Em 21 de julho de 2010, o Estado de São Paulo oficializou o tombamento de 126 escolas públicas construídas entre 1890 e 1930 (1). As ações para a preservação desses prédios, contudo, tinham começado mais de vinte anos antes.
A cultura de construção de escolas públicas em São Paulo já contava, no início da década de 1980, mais de cem anos quando a extinta Companhia de Construções Escolares – Conesp – vinculada à Secretaria de Estado da Educação – solicitou colaboração ao Condephaat. O objetivo seria o de identificar e estabelecer procedimentos de intervenção em edificações existentes em sua rede.
Foi ato de visão da equipe da Conesp perceber que, dentre as centenas de prédios escolares públicos de que dispunha o Governo Paulista naquele momento, havia aqueles cujas intervenções para melhoria, conservação e adequações a novos programas de uso demandavam procedimentos especiais. A própria identificação dos prédios merecedores de cuidado e valorização era ainda muito preliminar.
Naquele momento, um desfecho feliz, do ponto de vista da salvaguarda, contribuíra para o reconhecimento da necessidade de preservação desse acervo de valor cultural: o recém tombamento (Resolução de 03/06/1976), do Escola Caetano de Campos, alma mater do projeto educacional dos governos paulistas no alvorecer da República. Situado na Praça da República, Centro de São Paulo, o prédio estivera, poucos anos antes, na iminência de ser demolido devido a demandas exageradas do Metrô para construir uma estação no local. O edifício tinha sido estabelecimento de ensino de excelência, formando alunos e professores para as escolas que passaram a ser implantadas, às dezenas, na capital e interior nas primeiras décadas do século 20.
A ameaça do desaparecimento do prédio "da Caetano", como ainda é referida a centenária escola, encontrou forte e organizada reação por parte de antigos alunos e comunidade em geral. Esse movimento acendeu um alerta sobre a necessidade de conhecer e compreender melhor o acervo de prédios escolares antigos. Naquele momento, a Conesp estava às voltas com procedimentos para a implantação urgente de dezenas de novos prédios, e também com a demanda por manutenção de todo o conjunto de construções escolares já em uso. Para os novos projetos, recorria-se a modelos, processos seriados de elaboração e de construção racional. Buscavam-se componentes reprodutíveis, módulos espaciais e procedimentos padronizados, registrados em manuais e cartilhas, a fim de atender o grande e crescente déficit de salas de aula em São Paulo. Processos e métodos de seriação que, contudo, não se aplicavam adequadamente a prédios antigos. A ideia, então, foi unir os recursos técnicos e materiais da Conesp e Condephaat para a preservação dos prédios escolares antigos.
Em 1983, o Condephaat passava por uma recente ampliação de seus quadros técnicos e tinha o Colegiado presidido por um antropólogo, Antonio Augusto Arantes. Tanto a nova equipe quanto a presidência acolheram com entusiasmo a nova tarefa, o que acabou culminando em um Termo de Cooperação Técnica entre as Secretarias de Estado da Cultura e da Educação, logo desdobrado em ambicioso projeto chamado Memória Escolar.
O Memória Escolar pretendia identificar os prédios e orientar a restauração, ampliação ou demolição de reformas anteriores equivocadas, e muito mais: colher depoimentos, identificar e valorizar objetos e coleções pedagógicas, registros fotográficos e organizar acervos. O núcleo do trabalho seria desenvolvido por equipe mista dos dois órgãos, com arquitetos e historiadores.
Em data simbólica, 25 de janeiro de 1986, aniversário de São Paulo, realizou-se a cerimônia de assinatura do projeto Memória Escolar no belo prédio da escola Padre Anchieta, antigo Grupo Escolar do Brás. Naquele momento, de redemocratização do país, foi de grande relevância e significado simbólico o fato de o Governador do Estado participar de um ato que revelava o interesse pela educação e pela preservação cultural.
O valor do conjunto foi logo reconhecido, com a abertura de um processo de tombamento de cerca de 166 prédios. Esse ato administrativo permaneceu, porém, sem conclusão por mais de vinte anos. Havia dificuldades para tal. Em primeiro, as proverbiais dificuldades materiais e de equipe do Condephaat, logo reduzida a apenas um arquiteto para dar continuidade ao projeto. Também era impeditivo o fato de que os prédios não eram conhecidos in loco, mas apenas através de documentos. Só aos poucos foram sendo visitados e avaliados materialmente.
No processo da pesquisa para a identificação, foi fundamental o acervo de projetos originais das edificações, parte do riquíssimo (e então bem organizado) arquivo do extinto Departamento de Obras Públicas – DOP. Trata-se do órgão responsável pelo projeto e construção de toda a infraestrutura do Estado de São Paulo de meados do Império, em 1864, até a década de 1990 – quando foi sumariamente extinto pelo Governador Orestes Quercia e o acesso aos documentos tornou-se dificultado e oneroso, pois cobra-se por cópias de documentos e peças gráficas para o próprio Estado que os produziu!
A base documental em exame foi constituída pelos projetos originais de prédios feitos entre a Proclamação da República até 1920; pelos Anuários Estatísticos ilustrados das gestões de ensino no mesmo período; e por Álbum Fotográfico de 1929, que documentava a rede educacional paulista (2). Foram estudados os prédios escolares projetados e construídos para a educação pública no Estado pelo Departamento de Obras Públicas entre 1890 e 1930. Essa análise gerou um conhecimento profundo sobre as construções escolares e públicas em geral, bem como sobre o programa educacional gestado em São Paulo na Primeira República.
Dos 166 prédios inicialmente quantificados sem muita precisão, 136 foram tombados pelo Condephaat, sendo a maioria em 2010: grupos escolares, escolas reunidas e ginásios. As Escolas Normais, prédios monumentais, em escala semelhantes ao até superiores à matriz da Caetano de Campos, nove prédios construídos em idades do interior paulista destacavam-se por sua magnitude. Seus tombamentos, decididos pelo Conselho ainda na década de 1980 forma sendo homologados, a maior parte ainda no século 20 (3).
Já o grande número de prédios dedicados aos primeiros anos do ensino fundamental, o que então se chamava primário e no qual ensinava-se as primeiras letras, os Grupos Escolares espalharam-se às dezenas e foram tombados em conjunto em 2010. Para serem construídos recorreu-se a soluções que se repetiam de acordo com a dimensão e demanda do município – pequenos prédios com seis salas de aula; a grande maioria no interior com a oito a dez e grandes prédios em cidades como Campinas e na Capital com até dezesseis ou vinte salas.
Foi possível também nomear, trazendo um pouco à luz, autores desconhecidos de prédios públicos paulistas construídos pelo DOP. Foram identificadas e classificadas participações de dezena de profissionais que projetaram escolas públicas. É certo que Victor Dubugras e Francisco Paula Ramos de Azevedo já vinham tendo seus nomes e produção valorizados nos meios acadêmicos há algum tempo. Mas, por exemplo, Carlos Rosencrantz, autor das magistrais Escolas Normais de Pirassununga e São Carlos, e Manoel Sabater, do belo Grupo Escolar de Amparo, por exemplo, permaneciam desconhecidos; só vieram a ter suas marcas identificadas graças às firmas nas pranchas de desenhos originais, já que os arquivos funcionais do DOP foram perdidos.
Por outro lado, não se viabilizou em sua plenitude a coleta de depoimentos e objetos pretendidos pelo Memória Escolar em cada unidade escolar. Ao longo do tempo, muito acervos escolares se perderam, mas passos significativos aos poucos vêm sendo dados em outras esferas, como no Centro de Memória em Educação Mario Covas.
Todavia, o Memória Escolar, se não se cumpriu exatamente em toda a amplitude que ambicionou, vem alcançando aos poucos os objetivos delineados décadas atrás.
Em primeiro lugar, ao longo das décadas entre a abertura dos estudos de tombamento e sua efetivação pela Resolução de 2010, qualquer reforma nos prédios passou a ser necessariamente aprovada pelo Condephaat. Esse expediente acabou por forjar procedimentos sistemáticos de análise de projetos, desenhados por meio de entendimentos informais entre os técnicos do Condephaat e os da Fundação para Desenvolvimento da Educação – FDE, fundação derivada da extinta Conesp. Passados mais de trinta anos, firmou-se, consoante um objetivo essencial do Termo de Cooperação, um conhecimento sobre como, simultaneamente, preservar aspectos fundamentais da arquitetura original desses prédios e permitir sua continuidade de uso com as exigências contemporâneas de ensino.
Esse resultado de colaboração técnica vem se realizando com competência pela FDE nas adaptações e recuperações necessárias. Os projetos organizados nesses parâmetros e orientados em manuais precisos realizados pela fundação são os que, em geral, são aprovados com mais rapidez pelo Condephaat. Portanto, o esforço para pensar recuperações e renovações dos prédios escolares criou uma cultura de procedimentos de intervenção e de representação, hoje organizados pela FDE em manuais precisos e detalhados que poderiam ter sua metodologia estendida para a preservação de bens tombados de outras procedências. A Fundação, com amplo cadastro de contratação de profissionais, também tem contribuído para a formação de mão-de-obra tanto para projetos como obras no campo específico de intervenção em edificações antigas, não apenas escolares. Reafirma-se assim a importância da preservação do patrimônio cultural, a partir do acervo identificado no Memória Escolar.
Mas era também assustadora a perspectiva de que, se tombados, os prédios implicariam a criação de mais de uma centena de novas "áreas envoltórias" – o entorno de bens no qual o Condephaat eventualmente exerce jurisdição. Isso porque, até 2003, cada bem tombado gerava automaticamente uma área definida por um raio de 300 metros a partir do respectivo lote, no interior da qual as intervenções deveriam ser analisadas previamente pelo órgão. Logo, proteger as cerca de 166 escolas significaria não apenas ampliar por volta de 50% o número de bens tombados até então, ou mesmo assumir a consequente responsabilidade legal sobre sua manutenção – lembrando-se que à época apenas se esboçavam os métodos que hoje orientam e racionalizam a realização de projetos de intervenção nessas escolas – tratava-se também de legislar sobre as transformações de áreas urbanas de dezenas de municípios paulistas. Apenas em 2003, com a possibilidade legal aberta com o Decreto 48.137 de 7 de outubro de 2003 – que possibilitou que cada bem tombado tivesse seu entorno individualmente prescrito e não mais pré-definido em 300 metros – que essa regra generalista foi revertida, e aplicada para o tombamento das Escolas da Primeira República pelo Condephaat, com prescrições espacialmente mais restritas.
O Memória Escolar também contribuiu para pesquisas visando a preservação de outros bens culturais, para além dos limites estritos das primeiras décadas da República. Criaram-se parâmetros comparativos para estudar estabelecimentos de ensino produzidos também em outros períodos. E também para avaliar prédios concebidos para outras funções.
Em anos recentes, o conteúdo e o método do Memória Escolar embasaram o estudo de prédios da Justiça e Segurança Pública no Estado de São Paulo. A partir de 2012, foi formulado o "Estudo Temático de Casas de Câmara e Cadeia e Fóruns" no Grupo de Estudos de Inventário – GEI da UPPH, com base no conhecimento gerado pelo estudo das escolas públicas. Diversos processos foram instruídos e, nos últimos quatro anos, mais de uma dezena de prédios dessa natureza teve seu tombamento efetivado pelo Condephaat em 20 municípios.
Antes disso, estabelecimentos de ensino superior, tratados em estudos específicos, beneficiaram-se do conhecimento acumulado sobre construções escolares e públicas em geral. Foram tombados pelo Condephaat, por exemplo, a antiga Escola Agrícola Luís de Queiros, (Campus da Esalq, em Piracicaba (Resolução SC-89, de 12/12/06 e Resolução SC-4, de 25/03/08); o Conjunto da Escola Politécnica (Resolução 186 de 12/12/2002) no Bom Retiro em São Paulo; as escolas fruto de benemerência, posteriormente incorporadas ao poder público como a pequena Escola do Povo de Campinas (Resolução 83 de 23/07/2015) a de São Vicente prédios que consolidaram o patrimônio da Saúde em torno do que é conhecido como Polígono da Saúde (p. Condephaat 52290/10); o Instituto Escolástica Rosa em Santos (Resolução 63 de 07/08/20); e ainda a revisão e entendimento do tombamento da Faculdade de Medicina da USP em Pinheiros, identificando todos os estabelecimentos e prédios que consolidaram o patrimônio da Saúde em torno do que é conhecido como Polígono da Saúde.
O conhecimento específico para preservação de escolas, por fim extrapolou os limites de Condephaat e Conesp/FDE. Já é significativo o número de trabalhos de graduação e pós em torno da arquitetura escolar; e pesquisas na área da história da Educação serviram também a algumas conclusões do campo da história da Arquitetura, apresentadas também em congressos (4).
Por fim, e talvez o aspecto mais importante da ação do Estado na área, o Memória Escolar resultou num reconhecimento e prestígio dos edifícios escolares pelas comunidades envolvidas, na Capital ou Interior. Houve, na verdade, um fortalecimento dos vínculos com um local de referência pessoal – a escola – cuja frequência é às vezes comum à maioria da população das pequenas cidades. Como consequência, em várias localidades ocorreu, por parte da população, um incremento na valorização cultural das escolas e, em consequência, de outros prédios de sua memória e história coletivas.
A publicação, no Diário Oficial do Estado de São Paulo de 21 de julho de 2010, da Resolução de tombamento das 126 escolas públicas foi, assim, o coroamento simbólico de um esforço de gerações pela construção de um melhor espaço escolar em São Paulo. Um reconhecimento, também, de décadas dedicadas à preservação de lugares da memória da vida de milhares de estudantes.
Em suma, pode-se dizer que, em seus objetivos gerais, o Memória Escolar se efetivou, de fato, aos poucos. Concebido como "projeto", tornou-se uma política de preservação que, a partir da perspectiva de salvaguardar prédios escolares, cumpriu uma missão inerente à que cumprem os prédios de natureza educacional: educaram. Educaram para a preservação. E se o sentido de preservação é o de legar para ajudar a construir o futuro, podemos pensar que como as sementes plantadas no início pela política educacional republicana, essa preservação frutificou.
O reconhecimento do valor cultural, simbólico e afetivo dos espaços de ensino e aprendizado de gerações foi apenas um começo de processo do qual o Memória Escolar fez parte. Já a reverberação progressiva dessas ações se dará na preservação de outros bens culturais de São Paulo.
O marco inaugural dessa preservação que salva e educa está na Praça da República: a Escola Normal Caetano de Campos, salva da demolição pelo ainda jovem Condephaat que respondeu ao clamor de seus alunos e da comunidade paulistana. Marco reconhecido como norteador de rumos posteriores do Condephaat que exigiram inovação, força e coragem. E não há marco final.
notas
1
Processo Condephaat 24929/86. Resolução 60 de 21/07/2010
2
À época foram localizados dois exemplares desse álbum da exposição em escolas como o |Grupo Escolar Rodrigues Alves, hoje perdidos. Há reprodução no acervo do Condephaat. 3ª Conferência de Educação. ESTADO DE SÃO PAULO. Edifícios Escolares. S.I., s.n., 1929. Álbum de fotografias.
3
Os prédios construídos para Escolas Normais tiveram grande impacto em suas localidades e região forma implantadas em Piracicaba, Botucatu, Campinas, Guaratinguetá, Casa Branca, Pirassununga, Itapetininga e São Carlos.
4
O processo de identificação inicialmente gerou as publicações RAMALHO, M. Lucia Pinheiro, WOLFF, Silvia Ferreira Santos. As escolas públicas paulistas na Primeira República. Projeto, São Paulo, n. 87, p. 66-71, mai. 1986 e CORREA, Maria Elisabeth Peirão Correa et al. Arquitetura Escolar Paulista 1890-1920. São Paulo, FDE, 1991. Além disso, os resultados desse trabalho foram apresentados no II Arquimemória, realizado em Belo Horizonte em agosto de 1987 e Arquimemória 4 realizado em Salvador em 2013 e em Congressos relativos à educação. Em 1992 concluiu-se na FAU USP a dissertação de mestrado defendida na FAU USP, Espaço e educação: os primeiros passos da arquitetura das escolas públicas paulistas, da qual deriva o livro WOLFF, Silvia Ferreira Santos. Escolas para a República. São Paulo, Edusp, 2010. Cumprindo um papel de divulgação de suas práticas, relatos desse trabalho foram feitos em oficinas e seminários abertos à comunidade e em aulas em faculdades de Arquitetura, História e Educação.
sobre a autora
Silvia Ferreira Santos Wolff é mestre e doutora em Arquitetura e Urbanismo com especialidade em Estruturas Ambientais e Urbanas pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Arquiteta há 34 anos na área técnica do Condephaat.