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research

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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
O artigo parte de algumas ideias expostas por Michel Foucault e tenta lançar as bases de uma “arqueo-genealogia” do urbanismo no Brasil.

english
This paper presents some ideas expounded by Michel Foucault and tries to lay the foundations for an "archaeo-genealogy" of urbanism in Brazil.

español
El artículo parte de algunas ideas expuestas por Michel Foucault e intenta sentar las bases de una "arqueo-genealogía" del urbanismo en Brasil.


how to quote

FERRAZ, Fernando Gigante. Cidade e familialismo. Por uma arqueo-genealogia do urbanismo no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 244.00, Vitruvius, set. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.244/7874>.

H Johann Moritz Rugendas, Habitação de negros
Imagem divulgação

Não se trata aqui de retomar diretamente os argumentos de Michel Foucault quanto às formas de exercício do poder de soberania e poder disciplinar, e principalmente sobre os conceitos seminais de “biopolítica” e “biopoder”, tão pouco de insistir na intrinsecabilidade entre as produções discursivas e as práticas de poder de um determinado período histórico, visto que a recepção dessas ideias no Brasil é já bastante conhecida. No entanto, algumas palavras se fazem necessárias.

Os conceitos de biopolítica e de biopoder aparecem na reflexão foucaultiana a título de desdobramento de sua genealogia dos micropoderes disciplinares. Aos olhos de Foucault, a redução das estruturas de poder ao campo econômico e a concentração das análises marxistas e liberais do poder na figura jurídica do Estado seriam responsáveis por uma carência de análises que permitissem vislumbrar outras formas de exercício do poder, desprovidas de um centro único e primordial. A estratégia investiga as relações de poder em seu próprio exercício, tendo como objetivo capturá-las na materialidade de seu jogo.

Sob certa influência de Nietzsche, para quem não existem fatos puros, mas apenas interpretações de uma sintomatologia constituída historicamente, a genealogia do poder deve ser entendida como uma análise das relações de poder em seu caráter histórico e produtivo. A crítica ao “sujeito constituinte” mostra que o sujeito é sempre constituído historicamente por um jogo simultâneo entre a constituição dos saberes, dos discursos e dos domínios de objetos. Quanto à perspectiva da análise da relação entre saber e verdade seu objetivo não foi o de discriminar o que provém da verdade ou da cientificidade em um discurso, mas de estudar os “efeitos de verdade no interior de discursos que não são em si nem verdadeiros nem falsos” (1). Não há verdade “fora” do poder ou “sem” poder. A verdade é sempre produzida no interior de um campo de forças. Ademais o poder não seria uma substância que alguém deteria em algum lugar. O poder é sempre plural e relacional, exercendo-se em práticas heterogêneas e sujeitas a transformações no interior de instituições sociais determinadas. Tais observações colocam em questão as concepções jurídico-políticas do poder como instância unificada na forma Estado. Não se quer com isso diminuir a importância do poder do Estado, quer-se enfatizar o fato de que durante todo o século 19 a conjunção de micropoderes disciplinares com uma série de intervenções e controles reguladores (que Foucault denomina “biopolítica da população”) tomam a vida como alvo principal do poder. Não se trata somente de regrar comportamentos individuais, mas de normalizar a conduta da espécie, bem como de manipular, incentivar e observar fenômenos de população: tais como as taxas de natalidade e mortalidade, as condições higiênicas e sanitárias das grandes cidades, a duração e as condições da vida etc. A partir do século 19, mais do que disciplinar as condutas individuais, cabe ao biopoder o gerenciamento planificado da vida das populações. O que se produziu pela atuação da biopolítica não foi somente um indivíduo dócil e útil, mas a própria gestão calculada da vida do corpo social. Nossa hipótese nesse artigo é de que no Brasil oitocentista, caberá à medicina social-higienista parte substancial dessa tarefa.

Um dos dois mais importantes e ambiciosos objetivos da medicina social-higiênica emergente no século 19 será a produção de um novo tipo de indivíduo e de população necessários à emergência, por um lado, de uma sociedade industrial capitalista e, por outro, contribuir para o aumento e eficácia do poder estatal. A medicina social irá se esforçar por demonstrar que no social, tudo, ou quase tudo, tem relação com a saúde. Apresentando-se como “protetora” do homem contra os perigos físicos e morais que ele mesmo representa para si, a medicina se constituirá como uma das mais importantes instâncias de controle da vida social oitocentista.

Identificando-se com as ideias de civilização, progresso, modernidade etc., a medicina social tentará se mostrar como a “pedagogia apropriada” para a construção do cidadão, isto é, do indivíduo moderno, liberal, liberto das penumbras da ignorância, que conviverá harmoniosamente com seus concidadãos. A medicina irá contribuir, com sua racionalidade, assim pensam os médicos, para elevar a sociedade ao registro da civilidade, modernidade, liberdade, democracia etc.

A atenção dada às cidades pela administração portuguesa durante a Colônia, se deve basicamente ao fato delas terem se tornado focos de rebelião popular, mesmo que tenhamos de admitir períodos com maior ou menor recrudescimento desse processo. De qualquer sorte, em linhas gerais, a desordem urbana decorrente das lutas políticas e econômicas, travadas entre os interesses da metrópole e os da colônia, vinha se intensificando desde meados do século 18. A metrópole, legislando através das Ordenações e punindo de forma violenta as infrações (açoite, exílio, enforcamento etc.), nunca conseguiu debelar a desordem urbana que o século 19 receberá intacta (2). A cidade era um verdadeiro caos, incontroláve pelo aparelho jurídico-policial, não tanto pela sua falta de autonomia, submissa que era aos interesses das grandes famílias, mas pela própria ineficácia do mecanismo punitivo, no qual a ideia de prevenção ainda não está colocada. Além disso, a cidade se torna mais e mais o centro do comércio e da produção econômica e também sede do poder político central, isto faz com que se torne imperiosa a construção de um funcionamento ordenado de seus diversos setores. Em razão da ineficácia do dispositivo jurídico-policial, outros mecanismos de controle serão solicitados, abrindo, assim, espaço para a entrada em cena da “racionalidade médica”, vista como um mecanismo alternativo a esta ineficácia. O saber médico sobre a cidade reconhecia como perigos virtuais para a saúde da cidade, e por decorrência da população, duas causas: as naturais e, principalmente, as sociais. A primeira, que se detém nas questões dos acidentes geográficos, no clima, na condição das águas e do ar etc., será responsável pela intensa participação da medicina higienista nas grandes transformações urbanas ocorridas no período. Os médicos eram chamados a opinar em um sem-número de questões urbanas: alinhamento de ruas e construção de esgotos, aterros e saneamento de pântanos; por exemplo, no caso específico do Rio de Janeiro, participaram ativamente na querela que durante décadas a cidade assistiu a respeito da destruição do Morro do Castelo, vista como uma intervenção que melhoraria a aeração urbana etc. Muito se disse e se escreveu sobre essas problemáticas, nos deteremos nesse texto com mais atenção na segunda dessas causas: a social.

Para os médicos oitocentistas, o homem é o principal responsável pela desordem urbana. No dizer de Kátia Muricy, o homem se faz

“Agente e vítima de um relacionamento social irracional, determinado por paixões e instintos cegos, causa primeira da corrupção dos costumes, da criminalidade, da decadência da civilização. Os indivíduos, mistura heterogênea e corruptora de componentes naturais e sociais, constituíam uma ameaça virtual ao Estado. O meio urbano, o indivíduo da cidade aparecem, para a medicina, como existência hostil, exigindo um controle racional, eficaz e transformador” (3).

Dentro de uma ampla estratégia de medicalização e normalização do espaço urbano, a medicina social-higienista terá na família um de seus alvos mais importantes. Essa constatação é central para nossos propósitos nesse texto. A racionalidade médica brasileira, inspirada que era no ideal racionalista e humanista dos médicos franceses, via nos altos índices de mortalidade infantil e nas péssimas condições de saúde e higiene dos adultos um atestado de incapacidade da família oitocentista em preservar a vida de seus membros. Os médicos alegavam que a falta de informações higiênicas, o modus alimentar precário, o aleitamento das crianças pelas escravas (as mães de leite), a desproporção entre as idades dos cônjuges, as doenças venéreas (principalmente a sífilis) dos pais e das nutrientes etc., justificavam a necessidade de uma pedagogia médica, inspirada em preceitos sanitários e científicos distantes das noções médicas pré-experimentais e filosóficas da Colônia, capaz de transformar a família pela exigência de sua adequação às normas higiênicas.

Essa estratégia é posta em marcha, mas não sem resistência por parte das famílias. O Estado brasileiro sempre encontrou na família um dos mais fortes empecilhos à sua consolidação. Durante toda a época colonial, a contenda entre Estado e família seguia um mecanismo estritamente punitivo e legal, jurídico-policial em última instância. A cada insubordinação do poder familiar, centrado no poder paterno (patria potestas), era desencadeado o teatro do poder soberano, acompanhado de toda a sua simbologia faustuosa e de gládio. A cada insurgência sua, o poder familiar era fulminado. Segundo Freire Costa,

“A máquina repressiva agia nos períodos de crise, através da confrontação direta buscando a vitória, o extermínio ou a rendição. Em épocas de paz o compromisso mantinha de modo latente os interesses antagônicos até que novo paroxismo desencadeasse uma outra ofensiva. A geografia do poder facilitava a manutenção desta distância crítica. A administração isolava-se no litoral e as famílias na zona rural. No final do período colonial a cidade aproximou os opositores, e os conflitos passaram a ser constants” (4).

A medicina higienista receberá a herança desta oposição entre Estado e família; sua função será neutralizar o poder familiar ou, no mínimo aproximá-lo das “razões de Estado”. Esta estratégia passará inicialmente pela higienização das cidades, a qual esbarrará freqüentemente nos hábitos e condutas da tradição do poder familiar que se negava sistematicamente a subordinar-se aos objetivos do Governo. “A reconversão das famílias ao Estado pela higiene”, sustenta Freire Costa, “tornou-se uma tarefa urgente dos médicos” (5).

A política repressora, além da sua ineficácia, não se harmonizava com a ideologia humanista liberal das liberdades individuais. A Europa do século 19 assistia a um tipo de exercício do poder bem mais eficaz e, sobretudo, mais adequado às ideias do pensamento liberal. Assim, a medicina higienista, que detinha uma estratégia de poder mais sutil, pôde atuar como auxiliar na política de transformação das famílias em função das “razões de Estado”. A família não poderia ser tratada como um adversário político-militar, dever-se-ia, sim, tentar, de maneira sutil, desestabilizar seu poder. Rompendo com a tradição punitiva da Colônia, a medicina higienista põe em marcha determinadas táticas de assalto à família que, segundo Freire Costa, obedecia às seguintes regras: 1) em lugar de provocar o bloqueio externo, provocar a distensão; proliferar em vez de reduzir; diversificar ao invés de unificar, criar interesses contraditórios entre os seus membros; não mais considerá-la um bloco único em torno do poder paterno, mas uma miríade de interesses distintos uns dos outros: adultos e crianças, homens e mulheres, pais e filhos etc.; 2) em vez da ameaça de destruição, saque, confisco; promessa de transformação. Não se trata de por em cena o teatro faustuoso do gládio; trata-se, sim, de “mostrar os ganhos e benefícios que podiam ser extraídos da prática de sujeição”; 3) ao invés de cultivar o medo da morte, alimentar o gosto pela vida. O importante é demonstrar que a sujeição tem um prêmio: “a persistência da prole, o prolongamento da saúde, a felicidade do corpo”; por fim, 4) em vez de entender todos os membros da família como inimigos, perceber os aliados e convertê-los à estratégia seguida (6).

Assim, as “luzes” dos lampiões urbanos e a modernidade médica se confrontarão, na administração urbana, com as “penumbras e trevas” do poder quase absoluto dos senhores rurais. Pioneira que fora na instalação de povoamentos no Brasil, a família proprietária administrará a cidade colonial segundo seus interesses privados. Uma preponderância da esfera privada sobre a esfera pública vai marcar indelevelmente a fisionomia da cidade colonial (7). Era em torno da casa, diz-nos Muricy que se “arrumavam as ruas, necessariamente desalinhadas. Quintais dos sobrados, as ruas abrigavam animais domésticos, serviam para o corte da lenha e o despejo dos dejetos dos moradores [...] Sem iluminação, enlameadas e sujas, as ruas coloniais eram simples caminho a serviço das casas poderosas” (8).

É conhecida a hegemonia do poder das famílias rurais sobre o governo das municipalidades no período colonial. Esse poder privado montou na cidade uma estrutura de dominação calcada no “mandonismo” e, como diz Roberto Schwarz, no “favor” “que visava não a constituição do outro, do cidadão, mas do mesmo, do parente” (9). A hegemonia do senhorio rural faz da política uma extensão de seu mandonismo alimentado a favores e, da cidade, o quintal de seu sobrado urbano. Segundo Gilberto Freyre, o sobrado manteve enquanto pôde suas funções de casa-grande: “guardar mulheres e valores” e perpetuar uma economia privada e autônoma.

Para Gilberto Freyre,

“O antigo sobrado foi quase sempre uma casa de condições as mais anti-higiênicas de vida. Não tanto pelo material empregado na sua construção, muito menos pelo plano arquitetural nela seguido, como pelas convenções de vida patriarcal, que resguardavam exageradamente da rua, do ar, do sol, o burguês e, sobretudo, a burguesa. A mulher e principalmente a menina. [...] Daí a fisionomia um tanto severa dos sobrados, seu aspecto de inimigo da rua [...] sua umidade por dentro, seu ar abafado, sua escuridão” (10).

Não se imagine que o modo de organização familiar da colônia era muito diferente nos diversos extratos do corpo social. Para Freire Costa “onde quer que se encontre uma família constituída e funcionante ela será senhorial, mesmo sem terra, mesmo sem propriedades. Isto é particularmente verdadeiro no que diz respeito aos setores médios da população” (11). Neste sentido, a medicina higienista irá desfechar seu discurso indiscriminadamente por todo este espectro médio do social. Mesmo porque a estratégia seguida era a de consolidar a universalização de novos padrões e valores. A ordem médica vai se dedicar a inventar uma norma familiar que forme cidadãos individualizados e à disposição da cidade, do Estado, em última instância da pátria.

Pode-se dizer que ao fim do período colonial, as famílias pontuavam com firmeza seu poder sobre o meio urbano. A política da metrópole esbarrava fortemente nos interesses privados. A chegada de Dom João é um marco importante: o equilíbrio de forças se desfaz. A aristocracia portuguesa e a burguesia europeia detêm um poder incomparavelmente superior ao das famílias nativas. A cidade não mais obedecerá aos interesses de seus antigos donos.

A “reeuropeização” da sociedade brasileira, no dizer de Gilberto Freyre, traça as linhas desse deslocamento de poder. Toda a reestruturação dos hábitos coloniais que o autor descreve como a progressiva “ocidentalização” das antigas influências orientais na cidade e na população demonstra o âmbito dessas mudanças. O Machado de Assis cronista é bastante claro quanto a esta “ocidentalização”, esta perda das marcas orientais no Rio de Janeiro de fins do século 19. Ouçamo-lo: “lá vão os quiosques embora. Assim foram as quitandeiras crioulas, as turcas e árabes, os engraxadores a botas, uma porção de negócios da rua, que nos davam certa feição de cidade levantina” (12).

Importa-nos aqui detectar como estes deslocamentos de poder afetarão a família e de que forma e com que meios ele foi posto em marcha.

O grande problema enfrentado pela administração lusitana era o fato de que a família, é verdade, deixou-se modelar pela cidade, ou mesmo modelou-a a sua feição, mas, em momento algum, durante a Colônia e o Império, deixou-se converter ao Estado. A Independência e a Abdicação são em parte reflexos dessa incapacidade do Governo português em conquistar o apoio das elites, o que talvez pudesse ter contribuído para manter por mais tempo o estatuto colonial do Brasil. Após a Abdicação, percebe-se que não bastava urbanizar a família, era imperioso estatizar os indivíduos A força da lei não produziria automática e simultaneamente indivíduos citadinos e submissos ao Estado. O poder soberano podia ser eficaz na violação da arquitetura das casas ou no direito à propriedade, mas detinha-se nas fronteiras da privacidade. Os comportamentos íntimos, as representações do corpo, as necessidades emocionais se mostravam inamovíveis por decretos legais. Esses fatores do universo familiar, causa e consequência do poderio econômico e cultural dos senhores, eram imunes às represálias jurídico-policiais.

No entanto, era dessa penetração na privacidade familiar que dependia, em parte, a construção de uma nova ordem. Os indivíduos, centrados que estavam em seus grupos familiares, tornavam-se insensíveis às solicitações do Estado. As técnicas de urbanização que fossem postas em marcha deveriam, inevitavelmente, levar em consideração essas dificuldades. Simultaneamente à reeuropeização dos costumes, os indivíduos deveriam estar cientes da importância da atuação do Estado na preservação da saúde, no bem-estar e no progresso da população. Surge a necessidade de inventar formas de coerção capazes de produzir esses efeitos. O Estado, de inimigo, deveria passar a aliado das famílias. É o momento que as técnicas disciplinares e biopolíticas operadas pela medicina higienista, tão bem descritas por Michel Foucault (claro que em outro contexto histórico, mas adaptáveis ao contexto brasileiro do período), sairão do ostracismo colonial e passarão a ocupar o primeiro plano na cena político-urbana do Brasil oitocentista. Trata-se de todo um trabalho de fissão e de reestruturação do núcleo familiar.

Talvez o ponto central seja esse: o dispositivo médico insinuou-se como o motor propulsor da política de transformação familiar, compensando as deficiências da lei. O dispositivo jurídico não conseguia seduzir as famílias tornando-as “amantes do Estado”, as quais deveriam se sentir recompensadas e não punidas pela ação do Estado. Toda a estratégica do dispositivo médico-higienista será desenvolvida no século 19 sobre a ideia de que a saúde e a prosperidade da família dependiam de sua sujeição ao Estado. A esse conjunto de exigências o dispositivo médico respondeu com o higienismo. A estratégia central é essa: converter o universo familiar à ordem urbana que, por sua vez, será convertida à ordem estatal.

Pode-se dizer então que esta reeuropeização dos costumes, reuropeização das famílias, esta estatização dos indivíduos, teorizadas no nível do saber e praticadas na esfera do poder, pela medicina higienista, terão na família seu ponto privilegiado de atuação, e se desdobrarão em dois elementos importantes: a casa e a intimidade.

Para os propositivos desse texto importa mais nos determos no elemento “intimidade”. Visto que a “casa” tem sido muito bem tratada por outros pesquisadores do nosso campo de pesquisa. Talvez uma palavra sobre a intervenção médica na casa. Da perspectiva higienista, a habitação antiga prestava-se a todo tipo de crítica. Sua arquitetura fechada, destituída de ventilação e iluminação adequadas, foi radicalmente atacada pelos médicos como insalubre e doentia. No dizer de um deles:

“As casas do Rio de Janeiro parecem destinadas antes à Lapônia ou à Groelândia do que à latitude tropical [...] uma fatal alcova, dormitório predileto; escura e modesta sala com um corredor escuro; uma sala de jantar, de costurar, de tudo, exceto de saúde, pouco mais escura que a sala da frente, mas munida de infalível alcova, mediante ou não outro corredor, a cozinha térrea” (13).

Esse discurso se repetirá a exaustão, ouçamos um outro, desta feita de Correia de Azevedo referindo-se à casa brasileira:

“Ao examiná-las supõe-se serem construções para o Esquimó ou Groelândia: pequenas e estreitas janelas, portas baixas e não largas, alcovas úmidas, escuras e sufocantes, corredores estreitíssimos e sempre esse esgoto da cozinha, essa sujidade bem junto à preparação dos alimentos cotidianos, tendo ao lado uma área, lugar infecto, nauseabundo, onde os despejos aglomerados produzem toda sorte de miasmas” (14).

No entanto, quando olhamos com atenção para estes textos médicos, percebemos que eles têm objetivos claros, dentre os quais, um dos mais importantes é a “proteção” de mulheres e crianças. Habitantes por excelência da casa ficavam, portanto, mais sujeitos aos efeitos negativos da insalubridade doméstica. A situação da “mulher de alcova” será radicalmente criticada em inúmeros textos médicos. O mesmo Correa de Azevedo se perguntava: “que esperais dessa enclausurada das más alcovas?” Freire Costa escreve que a mulher de alcove:

“Foi uma peça fundamental no dispositivo médico-higiênico. Encerrada nestes locais escuros, úmidos, mal ventilados, a mulher representava o elo mais fraco da cadeia anti-higienista visada pelos médicos. Arrancando-a da alcova, a medicina social, de um só golpe, integrava a família à cidade, enfraquecia o poder paterno e surgia como aliada da esposa contra o marido. Os médicos chegaram, assim, a constituir uma verdadeira síndrome da alcova” (15).

A “mulher colonial” torna-se com a urbanização, uma anacronia. As “enclausuradas das alcovas” tornam-se contraproducentes, antifuncionais, anacrônicas para o novo “modelo social” em gestação. A corte requer a “mulher de salão”; os negócios do marido a demandam; as ruas, o pequeno comércio, acenam para ela. Neste processo de abertura da família de elite brasileira a uma nova sociabilidade, a “recepção” terá um papel preponderante. A mulher de posses deveria saber receber, sentar-se à mesa com o marido, participar das conversações. Esta mulher deve expor-se ao mundo: nos salões das residências, nos teatros, nas recepções oficiais, nos restaurantes, nas ruas etc. Deveria estar atenta à sua nova condição social, abandonar seus antigos hábitos, europeizar seu corpo, seus vestidos e seus sentimentos. Deveria, também, abandonar suas velhas mantilhas, descobrir os rostos e vestir-se com artigos franceses e ingleses.

A rua oitocentista com seus lampiões a óleo a iluminá-las não era mais vista como um perigo e o “pé bem calçado do burguês”, na expressão de Gilberto Freyre, por ela já poderia se aventurar. As medidas de urbanização e a europeização das elites brasileiras, que se dão durante todo o século 19, e principalmente na sua segunda metade, fazem com que uma variedade inédita de tipos sociais por ela desfile. Comercinates, políticos, literatos, artistas, estangeiros, e, por fim, a mulher, passam a ocupar a vida citadina e a dividi-la com os personagens que até então domimavam a cena: os burocratas e os senhores rurais. Enfim a cidade dominava a família.

Paralelamente a esta exteriorização da família rumo a uma nova sociabilidade, ocorre um fenômeno aparentemente contraditório: o da privatização/intimização da vida familiar. O sentimento de privacidade e de intimidade que, poderíamos afirmar com Philippe Áries (16) ser um traço central da família moderna, não está presente, de forma alguma, na família brasileira até os princípios do século 19. Ademais, a casa colonial não é o espaço da intimidade, é, sim, o espaço da dispersão, da parentela, dos agregados, dos escravos etc. Porém, era essa falta de privacidade, de intimidade, fundada em uma certa indiferenciação entre os membros da família, todos sob a tutela do poder paterno, que se deveria abalar. Tratava-se de abalar esse poder e, com isso, abrir o caminho para a construção da família urbana e conjugal, do sujeito psicologizado, do indivíduo estatal. Como pôde afirmar Jacques Donzelot: a família conjugal moderna é típico produto da urbanização (17).

Essa família, reduzida ao casal e seus filhos, não terá mais como objetivo, pelo menos principal, a manutenção de uma propriedade comum ou dos interesses políticos de um grupo. O produto mais importante desta mudança da estruturação familiar será a diminuição, seguida da decadência e posterior extinção do poder patriarcal. Evidente que a evolução da economia ocorrida no Brasil, principalmente após a vinda da família real portuguesa e da abertura dos portos às nações amigas, com a decorrente diversificação da divisão do trabalho social, é um dos inegáveis fatores responsáveis pelo desencadeamento desse fenômeno, mas não é menos verdade que o discurso médico em tudo favoreceu esta decadência.

Podemos afirmar, assim, que a urbanização é fator decisivo na transformação da família. A família moderna, produto da urbanização, legitimada e, mais do que isso, induzida pelo discurso médico, vai fazer com que o convívio entre pais e filhos comece a ser valorizado afetivamente e aquela vivência comunitária com os agregados, a parentela, os escravos, passe a ser paulatinamente abandonada.

Percebe-se, então, um duplo movimento, a mesma família que se abre para um convívio social, é aquela que se “intimiza” em torno do núcleo conjugal. O aparecimento da privacidade e da intimidade familiar é correlato à sua abertura a uma sociabilidade. A mesma casa que abre seus salões é aquela que constrói uma privacidade em torno do núcleo conjugal do casal canônico.

É o surgimento do sujeito psicologizado, “freudianizado”, poder-se-ia dizer, talvez com certo grau de exagero. De qualquer sorte, é o surgimento de uma interioridade irredutível, paralelamente a uma mudança na aparência de homens e mulheres. Poderia se demonstrar, mas isso extrapolaria o espaço desse artigo, que a penetração da moda europeia é também um fator que sofistica o gosto das elites urbanas, modificando seus corpos, seus costumes, seus gestos, seus desejos, seus comportamentos. É o engendramento de toda uma revolução da “estética corporal” e das indumentárias, questão aparentemente sem importância, mas que também foi tematizada pelo dispositivo médico-higienista nos quadros de uma estruturação higiênica dos costumes. Mas deixemos para outra ocasião tal discussão.

Encaminhando-nos para o fim, gostaria de sugerir uma última questão entrelaçada com as outras sugeridas acima. Senão vejamos. O esforço da medicina higienista de construir uma nova intimidade familiar desestruturou as relações da casa com o universo social. A aversão com que a família colonial abordava e se deixava abordar pela cidade foi atacada pelo dispositivo médico. A família emergente da segunda metade do século 19 abriu-se, mesmo que relativamente, ao convívio com a cidade, a rua, os estranhos. A medicina social não tardará a ver que o excesso de porosidade ou contato deveria ser bem dosado: a família excessivamente aberta à rua diluía o que se queria justamente concentrar: a intimidade. Os indivíduos “libertos” estão expostos ao perigo de entregarem-se a um “mundanismo” extremo, diluindo-se aquilo mesmo que se buscava concentrar: as relações íntimas e de privacidade entre os membros da família nuclear, canônica.

Essa sociabilidade, para a qual a família foi encorajada pela medicina, deveria ser equilibrada, mantendo, por um lado, a intimidade familiar e, por outro, os interesses da cidade e do Estado. A medicina higienista procurou encontrar este equilíbrio. Para tanto, começou a traçar uma espécie de “cartografia da saúde” dos novos locais de sociabilidade, por onde e também como a família poderia circular sem riscos de comprometer sua saúde, sua sanidade.

Com a urbanização, algumas das velhas formas de sociabilidade foram caindo em desuso. As festividades religiosas foram pouco a pouco perdendo sua força em função do intenso movimento de secularização dos costumes, processo, aliás, inerente ao século 19. Por outro lado, as festas populares como o “entrudo carnavalesco”, por exemplo, foram sendo banidas da cena urbana por se tratarem, segundo os médicos e outras autoridades, de festas “bárbaras e vulgares”. Em nome da “civilidade” e da “sociabilidade moderna”, os festejos coletivos que misturavam pobres e ricos foram com o tempo desaparecendo, em nome das reuniões privadas, exclusivistas, discriminatórias de gostos, segundo cada uma das posições dentro do espectro social. Assim eram os bailes, teatros, saraus, recepções etc.

A medicina social-higienista não só apoiava como induzia esse processo. Porém, há de se saber frequentar a “festa burguesa”. Cuidado! Vociferavam os médicos, estas ocasiões estão repletas de don juans e libertinos, levando as mulheres a se tornarem adúlteras, trazendo a infelicidade a seus filhos e maridos. O libertino, diz-nos Muricy, “ameaça a família pela doença e pela injúria moral. Ponte nefasta entre a família e o desregramento social, ele atualiza o perigo virtual, que a cidade e a civilização podem representar para os homens quando não controlados pelas normas médicas” (18). Vejamos como se pronuncia um representante da medicina social do período:

“O libertino reúne a concupiscência a todos os outros vícios que o esquecimento da própria dignidade produz; as nossas prisões o atestam: consultai o arquivo da casa de correção e ai encontrareis não pequeno número destes infelizes que não trepidam diante do roubo, falsificação de firmas e mesmo do homicídio” (19).

Percebe-se um discurso médico dotado de dupla face: em uma das faces, a rua, a cidade, a sociabilidade são apresentadas como reflexo da modernidade, civilidade etc., porém, na outra, o mundo é tido como perigoso e perverso. E, é claro, somente pelas mãos da ciência médica é que os incautos poderão abordá-lo sem riscos. A “cidade burguesa”, afirma Freire Costa, “que, através da higiene, ia sendo saneada de pestes e epidemias, via-se agora, através da mesma higiene, contaminada por uma infinidade de misérias morais” (20).

Uma última palavra ainda. Não se deve entender a construção do que aqui denominamos familialismo moderno brasileiro operado através dessa introversão da medicina higienista nos aspectos físicos e emocionais da família como uma descida desta última às labaredas do inferno. A carga dessa repressão intimista será contrabalanceada por certos “ganhos secundários”. Esse poder disciplinar, normalizador, a que a família se vê submetida é extremamente ágil, eficaz, discreto, sub-reptício; se é repressivo, não deixa de ser produtivo. Ele produz, produz rituais de verdade, produz novos desejos, novos comportamentos, ao invés de somente destruir antigos. No limite, contribui enormemente para a produção da própria ideia de família burguesa no Brasil, o que nesse artigo denominamos familialismo. É justamente esse tipo de produção que gerará um certo pacto, um certo acordo entre família e medicina.

Dos primeiros “ganhos secundários” que advêm desse processo de construção do familialismo os beneficiários foram, sobretudo, mulheres e crianças, que deixaram de orbitar em torno do poder quase absoluto do pai e passaram a orbitar em torno do “despotismo esclarecido” dos médicos. O pai, pelo seu lado, recebeu seu “prêmio”, ganhou uma nova modalidade de submissão das mulheres: a submissão, pelo amor ao marido, aos filhos e ao lar. A casa vai se tornando, então, aquele ambiente “doce e encantador” do familialismo tão solicitado pela higiene. A higiene, neste sentido, irá promover o homem casado, pai de família, mas de uma forma muito diferente do patria potestas patriarcal. Este era antes de tudo um proprietário: proprietário da terra, dos escravos, da mulher e dos filhos. O pai em sua função atual é bastante diferente do pai patriarcal e nasce com a higiene. Torna-se um elo fundamental que liga a família à cidade, à sociedade e ao Estado. Esse homem normal da higiene será o garantidor da saúde física e moral de sua prole, condição sine qua non para o engendramento dos futuros cidadãos da cidade burguesa.

Mas poder-se-ia sugerir um segundo nexo para os “ganhos secundários” decorrente do fato de que a família, após ter capitulado diante do poder-saber médico, reconhecendo o valor do corpo e da alma sadia, passa de consumidora a produtora e comerciante dos serviços médicos. Começa, então, a produzir seus próprios médicos: a mudança de costume que altera o desejo de se ter um “filho-padre” para se ter um “filho-doutor” é bastante esclarecedora desta questão. Para Freire Costa, “o médico de família foi uma vitória da higiene; o filho-médico foi um tratado de armistício entre os dois poderes. Aproximando-se do médico, o grupo familiar não mais se opôs à higiene. Pelo contrário, ajudou-a a expandir-se, pois já estava participando dos seus lucros” (21).

notas

1
FOUCAULT, Michel (1977). Verdade e Poder. L’Arc, n. 70, Paris, p. 16-26. In Micorfísica do poder. 5ª edição. Rio de Janeiro, Graal, 1990, p. 7.

2
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, Graal, 1979.

3
MURICY, Kátia. A razão cética: Machado de Assis e as questões de seu tempo. São Paulo, Companhia das letras, 1988, p. 262.

4
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, Graal, 1979. p. 30.

5
Idem, ibidem, p. 30

6
Cf. Idem, ibidem, p. 31

7
REIS FILHO, Nestor Goulard. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 27.

8
MURICY, Kátia. Op. cit., p. 52. A autora se baseia aqui em Gilberto Freire no seu Sobrados e Mucambos. FREIRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Decadência do patriarcado rural no Brasil. Rio de Janeiro, José Olimpo, 1977.

9
SCHWARZ, Roberto.“As ideias fora do lugar. In Ao vencedor as batatas. São Paulo, Duas Cidades, 1988.

10
FREYRE, Gilberto. Op. cit.

11
COSTA, Jurandir Freire. Op. cit., p. 47.

12
ASSIS, Machado de. In A Semana, 16 abr. 1893.

13
CANDIDO, Francisco de Paula. Relatório sobre as medidas de salubridade reclamados pela cidade do Rio de Janeiro. Apud COSTA, Jurandir Freire. Op. cit., p. 110.

14
Apud. COSTA, Jurandir Freire. Op. cit., p. 111.

15
Idem,ibidem, p. 115.

16
ARIES, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1981.

17
DONZELOT, Jacques. A polícia das famílias. Rio de Janeiro, Graal, 1980.

18
MURICY, Kátia. Op. cit., p. 66.

19
GUIMARÃES, J.A.A. Macedo. A prostituição. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, Faculdade Nacional do Rio de Janeiro, 1863.

20
COSTA, Jurandir Freire. Op. cit., p. 134.

21
Idem, ibidem, p. 147.

sobre o autor

Fernando Gigante Ferraz é doutor em Filosofia pela Université de Paris I Panthéon Sorbonne (2006), pós-doutor em Filosofia pela Scuola Normale Superiore de Pisa (2017). Professor associado do Instituto de Humanidades, Artes e Cièncias e do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal da Bahia.

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