transcendem a noção do “ordinário”, constituindo verdadeiros laboratórios de experiência urbana e encontro social. Sua multiplicação na cidade contemporânea aponta para a consolidação de coletivos que assumem para si a responsabilidade de transformar o cotidiano onde vivem em face a políticas públicas ineficientes. Trata-se de apropriações espaciais que surgem como respostas específicas a necessidades concretas. Marcados pela improvisação, os usos culturais nesses recortes propiciam novas relações entre as pessoas e o espaço, promovendo o encontro entre os diferentes em locais não necessariamente edificados.

Em geral, esses espaços carregam consigo um caráter essencialmente resistente, que parte “de baixo para cima” (bottom-up). Isso porque seus organizadores protestam contra remoções, instigam o debate acerca do feminismo, promovem as atividades de artistas que não conseguem operar na indústria cultural formal, entre outros exemplos, que refletem uma não-conformidade com o quadro de disparidades sociais, culturais e espaciais da cidade brasileira contemporânea. De acordo com Ana Clara Ribeiro (1), as políticas públicas que sustentam o desenvolvimento urbano e cultural de hoje implicam a intolerância e a interrupção do diálogo entre classes. Elas reforçam a estigmatização dos pobres, cuja presença acaba sendo mal vista nos espaços revitalizados através dos grandes projetos. Fortalece-se, então uma barreira social simbólica, que enfraquece as possibilidades de garantir a todos uma “cidadania cultural” (2), ou seja, o direito ao acesso e fruição dos bens culturais, à criação, ao reconhecimento e à participação nas decisões públicas.

Essa barreira simbólica é indiretamente incentivada através dos grandes projetos contemporâneos no Rio de Janeiro. A ocupação formal de boa parte dos vazios urbanos e espaços residuais dessa cidade hoje segue padrões globais, em que o planejamento da cidade como um todo vem sendo substituído por projetos pontuais para as áreas degradadas. O que se observa, em geral, é uma tendência de repaginação da imagem da cidade, com uma aposta na cultura como principal instrumento remodelador do espaço urbano. Muitos são os casos de grandes investimentos em equipamentos culturais projetados por arquitetos de renome visando a revitalização urbana. Centros históricos, áreas centrais, vazios portuários, industriais e outras áreas decadentes são reabilitadas, tornando-se, por vezes, âncoras da recuperação da economia. Através de reformas urbanas pontuais, potencializadas por eficiente marketing e pelo mantra do branding urbano, a cultura se transforma em uma mercadoria e as cidades tornam-se casos espetaculares e midiáticos, impondo-se em uma competição globalizada pela atração de capital, turistas e habitantes qualificados (3).

Em face às tendências internacionais de revitalização urbana calcada na cultura, ressaltamos que, hoje, apenas alguns dos espaços residuais cariocas – situados em regiões centrais e/ou estratégicas – vêm se tornando objeto de projetos urbanos que visam revitalizar a imagem da cidade. Outros espaços igualmente degradados – periféricos e menos atraentes ao mercado imobiliário – são deixados de lado pelo planejamento urbano formal. A predileção por certas áreas de maior visibilidade da cidade surge como uma das maiores críticas acerca da culturalização urbana, pois gera níveis de desenvolvimento díspares entre as regiões.

No entanto, o correto seria considerar que o direito pleno à cidade passa, inegavelmente, pelo direito à cultura, e não por sua instrumentalização. Isso porque, como já afirmava Lefebvre (4), o espaço abriga representações simbólicas das relações sociais de produção e de reprodução, que devem ser percebidas e lidas tanto em suas dimensões materiais, quanto em suas dimensões simbólicas presentes e passadas. O autor dava destaque especial à importância da experiência artística para o estabelecimento da sociedade no espaço urbano.

Tendo em mente a importância da arte para a cidade e para a sociedade, torna-se necessário analisar os espaços e territórios culturais desenvolvidos como resposta aos equipamentos tradicionais que privilegiam a criação de uma imagem urbana espetacular voltada para poucos. A pesquisa etnográfica e analítica que embasa esse artigo prova que os atores cariocas responsáveis pelos novos espaços espontâneos que surgem como resistências ao fenômeno de revitalização estratégica e seletiva da cidade, são essencialmente jovens da periferia. Esses jovens excluídos de oportunidades de educação, de saúde e de esporte, de trabalho e de lazer, são, para Ribeiro, os “verdadeiro[s] desbravador[es] de oportunidades criativas, insubordinadas e disruptivas”, pois “é dele[s] e dos seus espaços inorgânicos que advêm as inovações realmente radicais, capazes de impulsionar um grande espectro de novos e atraentes bens culturais, de especial relevância [...]” (5). Através do seu olhar inovador, surgem novas formas de organização de pessoas e de aproveitamento de espaços desacreditados, bem como novas possibilidades de sustento – que configuram lógicas econômicas próprias (em nível micro) e que funcionam paralelamente ao mercado formal.

Atualmente, muitas são as formas alternativas e insólitas de realização de atividades de troca e encontro em espaços obsoletos no Rio de Janeiro por parte desses atores (6). Usos incomuns de espaços escondidos, abandonados ou projetados para outras funções são cada vez mais percebidos, especialmente nas favelas cariocas, onde a ideia de “planejamento” adquire outros significados: as casas, edifícios, lajes, biroscas, escadarias vão sendo construídas taticamente, como colocava Michel de Certeau (7), de acordo com as possibilidades e necessidades. E, seguindo a mesma lógica, os indivíduos e coletivos culturais também atuam de acordo com a ocasião, agarrando as oportunidades que se apresentam. Muitos locais permanecem desapercebidos ou desocupados, muitos são transformados em estacionamentos ou tomados pelo comércio informal, e alguns poucos vêm sendo apropriados para a realização de encontros e atividades culturais, que variam desde a ocupação de edifícios e galpões abandonados ou degradados por coletivos de artistas (à semelhança dos squats europeus), até a apropriação inusitada de pequenas brechas adjacentes à estrutura viária.

Estes locais apontam para o fortalecimento e a consolidação de grupos que assumem para si a responsabilidade de transformar o cotidiano onde vivem e também de reconfigurar simbolicamente o espaço urbano – e principalmente o espaço público – através de usos temporários. Ou seja, baseiam-se no caráter transitório e efêmero, subvertendo a ideia da fixação a uma única localidade, movendo-se no espaço ou operando durante tempo limitado.

Esses espaços insólitos podem ser lidos, assim, como insurgências, que questionam as formas tradicionais de pensar, prever e usar o espaço urbano. Isso porque podem ser compreendidos como maneiras alternativas de apropriação em busca da afirmação de um ideal, agindo contra lógicas de dominação/produção em constante transformação. Podemos inclusive, enxergar os espaços insólitos como “espaços de cidadania insurgente”, seguindo James Holston (8). Para ele, trata-se de concentrações de perfis específicos da população – marginalizados ou cuja associação se baseia precisamente em ideais políticos contra a ordem estabelecida (no caso, contra a ideia de uma cidade dividida, a opressão e um controle excessivo da circulação de membros das camadas populares no espaço).

Os espaços insólitos são também formas de resistência à crescente corrente de planejamento que prega o chamado “urbanismo tático” (9) como solução milagrosa e que, de maneira contraditória ao que infere o próprio conceito de “tática”, pode ser aplicada por arquitetos, empreendedores do mercado imobiliário e órgãos públicos. Essa corrente que generaliza os atores responsáveis pelas intervenções e anula suas intenções e discursos pode ser vista como um reforço do planejamento neoliberal que tira do Estado a responsabilidade de prover espaços de qualidade de forma igualitária a todos. Os espaços insólitos devem ser vistos como oposições à ideia de um Estado que se ausenta e como uma luta por participação nas decisões sobre a cidade, e não como seu incentivo dentro de um novo esquema de marketing urbano que exalta a ideia do “faça você mesmo” em realidades onde os recursos são escassos.

No contexto de desigualdades cariocas, é necessário analisar cuidadosamente as iniciativas capazes de alertar para o potencial dormente de locais marginalizados ou tidos como degradados e sem uso em regiões que não recebem os investimentos do mercado. Mais do que isso, é necessário incentivar maiores oportunidades de participação para as camadas mais pobres da população no processo de construção da cidade para que ela seja mais justa.

A Zona Oeste carioca e os megaeventos

Das macrorregiões que compõe a cidade do Rio de Janeiro, a Zona Oeste (que compreende as Áreas de Planejamento 4 e 5) é a maior em extensão e em número de habitantes, possuindo cerca de 3 milhões de pessoas em 2013, o que representa quase 41% da população carioca. Ela também é a menos urbanizada, a que possui o maior número de favelas e a menor oferta de serviços urbanos e de equipamentos culturais, um quadro que reflete bem a desigualdade e a ineficiência das políticas públicas locais.

De acordo com Ana Beatriz da Rocha, Caio Azevedo Barros e Ellen Rose Beserra (10), a Área de Planejamento – AP 4 apresenta apenas 64 espaços considerados culturais de acordo com as estatísticas oficiais, enquanto a Zona Sul – área nobre e predominantemente habitada pela classe média alta – representada pela AP2, contém sozinha 731 equipamentos culturais, entre eles museus, salas de cinema e de teatro. Os autores ressaltam, portanto, a percepção aparente de um vazio no mapa cultural oficial da cidade, porém argumentando que os índices oficiais não registram muitas das atividades improvisadas e temporárias que surgem na região como resposta a essas disparidades.

Após a escolha da cidade do Rio de Janeiro como sede da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016, os órgãos governamentais anunciaram um vasto número de projetos urbanísticos para sua preparação e que acabaram por afetar diretamente a Zona Oeste. Entre eles, podemos destacar a construção dos equipamentos esportivos componentes do Parque Olímpico na Barra da Tijuca e do Parque Radical de Deodoro e as obras de infraestrutura de transporte para facilitar o seu acesso e melhorar a mobilidade urbana, em especial, as conectadas à implantação do sistema Bus Rapid Transit – BRT e às novas vias expressas nomeadas de Transolímpica, TransBrasil, Transcarioca e Transoeste (11). Todos esses projetos foram acompanhados ainda por processos intensos de remoção de favelas e de habitações de classes baixas, e por novos empreendimentos imobiliários frutos de parcerias público-privadas, conforme registrado por Lucas Faulhaber e Lena Azevedo (12). Os três casos de espaços insólitos que apresentaremos refletem, em seu surgimento, as consequências de tais intervenções no território.

O Museu das Remoções na Vila Autódromo

O Museu das Remoções caracteriza-se por não ser de fato um museu no sentido clássico do termo, já que não possui uma sede edificada. Trata-se de um museu a céu aberto, cujo principal foco é a ideia de protesto às desapropriações forçadas que ocorreram no contexto dos Jogos Olímpicos de 2016. Ele se localiza na comunidade conhecida como Vila Autódromo, adjacente ao Parque Olímpico, na Barra da Tijuca.

Apesar do projeto vencedor para o Parque sugerir a urbanização da comunidade favelizada, as políticas excludentes atreladas às políticas urbanas dominantes no Rio de Janeiro levaram à remoção de quase todas as habitações ali existentes. De acordo com Diana Bogado (13), cerca de 97% das 600 casas locais foram demolidas, o que levou à transformação da região de um pequeno bairro a uma única rua com casas pré-fabricadas e padronizadas através do programa Minha Casa Minha Vida. A autora ressalta que as decisões relativas aos projetos urbanos voltados para o megaevento foram tomadas sem participação popular e sem possibilidade de questionamento, configurando um caráter extremamente autoritário (14).

Instalação a céu aberto do Museu das Remoções na Vila Autódromo em 2017
Foto dos autores

Em meio a esse contexto, o Museu das Remoções nasceu como uma forma de denúncia e reafirmação política através das ações dos moradores que permaneceram, de ativistas e acadêmicos. As primeiras atividades propostas pelos seus idealizadores, ao fim do processo de remoção realizado pela Prefeitura, incluíam os chamados “Ocupas” – atividades culturais que tinham como objetivo ressignificar o espaço destruído pelas máquinas. Eles incluíram rodas de conversa com intelectuais (como a arquiteta Raquel Rolnik, que realizou o lançamento de seu último livro na comunidade em 2016), jogos de futebol (no campinho da antiga Associação de Moradores e Pescadores da Vila Autódromo), dentre outras atividades. No âmbito dos “Ocupas”, destacou-se o Festival Cultural #OcupaVilaAutódromo, que teve duas edições entre 2014 e 2015. Seu objetivo era ocupar a comunidade através da realização de uma festa, com música, exposições, bebidas e comidas. Em sua divulgação, foi utilizado o slogan “A Vila Autódromo resiste, insiste e re-existe”, o que denotava, desde então, a vontade de seus moradores de lutar por sua permanência ali. Durante o 2° Festival, em novembro de 2015, houve a entrega da medalha Pedro Ernesto da Câmara de Vereadores e do prêmio Dandara da Assembleia Legislativa a Heloisa Helena Costa Berto, uma importante liderança religiosa, cujo centro candomblecista estava entre as duas últimas casas marcadas pela Prefeitura para demolição. Ao fim da tarde foi exibido o documentário The fighter: a dark side of sport (A lutadora, o lado escuro do esporte), que conta a história da moradora local Naomy de 12 anos. Esse foi apenas um dos muito documentários realizados para registrar com perplexidade o processo de desmantelamento de uma comunidade em prol de uma imagem de limpeza justificada pelos megaeventos.

Instalação a céu aberto do Museu das Remoções na Vila Autódromo em 2017
Foto dos autores

Com o avançar dos tapumes da Prefeitura – que delimitavam o espaço dos moradores e o espaço capturado pelo Parque Olímpico – estudantes da Universidade Anhanguera de Niterói, ativistas e moradores, decidiram recolher alguns escombros das casas removidas. Pedaços de cano, tijolos, brinquedos... todos os objetos que pudessem ter algum tipo de valor sentimental para compor o “acervo” do Museu das Remoções. A implantação desse novo equipamento aconteceria em três etapas principais: 1) a idealização do que seria um museu comunitário; 2) a realização de diversas oficinas de resgate da memória local; 3) a intervenção territorial no espaço público da Vila Autódromo, que resultou na construção de sete esculturas construídas nos lotes de algumas casas demolidas. O acervo do Museu foi composto, portanto, de objetos carregados de memória e afeto.

O que se apresenta como significativo em relação a este espaço é a tentativa – política e epistemológica – de tentar preservar a memória de algo que possui como objetivo o aniquilamento desse afeto e dessa memória: a remoção. O jogo linguístico presente no próprio nome do museu levanta questões primárias: como é possível existir um museu de algo que se remove?

Instalação a céu aberto do Museu das Remoções na Vila Autódromo em 2017
Foto dos autores

Carregado de subjetividade, este espaço acaba possuindo como característica mais marcante o fato de consistir em uma poderosa ideia. A partir de sua organização, outras lideranças de comunidades removidas, como o Quilombo de Camorim, passaram a frequentar as reuniões realizadas na Vila Autódromo, para pensar como levar essa mesma ideia para suas favelas, adaptando-a.

Em maio de 2017, a Igreja da Vila Autódromo, um dos poucos edifícios que resistiu às demolições, foi o local escolhido para sediar um curso de três dias denominado “Museologia social: poéticas e políticas em movimento, a partir de experiências concretas”. Ele foi fruto da união de esforços entre o Museu das Remoções e a rede de Museologia Social do Rio de Janeiro, no sentido de dar voz a centenas de pessoas prejudicadas por todos os processos de remoção e desapropriação incluídos no projeto Olímpico da cidade. O curso promoveu o encontro entre o Museu da Maré; o Museu Vivo do São Bento em Duque de Caxias – na Baixada Fluminense; o Museu de Favela do conjunto de favelas Pavão-Pavãozinho e Cantagalo; o Museu Sankofa da Rocinha; o Ecomuseu Nega Vilma do Morro Santa Marta; o Ecomuseu Amigos do Rio Joana; o Ecomuseu de Manguinhos; o Museu do Horto; e o Museu das Remoções. Esse encontro de alto caráter simbólico permitiu uma maior articulação e comunicabilidade entre os equipamentos de áreas marginalizadas da região metropolitana do Rio de Janeiro, de modo a possibilitar uma troca capaz de auxiliar na luta pela permanência em um vasto território.

É possível afirmar que a potência do Museu das Remoções está, sobretudo, num plano político, já que ele passa a ser visto como um local de ação, e não só de exibição de arte. Ele se torna, assim, um marco poderoso contra os projetos neoliberais de cidade que visam justamente soterrar o afeto e a lembrança. Isso porque, como diz o lema do Museu, “memória não se remove”.

Vista da Vila Autódromo após remoções em 2017
Foto dos autores

O Espaço Cultural Viaduto de Realengo

O segundo caso de um espaço insólito que teve seu uso transformado para abrigar atividades culturais com caráter de resistência situa-se sob o viaduto Aloysio Fialho Gomes, inaugurado em 2012 no bairro de Realengo. Ele foi construído com o objetivo de melhorar o trânsito na região, criando mais uma rodovia que possibilitasse o cruzamento por cima da linha do trem urbano da SuperVia, a mesma que corta o bairro ao meio.

A história do bairro de Realengo é diretamente ligada ao império português, constituindo um dos quatro principais pontos de descanso das longas viagem de carruagem realizadas pela Coroa durante os séculos 18. A partir da segunda metade do século 19, ele começou a passar por processos de maior urbanização no sentido de abrigar algumas instituições militares e novas fábricas que surgiam na periferia carioca. Apesar disso, esses processos ocorreram de forma desorganizada, sem planejamento urbano social, com pouca infraestrutura e mobilidade urbana. Durante o século 20, o bairro passou por um período de intervenções urbanas de caráter extremamente rodoviarista, o que levou à conflagração de um quadro caótico, marcado pelos engarrafamentos e pela movimentação de pessoas na linha férrea.

O viaduto, construído em 2012 para amenizar os problemas locais de mobilidade, pode ser considerado pequeno, contando com apenas 300m de extensão. Na parte Sul do bairro, ele passa por cima de uma área militar utilizada principalmente por pedestres para acessar a estação de trem de Realengo. Na parte Norte, ele passa por cima do Espaço Cultural Arlindo Cruz – um dos únicos equipamentos culturais tradicionais da região.

Após a obra, que implicou na demolição de algumas casas, o local por baixo do viaduto passou a ser considerado perigoso pelos moradores, que relatam ali a ocorrência de um alto número de assaltos. Isso porque ele se encontra entre duas áreas militares cercadas de muros, sem residências ou comércio, o que faz com que a permanência no espaço seja reduzida. Além disso, à noite a iluminação é insuficiente, o que causa uma sensação de insegurança para os passantes. Mesmo assim, o fluxo de pedestres no baixio é frequente por conta da ligação da parte Sul do bairro com a estação de trem.

Tendo em vista a sua posição estratégica em relação aos meios de transporte e a grande circulação, o local despertou o interesse de alguns produtores culturais locais. Assim, em 2013, o baixio começou a ser ocupado por um coletivo intitulado Original Black Sound System – OBSS. Esse coletivo, liderado por Oberdan Mendonça, é formado por jovens músicos, DJ’s, MC’s e grafiteiros, que desejam fortalecer a cena do hip hop local, produzindo e apoiando eventos diversos a partir da sua estrutura técnica.

O exemplo do Espaço Cultural Viaduto de Realengo é relevante, pois reflete uma tendência de ocupação de espaços residuais ou “sobras urbanas” adjacentes à infraestrutura dos meios de transporte. Os baixios de viadutos apresentam um amplo potencial de transformação por contar com uma cobertura e delimitarem uma área precisa. É recorrente nas cidades brasileiras que esses espaços sejam ocupados por estacionamentos de carros, ou mesmo moradias informais de uma parcela da população marginalizada, porém, atualmente, cresce o número de apropriações culturais dos mesmos, como é o caso do Baile Charme do Viaduto de Madureira, do Sarau da Viá no Viaduto de Laranjeiras, dos eventos no Viaduto de Bangu e da Abolição – todos no Rio de Janeiro.

Em pouco tempo, a ocupação de Realengo foi tomando forma e frequência, dando uma nova cara ao espaço com suas intervenções. O grafite e a pichação como as primeiras linguagens, abriram frente para a real apropriação espacial por parte dos seus novos usuários. Segundo Mendonça, essa arte urbana tem um significado de marcar fisicamente o lugar, como "um processo primitivo" latente, que expressa "estamos presentes aqui... Há vida nessa caverna" (15). Essa necessidade de marcar o espaço não tem origem em um sentimento de propriedade, segundo ele. A intenção é colocá-lo em uso, transmitindo a ideia a quem passa de que ali há vida, mesmo quando uma atividade não está acontecendo. Isso influencia na sensação de segurança, por exemplo, pois os passantes, ao verem que as paredes, muros, pilares e vigas do viaduto estão sendo ocupados por artistas, passam a reconhecer o local como ocupado através de uma subjetividade que não havia antes. De fato, a partir da ocupação do OBSS, a segurança ali melhorou, segundo relatos dos próprios moradores. A frequência com que eventos acontecem no Espaço passou a ser notada como geradora de um movimento positivo, criando um cenário de transformação da dinâmica local.

Após as intervenções visuais, o baixio do viaduto passou, então, a ser ocupado em diferentes dias, havendo destaque para eventos semanais ligados ao rap, quando os MC’s e DJ’s se reúnem para travar batalhas de rimas e improvisar. Atualmente, acontecem diversas outras atividades no local, incluindo cinema, jazz, rock, escola de barbeiros, skate, basquete e outros usos mais efêmeros, como ensaios de moda e reuniões de bairro. Em 2015, o grupo foi contemplado com uma pequena quantia do edital de “Ações Locais” da Secretaria Municipal de Cultura da Prefeitura do Rio de Janeiro, que possibilitou a compra de equipamento básico para as atividades musicais e containers para o seu armazenamento. Além disso, esse reconhecimento oficializou o nome do local como Espaço Cultural Viaduto de Realengo. Porém, além desse apoio pontual, nenhum outro financiamento foi obtido desde então. Atualmente, os organizadores aguardam um projeto de lei que dará um nome para a ruela transversal ao viaduto na esperança de aumentar o seu grau de legitimidade. Eles anseiam também pela melhoria da infraestrutura do baixio, insistindo na necessidade do fornecimento de água, da instalação de banheiros químicos, de uma melhor iluminação e de um projeto que amenize os alagamentos provocados pelas chuvas.

Mesmo com esse quadro de ineficiência dos serviços urbanos nesse ponto de Realengo, as atividades persistem a partir da insistência dos produtores culturais locais, que recebem o apoio dos moradores, conforme observado em uma pesquisa realizada com cerca de cem frequentadores do espaço em 2018 (16). Através dela, foi possível observar que a maior parte dos usuários vem da própria Zona Oeste da cidade (89%), sendo que mais da metade (53%) era proveniente do próprio bairro. Isso mostra que existe uma centralidade construída nesse espaço para moradores dessa região, e que ele configura, portanto, como um polo cultural alternativo para os bairros das redondezas que carecem de equipamentos culturais tradicionais. Esses dados podem ser confrontados com os provenientes de outra pesquisa realizada em 2015 sobre os espaços culturais tido como "oficiais" pela Secretaria Municipal de Cultura, e que mostra uma concentração maior desses aparatos em zonas distantes da Oeste, como a Central e a Sul.

Mapa de espaços culturais oficiais reconhecidos pela Secretaria de Cultura carioca em 2013
Elaborado pelos autores

Em relação a gênero, o espaço é majoritariamente ocupado por homens (61%), o que pode ser compreendido como um reflexo dos problemas atuais de segurança nos espaços públicos da cidade e da falta da presença de infraestrutura específica, como sanitários por exemplo. A idade dos frequentadores varia bastante, sendo a maior parte (60%), pertencente à faixa dos 13 a 30 anos. Essa variedade etária realça o potencial do local como um polo de encontro para que pessoas de diferentes realidades troquem experiências, salientando que a importância dos espaços culturais vai além do consumo da arte e cultura, estando presente também nas trocas interpessoais. Entre os pontos positivos do local, os frequentadores citam: a possibilidade do encontro entre gerações; a possibilidade do uso efetivo do espaço público, que é ativado através do lazer e da cultura; a gratuidade; o alto grau de acessibilidade em função da proximidade a diversos meios de transporte; a presença de um programa cultural diversificado e bem organizado que atende a grupos diferentes; a sua contribuição para a segurança do baixio como área de passagem; e sua veia criativa – que inova sem necessidade de grandes projetos.

Apesar da percepção positiva por parte da população local, é necessário ressaltar que os artistas ainda encontram alguns obstáculos no que se refere a sua aceitação. Os organizadores já tiveram problemas com a Polícia Militar durante a realização de alguns eventos, o que prova que, mesmo havendo a sansão do Estado através da Secretaria de Cultura, ainda existem forças que criam empecilhos para o desenvolvimento de projetos do tipo “de baixo para cima”.

A experiência com o Viaduto de Realengo fez surgir em seus organizadores a compreensão sobre a importância de ocupar os baixios de outros viadutos da cidade. Assim, em 2014, eles criaram um projeto intitulado “Circuito Viadutos da Cidade do Rio de Janeiro”, cujo slogan é “qual é seu viaduto?”. Eles consideram o viaduto de Realengo como um projeto piloto, capaz de inspirar novas ocupações pela cidade. O objetivo do circuito é fazer com que os produtores culturais de outros bairros entendam sua capacidade de ocupar os baixios existentes como meios de desenvolver expressões artísticas alternativas. No âmbito desse projeto, os produtores culturais de Realengo vêm trabalhado junto com os de Bangu – outro bairro da Zona Oeste – e de Abolição, bairro da Zona Norte, tecendo uma verdadeira rede cultural alternativa da periferia carioca. Seu desejo no momento é propiciar a ocupação do viaduto do bairro do Caju – que abriga um dos maiores cemitérios da cidade e, onde, segundo Mendonça, não há opções culturais.

O espaço adjacente ao Viaduto de Realengo durante o dia em 2018
Foto dos autores

O Cine Taquara

De forma semelhante ao Espaço Cultural Viaduto de Realengo, o último estudo de caso aqui apresentado – o Cine Taquara – também reflete uma relação com as infraestruturas de meio de transporte construídas no âmbito dos megaeventos. O bairro periférico da Taquara localiza-se na Zona Oeste da cidade, a aproximadamente 24 km do centro histórico. Em termos de planejamento, trata-se de uma região marcada desde os anos 1970 por uma urbanização de caráter predominantemente rodoviarista, responsável por grandes engarrafamentos, por um sistema de transporte deficitário e pelo aumento da temperatura em função do decréscimo da vegetação. O bairro também é caracterizado pela verticalização e por uma crescente perda do caráter comunitário, o que contribui negativamente para a transformação das dinâmicas urbanas locais.

Além disso, a Taquara permanece sem investimentos consideráveis em espaços de arte, cultura e lazer. A partir de 1993, a Zona Oeste foi contemplada com o projeto das Lonas Culturais, que se instalaram em bairros vizinhos, como Bangu, Realengo, Campo Grande e Pechincha, concedendo algum fôlego a toda uma região sufocada pela negligência governamental (17). Hoje, porém, elas se mostram insuficientes para atender aos mais de 2 milhões de habitantes locais, dos quais 102 mil residem na Taquara.

Direções para o espaço do Cine Taquara na passarela do BRT em 2018
Foto dos autores

Apesar da falta de investimentos em projetos de cultura, a Taquara foi um dos bairros afetados pelas custosas obras de mobilidade realizadas no âmbito dos megaeventos. Mais especificamente, ela recebeu um trecho da via expressa Transcarioca, onde foi implantado um dos corredores do BRT e três estações, projeto que dividiu o bairro e modificou drasticamente sua paisagem. O projeto, que inicialmente representava uma grande melhoria para mobilidade local, hoje conta com uma infraestrutura precária e ineficiente, havendo destaque para estações em más condições de preservação e veículos que transportam mais pessoas que sua capacidade. A região acabou ficando marcada por grandes passarelas que se elevam sobre um cenário viário caótico, enclausurando calçadas e deixando espaços residuais em seu entorno. A implementação do BRT ali resulta em um cenário árido e repulsivo, reafirmando os arredores da longa Estrada dos Bandeirantes que a corta como uma zona de passagem, onde o espaço dos veículos se sobrepõe ao do pedestre, obrigado a percorrer longas distâncias para realizar atravessamentos. Os problemas em sua implantação refletem o descaso e o descuido por parte da esfera pública com o bairro.

A estação principal localiza-se em um ponto de convergência de vias na Estrada dos Bandeirantes, onde, além da estação do BRT, existe também uma estação rodoviária, responsável por abrigar as linhas alimentadoras e uma passarela de aproximadamente nove metros de altura que conecta as calçadas enclausuradas ao terminal rodoviário. A grande passarela, além de asfixiar a calçada de um lado, se apropria de parte de um terreno do outro, fazendo restar como “sobra” não projetada e sem função, um recorte espacial de 450 metros quadrados. Esse terreno, desapropriado pelas obras, passou a configurar um vazio urbano cercado por muros em plena região central do bairro. Adjacente ao ponto de descida da passarela, ele possui apenas um pequeno bicicletário e uma boa estrutura de iluminação em área gramada. Apesar disso, por ali passam todos os dias um imenso número de pessoas, o que despertou a atenção de dois jovens que começaram a enxergá-lo como um espaço de oportunidade com potencial relegado pelos planejadores.

O espaço do Cine Taquara em 2018
Foto dos autores

Gleyser Ferreira e Celso Oliveira, moradores da região de Jacarepaguá, decidiram intervir no local em desuso em novembro de 2017, inconformados com as longas distâncias percorridas para ter acesso a teatros, cinemas, e centros culturais tradicionalmente concentrados no Centro e Zona Sul. Ergueram uma lona sobre a grama e um tecido branco improvisado e começaram a projetar filmes com temáticas sociais a céu aberto, fazendo surgir, assim, o espaço “CineTaquara: cinema de graça na praça”. O projetor e os equipamentos sonoros são emprestados e a energia é concedida pelos camelôs locais. Após as exibições são realizados debates e conversas específicas sobre temas que afetam a população local, como a violência doméstica. Por vezes, são realizados também saraus de poesia e exibições de arte improvisadas sobre os mesmos temas. Junto à determinação e ao anseio por expressão, essa simples ação de criar um cineclube em um vazio urbano vem transformando aquela área em um espaço de reflexão, encontro, sociabilidade e expressão, incentivando os moradores a acharem sua voz.

Atualmente, o Cine Taquara ocorre todo segundo sábado do mês, já tendo realizado edições em torno dos temas da resistência, da memória, da cultura negra, do racismo, da consciência ambiental e do feminismo, entre outros. Ele atrai um público variado, porém predominantemente jovem, o que reflete sua preocupação em constituir, além de um espaço cultural e informativo, um local de unificação e reaproximação de artistas e empreendedores locais, que ali podem também expor e comercializar seus produtos.

Como consequência, o espaço residual do BRT se transformou em uma espécie de pequena praça de uso intermitente, inteiramente dependente da presença humana para se concretizar. Sem apoio institucional ou governamental e sem mobiliário urbano especial, como bancos, mesas e similares, ele concentra pessoas apenas nas noites de evento – todas reunidas em torno de um assunto especial que marca as vivências diárias de seus participantes.

Mais do que apenas um evento cultural, outrora escasso ou inexistente no bairro, o Cine Taquara, pode, então, ser compreendido como uma resposta a uma cidade construída por diretrizes opressoras e excludentes. Trata-se de um lugar onde os participantes podem discutir sobre as consequências da desigualdade social carioca, incentivando a luta e a resistência de uma camada desprivilegiada da sociedade. Ele consiste em um espaço insólito por excelência, um antigo vazio que se torna tão cheio que transborda e reverbera pela região como a voz de uma população que busca conquistar o seu direito à cidade.

Apresentações no Cine Taquara em 2018
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Considerações finais

Na década de 2010, a paisagem urbana do Rio de Janeiro foi marcada por diversos projetos ligados aos megaeventos esportivos. Os estudos que vêm sendo realizados sobre os mesmos revelam interesses políticos e econômicos que beneficiam as classes mais abastadas e prejudicam a população de menor poder aquisitivo. Isso é mais fortemente perceptível na Zona Oeste carioca, que já sofria com carências de serviços urbanos e políticas ineficientes e acabou se tornando alvo de remoções, de especulação e de intervenções que não foram capazes de resolver os imensos problemas de mobilidade. Os projetos implantados nessa região da cidade foram responsáveis ainda por criar “brechas urbanas” – espaços residuais – que passaram a ser ocupados pelos habitantes locais como formas de resistência aos processos excludentes de produção da cidade.

Nos bairros periféricos marcados pela ausência de equipamentos culturais tradicionais e implantados através de políticas públicas oficiais, é possível perceber um movimento caracterizado que emerge de baixo para cima. Alguns coletivos populares começam a iluminar “espaços opacos” (18) da cidade por meio de práticas de ocupação urbana embebidas de um valor cultural autentico e espontâneo. Como forma de resistir às políticas de caráter excludente, atores culturais locais constroem um meio legítimo de ecoar uma voz constantemente silenciada.

As camadas populares vêm tentando recuperar o espaço público através de ocupações não definidas pelo plano, projeto ou desenho urbano. Trata-se de uma transformação orgânica da paisagem por meio da arte e da cultura. Esses espaços insólitos que temos visto surgir partem da ocupação improvisada da cidade consolidada e não da prática de projetar a tábula rasa. Eles ressaltam a transformação do local através do contato direto de quem o conhece – o indivíduo que se esgueira pelas brechas, perfura fronteiras e se acomoda nas sobras.

Os três espaços/eventos apresentados – o Museu das Remoções, o Espaço Cultural Viaduto de Realengo e o Cine Taquara – permitem uma reflexão sobre a necessidade de se pensar o espaço urbano como ponto de convergência de inúmeros interesses, políticas e conflitos. Eles apontam, principalmente, para o papel dos atores urbanos no processo de produção e de luta pela cidade. Em todos os casos, observa-se uma capacidade de adaptação a ambientes superficialmente não convidativos e sua transformação em áreas de convergência e convivência, de debate e reflexão sobre questões urbanas. Esses espaços insólitos se apresentam como pontos de interesse para o campo do conhecimento, pois são carregados simultaneamente de um potencial transformador, criador e contestador do poder subversivo da cidade sobre ela mesma.

No entanto, esses exemplos não devem ser tomados como fórmulas milagrosas a serem replicadas através de um discurso esvaziado de “urbanismo tático”, que se preocupa mais com a criação de imagens autênticas de cidade e com um discurso superficial de participação do que com os atores e interesses que estão por trás das intervenções espaciais. Os espaços insólitos das áreas marginalizadas surgem como processos de resistência carregados de um caráter de protesto – objetivo ou subjetivo. Neles, o urbanismo do tipo “faça-você-mesmo” surge por necessidade e não por opção. Por isso mesmo, sua existência e seu sucesso não eliminam a necessidade de uma atuação mais eficaz por parte do Estado, que tem o dever de prover essas regiões com equipamentos e serviços de qualidade, no sentido de diminuir as desigualdades tão latentes na distribuição de políticas públicas. Nessas regiões, é necessário um investimento massivo em opções culturais e de lazer do mesmo nível presente nas áreas tidas como estratégicas pelo capital. Esses espaços insólitos devem ser tidos, portanto, como convites a refletir sobre a importância de todos poderem vivenciar a cidade de forma mais acessível. Para isso é necessário pensar o urbano de forma diferente: mais do que construir para poucos, transformar; mais do que destruir, ressignificar.

notas

NA – O presente trabalho foi realizado com apoio da Capes, da Fundação Alexander von Humboldt e do CNPq e apresentado no XVIII Enanpur. SELDIN, Claudia; VAZ, Lilian Fessler; BARROS, Caio César de Azevedo; COSTA, Pedro Vitor Ribeiro; GAVINHO, Thomas Ilg. A resistência em espaços resultantes dos megaeventos Apropriações insólitas através da cultura. Anais do XVIII Enanpur. Natal, EDUFRN, 27-31 mai. 2019.

1
RIBEIRO, Ana Clara T. Oriente negado. Cadernos PPG-AU/FAUFBA, ano 2, n. especial, Rio de Janeiro, 2004, p. 97-107.

2
CHAUÍ, Marilena. Cultura política e política cultural. Revista dos estudos avançados, n. 23, São Paulo, 1995.

3
SÁNCHEZ, Fernanda. A reinvenção das cidades para um mercado mundial. 2ª edição. Chapecó, Argus, 2010; SELDIN, Claudia. Imagens urbanas e resistências: das capitais de cultura às cidades criativas. Rio de Janeiro, Rio Books, 2017; SELDIN, Claudia; VAZ, Lilian Fessler. Transformações espaciais através de usos temporários e culturais no Rio de Janeiro: um primeiro ensaio. Anais do XVII Enanpur. São Paulo, Anpur/FAU USP, 2017.

4
LEFEBVRE, Henri [1968]. O direito à cidade. 3ª edição. Rio de Janeiro, Centauro, 2004.

5
LEFEBVRE, Henri. O direito à cidade (op. cit.), p. 100-101

6
VAZ, Lilian Fessler; SELDIN, Claudia. Culturas e resistências na cidade. In VAZ, Lilian Fessler; SELDIN, Claudia (Org.). Culturas e resistências na cidade. Rio de Janeiro: Rio Books, 2018, p. 9-23.

7
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. Volume 1: Artes de fazer. Petrópolis, Vozes, 1994.

8
HOLSTON, James. Espaços de cidadania insurgente. Revista do patrimônio histórico e artístico nacional, n. 24, Rio de Janeiro, 1996, p. 243-253.

9
LYDON, Mike; GARCIA, Anthony. Tactical urbanism: short-term action for long term change. Washington/ Covelo/Londres, Island Press, 2015.

10
ROCHA, Ana Beatriz da; BARROS, Caio C. Azevedo; BESERRA, Ellen Rose. "Desescondendo" a cultura da Zona Oeste. In VAZ, Lilian Fessler; SELDIN, Claudia (Org.). Culturas e resistências na cidade (op. cit.), p. 157-171.

11
A Transolimpica conecta a Barra da Tijuca ao Parque Radical de Deodoro; a Transoeste conecta a Barra da Tijuca aos bairros de Campo Grande e Santa Cruz; a Transcarioca conecta a Barra da Tijuca ao Aeroporto Tom Jobim; e a TransBrasil conecta o bairro de Deodoro à estação Central do Brasil (projeto não concluído).

12
FAULHABER, Lucas; AZEVEDO, Lena. SMH 2016: remoções no Rio de Janeiro olímpico. Rio de Janeiro, Mórula, 2015.

13
BOGADO, Diana. Museu das Remoções da Vila Autódromo: resistência criativa à construção da cidade neoliberal. Cadernos de Sociomuseologia, v. 54, n. 10, 2017, p. 3-27.

14
BOGADO, Diana. Museu das Remoções da Vila Autódromo: resistência criativa à construção da cidade neoliberal (op. cit.); BOGADO, Diana et al. O Museu das Remoções na Vila Autódromo como resposta sociocultural ao caso de empreendorismo urbano do Rio de Janeiro. In VAZ, Lilian F.; SELDIN, Claudia (Org.). Culturas e resistências na cidade (op. cit.), p. 173-191.

15
MENDONÇA, Oberdan. Depoimento aos autores, 12 mai 2018.

16
Em maio de 2018, após entrevista com Oberdan Mendonça no próprio Espaço, foi proposta a criação de um questionário online que objetivava compreender quem eram os usuários do Espaço, e como eles o enxergavam.

17
ROCHA, Ana Beatriz da; BARROS, Caio C. Azevedo; BESERRA, Ellen Rose. "Desescondendo" a cultura da Zona Oeste. In VAZ, Lilian F.; SELDIN, Claudia (Org.). Culturas e resistências na cidade (op. cit.), p. 157-171.

18
SANTOS, Milton. Técnica, espaço, tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo, Hucitec, 2008.

sobre os autores

Claudia Seldin é arquiteta e urbanista, mestre e doutora em Urbanismo (Prourb FAU UFRJ/ Bauhaus-Universität Weimar), pesquisadora e professora visitante do Center for Metropolitan Studies da Technische Universitat Berlin com bolsa da Fundação Alexander von Humboldt em convênio com a Capes. Autora do livro Imagens urbanas e resistências: das capitais de cultura às cidades criativas e editora de Culturas e resistências na cidade. Ganhadora do Prêmio Capes de Teses 2016 e do VIII Prêmio Milton Santos da Anpur 2017.

Lilian Fessler Vaz é arquiteta e urbanista, mestre em Planejamento Urbano e Regional (Ippur UFRJ) e doutora em Arquitetura e Urbanismo (FAU USP). Realizou o pós-doutorado no MSH na França. Pesquisadora CNPq 1B, professora aposentada da FAU UFRJ e co-fundadora do Prourb, onde coordena o Grupo de Pesquisa Cultura, História e Urbanismo. Autora de Modernidade e moradia: habitação coletiva no Rio de Janeiro e editora de Culturas e resistências na cidade.

Caio César de Azevedo Barros é cientista social (IFCS UFRJ) e mestre em Antropologia Social (Museu Nacional / UFRJ). Foi bolsista de iniciação científica (CNPq) no Prourb FAU UFRJ e membro do Comitê Editorial da Revista Habitus. Atualmente, é bolsista de apoio técnico do GPCHU e cursa o Doutorado em Antropologia no Museu Nacional/UFRJ.

Pedro Vitor Ribeiro Costa é aluno do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU UFRJ e bolsista de iniciação científica (CNPq) no Prourb FAU UFRJ.

Thomas Ilg Gavinho é aluno do curso de graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU UFRJ e bolsista de iniciação científica (CNPq) no Prourb FAU UFRJ.

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