“Observamos para breve a concretização do fenômeno: A cidade é toda ela a casa do homem” (1).
“A cidade é uma casa. A casa é uma cidade” (2).
“Não há mais membranas que separam o interior do exterior: tudo é interior. Utopia final: um dia todo universo será a casa do homem, o ecúmeno vislumbrado na aurora de nossa civilização” (3).
O quadro “A rua entra na casa” (La strada entra nella casa) de 1912 do artista plástico futurista Umberto Boccioni (1892-1916) nos apresenta uma mulher que observa a cidade desde sua varanda. Nesta pintura, os limites entre varanda e rua se confundem e se diluem numa fusão de planos, perspectivas e escalas: já não é mais possível encontrar limites entre varanda e rua, indivíduo e cidade. Tal cena ilustra um tema recorrente na produção e pensamento modernista: o desejo da dissolução entre arquitetura e cidade, entre espaços público e privado (4). Este objetivo também extrapolava o campo disciplinar, arquitetura e urbanismo eram vistos pelo modernismo como um objeto único. Isto visava, também, contestar a dissociação entre cidade e edifício no pensamento acadêmico e eclético. O modernismo, por vezes, não considerava limites, sequer semânticos, entre edifício e cidade (5).
Ainda neste contexto, especificamente o modernismo brasileiro produziu algumas experiências radicais no sentido de integração entre o edifício e a cidade. Não por acaso elementos urbanos compareciam com frequência no imaginário modernista brasileiro (6). Para os arquitetos modernistas, a praça era tida como espaço de integração entre edifício e cidade, deslocando-se para o interior das edificações. Tal ideia de praça não remetia necessariamente ao logradouro tradicional das cidades brasileiras, tratava-se de um espaço idealizado, de um almejado convívio democrático, na esteira de ensaio para uma nova sociedade possível para um Brasil moderno (7).
Após Brasília o modernismo, que inicialmente se circunscrevera em experiências restritas ao âmbito da residência unifamiliar ou de apartamentos, do investimento privado ou de algumas repartições públicas (8) e quase exclusivamente localizadas nos grandes centros urbanos, passava a ter o Estado como fiador, capaz de disseminar a nova arquitetura em diversos programas por todas as regiões do Brasil (9).
Estas arquiteturas voltadas à vida citadina e chanceladas pelo Estado deslocavam-se, deste modo, para o centro da experimentação arquitetônica. O ensaio “Arquitetura e Construção” escrito em 1969 por Vilanova Artigas tinha como pano de fundo tal mudança no campo da Arquitetura e Urbanismo. Artigas ao mesmo tempo referendava a produção predecessora, eminentemente residencial, como uma experimentação propriamente urbana, ao passo que indicava a cidade como novo locus da produção arquitetônica de igual caráter:
“À medida que vão sendo substituídas velhas concepções sobre o mundo e a vida, à medida que vão sendo reorganizados os dados da realidade, tanto da realidade da natureza como da realidade da sociedade, velhas formas e símbolos arquitetônicos vão desaparecendo. Estações, bancos, estádios e pontes também vão aos poucos aceitando novos tratamentos formais para um encontro com a casa. Encontro com a casa na cidade, para construir com ela a casa da nova sociedade” (10).
Dentre os programas citados por Artigas destacavam-se arquiteturas populares relacionadas ao cotidiano dos habitantes. Numa interpretação de Heidegger, o arquiteto apontava estes locais como extensão do habitar na cidade (11). Dentre estes, a estação rodoviária despontaria como um dos mais prolíficos exemplares desta fase tardia do modernismo brasileiro, alçada, também, a elemento simbólico e monumental de um país que ainda buscava se modernizar, porém sob as contradições de seu regime militar (12).
Desde os primórdios da república um dos pilares desta pretensa modernização nacional foi a tentativa de implementação de um sistema rodoviário capaz de interligar o território nacional. Buscava-se, através da rodovia, romper com a condição de arquipélago agrário-exportador historicamente constituído no território nacional (13). Neste plano de modernização nacional composto também pela industrialização e urbanização, a estação rodoviária colocava-se como materialização espacial deste fenômeno nas cidades brasileiras.
Não parece, portanto, fortuita a decisão de Lucio Costa na implantação da Plataforma Rodoviária, “transformando o próprio centro geométrico da cidade em terminal local e interestadual; de certa maneira sendo Brasília a capital, é quase como se postulasse um centro do país” (14). Costa propunha mesclar a função do terminal rodoviário com a própria cidade, nas palavras do arquiteto a Plataforma deveria ser “o centro de diversões da cidade (mistura em termos adequados de Piccadilly Circus, Times Square e Champs Elysées)” (15).
Esta concepção urbana proposta por Lucio Costa se repetiria na construção das novas estações rodoviárias. Como aponta Hugo Segawa, a partir da década de 1960 “a estação rodoviária não era mais concebida como um espaço exclusivo para transbordo de passageiros: constituía também local de vivência e lazer, lugar de encontro para a população da cidade, oferecendo bares, restaurantes e pequeno comércio como atrativos” (16). Esta visão seria corroborada por inúmeros arquitetos, que buscavam na estação rodoviária este sentido moderno de praça como local de convivência pública.
É principalmente neste período após Brasília que o modernismo brasileiro se aproximaria mais desta ideia de praça, lançando-se como uma tipologia: a “praça coberta”. A estação rodoviária se tornaria um dos principais objetos destes ensaios de espaço misto de edifício e cidade.
Conceituando a “grande praça coberta”
A partir dos anos 1950, sobretudo após a construção de Brasília, a ideia da praça como elemento intrínseco ao edifício dominaria o imaginário modernista brasileiro. Tal conceito de praça modernista, amálgama de edifício e espaço público, contudo, não remetia à praça tradicional das cidades brasileiras. Pelo contrário, esta ideia contrastava com a produção urbana brasileira, na qual a praça desde o século 19 perdia o sentido cívico e de reunião, predominando a condição de jardim ou passeio público (17).
O modernismo arquitetônico atuava, portanto, contrapondo-se a esta supressão dos espaços de convívio público. Estas arquiteturas modernistas, desde residências até, como visto, edifícios públicos, propunham no seu programa a praça como ideal de espaço modernista. Os espaços de convívio social e circulação ganhavam destaque e uma área significativa, enquanto as funções privativas se reduziriam ao mínimo possível (18). Com a popularização do modernismo na produção de edifícios públicos, tais recursos puderam ser de fato empregados como forma de conectar edifício e cidade. Sua característica de espaço público e de convívio, tendo tal praça como ideal, visava a superação do Brasil arcaico não apenas na tecnologia da edificação, mas também apresentando-se como um modelo para a nova sociedade e organização urbana.
Apesar de a retórica da praça como forma de integração entre edifício e cidade estar presente desde o princípio do modernismo brasileiro – por exemplo, com a disposição em lâmina centralizada no lote e elevada do solo no Mesp projeto de 1936 de Lucio Costa, com colaboração de Niemeyer, Reidy, Carlos Leão, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira, configurando uma praça construída (19) – é a partir da década de 1950 que este imaginário se tornaria mais radical. Isto coincidiria com o projeto e construção e Brasília e ao mesmo tempo com o protagonismo do brutalismo e da dita escola paulista no cenário nacional, propondo edifícios cada vez mais próximos do imaginário modernista de “praça coberta”.
As experimentações residenciais paulistas constituem alguns interessantes primeiros esboços desta condição de edifício-cidade centralizado na figura da praça como elemento estruturador da experiência arquitetônica (20). Nestas obras o espaço de sociabilidade indica uma integração entre espaço interno e externo. A praça passava, então, a fazer parte explicitamente do léxico modernista, sendo empregada para descrever o funcionamento do próprio edifício.
Se até Brasília o modernismo como forma de produção do espaço público estava restrito a certos nichos sociais e culturais, principalmente as grandes metrópoles, os anos 1960 e 1970 marcaram a expansão do modernismo em todas as regiões do Brasil e em cidades de distintos tamanhos.
Fruto desta expansão do modernismo, numa forma que em muito remete à produção residencial, o Fórum de Avaré projetado por Paulo Mendes da Rocha, obra construída em 1962, como uma edificação horizontal elevada do solo, cujo jogo de rampas indica uma continuidade do espaço urbano no seu interior. Nas palavras do próprio arquiteto, “o edifício do Fórum de Avaré é essencialmente uma praça coberta, um abrigo para a população que o utiliza, vinda em grande parte de regiões distantes e ali podendo permanecer por um longo tempo” (21).
Tal condição se repete no Museu de Arte de São Paulo – MASP de Lina Bo Bardi, projetado em 1961 e construído em 1968, estabelecendo um diálogo com o Museu de Arte Moderna (MAM) de Affonso Reidy (22), porém numa realidade ainda mais inserida na malha urbana (23). Lina projetou a praça coberta como elemento simbólico do edifício, um hiato de espaço público entre o bloco suspenso da pinacoteca e o subsolo semienterrado do auditório e restaurante (24). O famoso vão livre do MASP, no contexto do déficit de espaço público urbano, insere-se como um exemplo de sucesso desta apropriação democrática do espaço público do edifício, configurando-se, de fato, como uma importante praça urbana de São Paulo.
Diante da radicalização do imaginário modernista do edifício como praça coberta, o pavilhão do Brasil na Expo 70 em Osaka, projetado por Paulo Mendes da Rocha, Júlio Katinsky, Ruy Ohtake e Jorge Caron, serve como síntese deste ideal de arquitetura na sua máxima expressão, transformado em tipologia arquitetônica. Nesta obra a cobertura se inseria como objeto independente que não encerrava o espaço – não havia nenhuma barreira física entre o espaço urbano e a arquitetura. O programa do pavilhão era locado numa topografia construída através de ondulações no terreno, as quais também apoiam, em parte, a grelha iluminada de concreto armado que serve de cobertura. Flávio Motta aponta o sentido desta arquitetura como resistência de um imaginário moderno:
“O piso será o mesmo asfalto que se prolongará nos caminhos da Expo-70, como um único revestimento: um caminho ininterrupto e sem barreiras, que ainda está na esperança de muitos. Chegar-se-á ao Pavilhão do Brasil, gradativamente, para então se dar conta que a maior diferenciação se faz na cobertura, “vazada de luz”, e não na sua base” (25).
Tomando o pavilhão de Osaka como exemplo, a “praça coberta” enquanto tipologia arquitetônica, portanto, poderia ser conceituada pela independência da cobertura em relação ao edifício. O espaço coberto e o exterior não teriam barreiras físicas, caracterizando a infiltração do espaço público no interior da área coberta. Em seu interior prevaleceriam as áreas de convívio, reduzindo-se as áreas privativas ao mínimo possível. O edifício constituído pelo aproveitamento da situação topográfica em que se insere, seria majoritariamente térreo, no máximo aproveitaria, justamente, desníveis no terreno natural para implantação de múltiplos pavimentos ou subsolos, sempre em contato com o espaço público.
Diante da amplificação da produção modernista em território nacional (e internacional como era o caso do pavilhão da Expo 70) nas décadas de 1960, 1970 e 1980, os arquitetos aplicariam em larga escala a ideia de praça coberta como modelos de espaço público, numa condição similar à apresentada no pavilhão de Osaka. Com uma grande demanda e um programa relativamente aberto, a estação rodoviária foi um dos grandes objetos de ensaios da arquitetura como “praça coberta”, repercutindo-os em todo o território nacional.
As estações rodoviárias modernistas e o imaginário da “grande praça coberta”
A proposta não construída de Vilanova Artigas para a rodoviária de Jundiaí de 1968 apresenta a estação rodoviária como uma praça coberta propriamente dita. Neste projeto Artigas propunha a estação como um edifício isolado de sua função primária: os ônibus parariam para embarque e desembarque na rua sob um viaduto existente. Com isto a estação se limitaria a uma grande laje plana com um vazio central. Esta laje abrigaria uma praça térrea, aberta para a cidade e resguardada por um jardim e um espelho d’água. Sob este espaço público, o subsolo iluminado pelo vão central comportaria as bilheterias, os comércios e serviços, bares e restaurantes.
Poucos anos mais tarde esta tipologia seria retomada por Vilanova Artigas. Na estação rodoviária de Jaú de 1973 o arquiteto propunha o programa na área central da cidade, ligando uma cota alta e uma cota baixa da cidade. Do seu ponto mais alto a estação se apresenta como uma enorme laje plana que paira sobre uma praça aberta. Esta relação de abertura com o espaço público continua no jogo de rampas que levam à cota mais baixa. No pavimento intermediário a ligação entre edifício e cidade é feita através dos jardins lindeiros e no térreo há uma conexão direta com a rua e o eixo central da cidade eclética. Os ônibus atravessam o edifício em sua cota média, sem interromper o fluxo de pedestres, como se uma rua da cidade adentrasse a rodoviária de forma até singela dada a escala do edifício.
A rodoviária de Jaú, a exemplo de tantas outras rodoviárias modernistas, não se restringe ao funcionalismo estrito. Sendo um edifício público de caráter urbano, a rodoviária serve não apenas aos passageiros, mas também à população da cidade como apontava Artigas no memorial publicado na revista Módulo:
“Nas cidades médias do estado de São Paulo, principalmente nas mais antigas, o lazer de suas populações é, quase sempre, esquecido, havendo falta de hotéis, restaurantes, parques, etc.
As estações rodoviárias, por isso, funcionam como ponto de convergência para onde se dirige grande parte de sua população em seus justos momentos de lazer” (26).
Artigas tinha, portanto, no projeto de Jaú a mesma intenção urbana e simbólica que Lucio Costa empregara no projeto da Plataforma Rodoviária de Brasília. O exemplo de Jaú, quando comparado com o projeto de Vilanova Artigas de 1952 para a Rodoviária de Londrina também demonstra esta inflexão no papel da estação rodoviária. Se em Londrina Artigas prenunciava a estação rodoviária como espaço central e um pano de fundo para o ensaio técnico e estético, o fator urbano tomava novas proporções em Jaú.
De fato, a integração urbana, à parte o papel simbólico e monumental, tornava-se um objetivo principal nos projetos e obras de estações rodoviárias nas décadas de 1960, 1970 e início dos anos 1980. Reiterando o exemplo da Plataforma Rodoviária de Brasília, estas arquiteturas apresentavam um programa ampliado, com espaço público para a população, comércio e serviços, além de abrigo de embarque e desembarque. Seguindo o imaginário modernista, a praça, como visto, tornava-se referência simbólica desta integração entre edifício e cidade. Nos memoriais da Rodoviária de Santos de Flávio Pastore e Luigi Villavechia publicados na revista Acrópole em 1967 e 1970 era posto novamente o caráter central da rodoviária na vida urbana e sua integração com o espaço público a partir da praça:
“A necessidade de um planejamento e ordenação do tráfego, bem como a concentração num único local dos transportes coletivos intermunicipais e interestaduais, tornam a estação rodoviária no planejamento de nossas cidades um centro de grande importância, quer pela sua função primária, quer pelos atendimentos e pontos de interesse que para ela convergem” (27).
A estação é um ‘abrigo’ marcado por uma grande cobertura que limita um espaço aberto e dá continuidade à praça. O mesmo piso da praça ‘atravessa’ sob a cobertura em planos de diferentes cotas, definindo e marcando as atividades da estação” (28).
No projeto de Benno Perelmutter e Marciel Peinado para a Rodoviária de São Carlos (Figura 05) de 1978, a ideia de uma “praça coberta” como intenção de projeto era descrita no memorial de projeto publicado na revista Projeto:
“O partido adotado foi o de uma “grande praça” coberta, executada em estrutura de concreto armado, com vãos de 13 m e balanços de 12,5 m, coberta por placas pré-moldadas de concreto protendido de 13 x 2,5 m, intercalados por material transparente. Sob a “grande praça”, em quatro níveis diferentes, desenvolvem-se todas as atividades do Terminal, harmonizando correta e adequadamente as atividades da estação” (29).
Novamente, tal qual o exemplo do pavilhão brasileiro da Expo 70, a ideia de praça coberta se revelava pela independência entre cobertura e o térreo. O partido adotado para a solução estrutural e espacial em São Carlos foi a implantação de sucessivos pórticos modulares de concreto armado aparente moldado in loco, suportes para um sistema de cobertura em lajes pré-fabricadas. Esta estratégia de projeto repetiu-se pelo Brasil, além de São Carlos, nas obras das rodoviárias de Santos, Amparo (Perelmutter e Peinado, 1979), Taubaté (1982, arquiteto Sami Bussab), Curitiba (1972, arquiteto Rubens Meister), Joinville (1974, arquiteto Rubens Meister), João Pessoa (1977 arquitetos Glauco Campello e José Luís Pinho), Aracaju (1976, arquitetos Emmanuel Berbert e José Alvares Peixoto) entre outras.
Uma variação desta composição espacial modular empregada na construção das estações rodoviárias foi a utilização de um módulo estrutural autônomo como gerador do espaço. Exemplos desta abordagem específica são os projetos definidos pelos módulos paraboloides hiperbólicos ou em lajes inclinadas como em Fortaleza de Marrocos Aragão (1973), Guarujá de Fábio Serrano e Teresina de Raimundo Dias (1983). Na rodoviária de Uberlândia, projeto de Fernando Graça, Flávio Almada e Ivan Cupertino também adotou-se um projeto modular autônomo com grandes meias-canas em concreto armado, dispostas em linha. Nestes projetos o interstício entre módulos é aproveitado para a entrada de iluminação zenital. Estas estratégias projetuais que consideram a modulação estrutural como cerne da configuração espacial, sugerem inclusive uma flexibilidade programática: edifícios expansíveis e projetos de escala urbana, que poderiam ser utilizados em diversas situações a depender da quantidade de elementos justapostos (30).
Ao longo dos anos 1980 e 1990 a noção arquetípica de “praça coberta” arrefeceu, bem como o programa da estação rodoviária, que em parte chegava ao seu limite, difundido em inúmeras cidades pelo Brasil. Este fenômeno também refletia o paulatino fim da hegemonia da fusão entre arquitetura e Estado na difusão de arquiteturas públicas modernas.
À parte a redução na produção pública de arquitetura, as poucas estações rodoviárias que se produziram desde então sinalizam em sua maioria uma direção oposta às propostas modernistas. Perde-se o sentido de praça coberta, ao passo que tais edifícios se prendem a uma visão funcionalista estrita do espaço, como abrigo para os passageiros, centrado na função de embarque e desembarque (31). Exemplo disto são os terminais rodoviários do Tietê (1982) e Barra Funda (1988) em São Paulo, o térreo destes edifícios é inacessível aos pedestres. Não há contato direto com a rua, o acesso se dá por passarelas elevadas que negam a relação entre espaço público e a cobertura.
Considerações finais
Nas paredes externas da Galeria Praça do Instituto Inhotim um mural em relevo de escala 1:1 dos artistas plásticos John Ahearn e Rigoberto Torres demonstra a realização e a sobrevivência do imaginário da estação rodoviária como espaço público de convívio. Na descrição da obra:
“O mural “Rodoviária de Brumadinho” (2005) representa a estação rodoviária de Brumadinho e as pessoas que passam por ela, um lugar que é não apenas um terminal de transporte mas também centro de vida social, pois nele se apresentam grupos de danças populares” (32).
Décadas após seu apogeu, o imaginário da estação rodoviária como “praça coberta” ainda sobrevive, sejam nas cidades brasileiras de distintos portes que ainda conservam estas obras das décadas de 1960, 1970 e 1980, como, por exemplo, a Rodoviária do Guarujá do arquiteto Fábio Serrano, reformada em 2004.
Vislumbra-se, recentemente, uma retomada possível do sentido público da cidade e de seus edifícios, nos quais seria possível uma representatividade urbana e uma fruição livre, ao contrário dos espaços herméticos e privados que dominam a produção contemporânea. Neste sentido, os desejos de cidade moderna representados nas estações rodoviárias permanecem latentes no imaginário popular, demonstrando a necessidade de um novo olhar sobre este conjunto de obras. Lucio Costa ao revisitar a Plataforma Rodoviária nos anos 1980 enxergava com otimismo este potencial de ressignificação:
“Em vez daquele centro cosmopolita requintado que eu tinha elaborado, [a Plataforma] tinha sido ocupada pela população periférica, a população daqueles candangos que trabalham em Brasília. Era o ponto de convergência, onde eles desembarcavam e havia então esse traço de união, era um traço de união entre a população burguesa, burocrata e a população obreira que vivia na periferia [...]. Foi o Brasil de verdade, o lastro popular que tomou conta da área. Isso deu uma força enorme à Capital, me fez feliz de ter contribuído involuntariamente para essa realização” (33).
notas
NA – Este trabalho foi originalmente apresentado no evento XXIII Congresso Arquisur. Belo Horizonte, 03 out. 2019
1
CARVALHO, Flávio de (1938). A casa do homem do século 20. In XAVIER, Alberto (Org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p. 53
2
ARTIGAS, João Batista Vilanova (1969). Arquitetura e Construção. In ARTIGAS, João Batista Vilanova. Caminhos da arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 119
3
KATINSKY, Júlio Roberto. Vilanova Artigas: a invenção de uma arquitetura. São Paulo, Instituto Tomie Ohtake, 2003, p. 224-227
4
Sentimento traduzido também no texto de 1914 Glassarchitektur de Paul Scheerbart (1863-1915), poeta vinculado ao expressionismo alemão: “We live for the most part in closed rooms. These form the environment from wich our culture grows. Our culture is to a certain extent the product of our architecture. If we want our culture to rise to a higher level, we are obligated, for better or for worse, to change our architecture. And this only becomes possible if we take away the closed caracter from the rooms in which we live”. SCHEERBART, Paul; TAUT, Bruno. Glass architecture and Alpine architecture. New York, Praeger, 1972, p. 41
5
“Today modern architects know that buildings cannot be conceived as isolated units, that they have to be incorporated into the vaster urban schemes. There are no frontiers between architecture and town planning, just as there are no frontiers between the city and the region. Correlation between them is necessary. Monuments should constitute the most powerful accents in these vast schemes”. SERT, Josep Lluis; LÉGER, Fernand; GIEDION, Siegfried (1943). Nine Points on Monumentality. In GIEDION, Siegfried (Org.). Architecture you and me: diary of a development. Cambrigde, Harvard Universty Press, 1958, p. 49.
6
Entende-se por imaginário o campo das ciências humanas que estuda as interações entre imagens físicas e mentais. No modernismo isto é particularmente importante, pois sua obra construída de fato possui uma grande relação com textos, desenhos e manifestos – a soma destes constituiria imaginários modernistas. “Essa acepção mais ampla de imaginário acrescenta, ao mundo mental da imaginação, o conjunto de todas as suas expressões materiais, bidimensionais e tridimensionais. No caso da arquitetura, cidades, edifícios e objetos, inclusive. Nesse sentido, o termo imaginário se coloca como síntese que dissolve os limites convencionais entre mundo mental e mundo real, entre ideias e formas sensíveis”. ROZESTRATEN, Artur. Representação do projeto de arquitetura: uma breve revisão crítica. Pós. Revista do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, v. 16, n. 25, p. 252-270, São Paulo, jun. 2009.
7
“Entre a melancolia do pós-guerra europeu e o simultâneo otimismo nacional-desenvolvimentista brasileiro, os arquitetos iludiram-se com as possibilidades de transformação do Brasil rumo ao progresso e ao atendimento das necessidades sociais. [...] A arquitetura deveria ensaiar modelos de espaços para uma sociedade democrática, atendendo aos anseios da maioria da população. Para esses arquitetos, a cidade era concebida como um espaço democrático, espaço de convivência, de encontro”. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil: 1900-1990. São Paulo, Edusp, 2014, p. 151.
8
Esta mudança de natureza e escala dos projetos é apontada também por Oscar Niemeyer em seu artigo “O problema social na arquitetura” de 1955, “[...] exercemos durante vinte anos a nossa profissão, limitada em geral a casas burguesas, construções para o governo, edifícios de renda e alguns conjuntos residenciais”. NIEMEYER, Oscar (1955). O problema social na arquitetura. In XAVIER, Alberto (Org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo, Cosac Naify, 2003, p. 185.
9
Como aponta Adrián Gorelik no livro “Das vanguardas a Brasília: cultura urbana e arquitetônica na América Latina” Estado e modernismo arquitetônico participavam de uma entente mútua em torno da modernização nacional. GORELIK, Adrián. Das vanguardas a Brasília: cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2005. Todavia, no âmbito regional, estas experiências modernistas que culminaram com a construção de Brasília se manifestariam tardiamente. Como explica Miguel Buzzar et al. no estado de São Paulo, por exemplo, o poder público só aderiria plenamente ao modernismo a partir do Plano de Ação do Governo Carvalho Pinto (1959-1963) BUZZAR, Miguel Antonio; CORDIDO, Maria Tereza Regina Leme de Barros; SIMONI, Lucia Noemia. A arquitetura moderna produzida a partir do plano de ação do governo Carvalho Pinto-Page – (1959/1963). Arq. Urb. São Paulo, n. 14, p. 157-170, jul./ dez.
10
ARTIGAS, João Batista Vilanova (1969). Op. cit., p. 119.
11
“Na autoestrada, o motorista de caminhão está em casa, embora ali não seja a sua residência; na tecelagem, a tecelã está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Na usina elétrica, o engenheiro está em casa, mesmo não sendo ali a sua habitação. Essas construções oferecem ao homem um abrigo. Nelas, o homem de certo modo habita e não habita, se por habitar entende-se simplesmente possuir uma residência”. HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar, pensar. Darmstadt, 1954 <https://bit.ly/39Tvi5i>.
12
As contradições entre moderno e arcaico que culminaram como o regime militar em 1964 são descritas por Florestan Fernandes em A revolução burguesa no Brasil. FERNANDES, Florestan. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro, Zahar, 1975, p. 176.
13
HUERTAS, Daniel M. Território e circulação: transporte rodoviário de carga no Brasil. Tese de Doutorado. São Paulo, FFLCH USP, 2013, p. 14.
14
ZEIN, Ruth Verde. Terminais urbanos: locais de destaque na paisagem. Projeto. São Paulo, n. 94, 1986, p. 70.
15
COSTA, Lucio. Memorial do Plano Piloto, 1957. In BRAGA, Milton. O concurso de Brasília: sete projetos para uma capital. São Paulo, Cosac Naify, 2010, p. 169.
16
SEGAWA, Hugo. Op. cit., p. 168.
17
OBBA, Fábio; MACEDO, Silvio. Praças Brasileiras: public squares in Brazil. São Paulo, Edusp, 2002, p. 16-17.
18
No ensaio “A casa-praça”, que poderia ser transladado para todos os programas modernos, publicado por Ruy Ohtake na Revista Módulo, n. 80 de 1984 o arquiteto aponta: “A intenção básica da casa-praça é a convivência humana, valorizando os espaços de uso coletivo. Parece ser esta uma síntese da visão contemporânea de convivência, isto é, integrada e aberta. [...] Na casa, a redução das áreas privativas, chegando a um mínimo necessário, e, também a redução das áreas de serviço por soluções compactas transferem ao espaço-praça áreas que tornam o espaço comum mais rico”. OHTAKE, Ruy. A casa-praça. Módulo. Rio de Janeiro, n. 80, mai. 1984, p. 65.
19
WISNIK, Guilherme. Lucio Costa. São Paulo, Cosac Naify, 2001, p. 52.
20
Sejam residências unifamiliares ou edifícios de apartamentos, como é o caso do Edifício Louveira (1946) de Vilanova Artigas, cujo embasamento sugere a continuidade da Praça Vilaboim para o interior do lote.
21
ARTIGAS, Rosa (Org.) Paulo Mendes da Rocha. São Paulo, Cosac Naify, 2000, p. 138.
22
BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Brasil: arquiteturas após 1950. São Paulo, Perspectiva, 2010, p. 57-61.
23
Por comparação, o MAM está inserido no Aterro do Flamengo, este numa condição de buffer entre a cidade e o edifício; enquanto o MASP está implantado diretamente na Avenida Paulista.
24
OLIVEIRA, Olivia de. Lina Bo Bardi: sutis substâncias da arquitetura. São Paulo, Barcelona, Romano Guerra, Gustavo Gili, 2006, p. 259.
25
MOTTA, Flávio. Arquitetura brasileira para a Expo’ 70. Acrópole. São Paulo, n. 372, abr. 1970, p. 25-26.
26
ARTIGAS, João Batista Vilanova. Apud IWAMIZU, Cesar Shundi. A estação rodoviária de Jaú e a dimensão urbana da arquitetura. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FAU USP, 2008, p. 25.
27
PASTORE, Flávio; VILLAVECCHIA, Luigi. Estação rodoviária de Santos. Acrópole. São Paulo, n. 341, jul. 1967, p. 30.
28
PASTORE, Flávio; VILLAVECCHIA, Luigi. Estação rodoviária de Santos. Acrópole. São Paulo, n. 374, jun. 1970, p. 27.
29
PERELMUTTER, Benno; PEINADO, Marciel. Terminal rodoviário intermunicipal de passageiros de São Carlos. Projeto. São Paulo, n. 36, dez./ jan. 1981/1982, p. 12.
30
BASTOS, Maria Alice Junqueira; ZEIN, Ruth Verde. Op. cit., p. 96.
31
O caso do Terminal Rodoviário do Tietê, inaugurado em 1982, é exemplar desta revisão do papel das estações rodoviárias, bem como das demais obras públicas, conforme segue o memorial: ”Considerando que um terminal rodoviário abriga duas funções bem específicas: embarque e desembarque, nosso projeto é basicamente composto por dois blocos distintos – o de embarque e o de desembarque – e um anexo para o conjunto de salas técnicas e escritórios para as empresas transportadoras”. VIEGAS, Renato; MACFADEN, Roberto; KASSARDJIAN, Dicran; HADLICH FILHO, Arno. Terminal Rodoviário Tietê integrado ao Sistema de Metrô. Projeto. São Paulo, n. 40, mai. 1982, p. 58. No exemplo da nova Rodoviária Interestadual de Brasília, projeto de 2010, segue-se a ideia de rodoviária como edifício de uso exclusivo de passageiros: “Como nos aeroportos, somente os passageiros têm acesso ao embarque e ao desembarque. Quem precisar enviar ou receber uma encomenda segue diretamente para o terminal de cargas”. REIS, Luís Antônio Almeida; CORBIOLI, Nanci; ALMEIDA, Maria Eduarda Vasconcelos de; ARAUJO, Allan Arnaldo de; RODRIGUES, Luiz Otávio Alves. Chapéu metálico sobre a rodoviária: Terminal Rodoviário Interestadual, Brasília, DF. Projeto Design. São Paulo, n. 376, jun., 2011, p. 74-81.
32
John Ahearn – Rigoberto Torres. Instituto Inhotim <https://bit.ly/3i6rVuC>.
33
COSTA, Lucio. Apud ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Lucio Costa e a Plataforma Rodoviária de Brasília. Arquitextos, São Paulo, ano 10, n. 119.03, Vitruvius, abr. 2010 <https://www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/10.119/3371>.
sobre o autor
Diogo Augusto Mondini Pereira é arquiteto e urbanista formado pela FAU USP em 2014, mestrando desde 2018 na mesma instituição e bolsista Fapesp. Pesquisador associado ao Grupo de Pesquisa CNPq "Representações: Imaginário e Tecnologia" (RITe) vinculado ao Centre de Recherches Internationales sur L'Imaginaire CRI2i.