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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Casos de autonomia local na produção do espaço são analisados a partir da crítica de Marx sobre forma-mercadoria para evidenciar contradições contemporâneas e incompletude do Urbanismo Tático a fim de elaborar uma agenda de pesquisa a partir da periferia.

english
Cases of local autonomy in the production of space are analyzed from Marx's critique of commodity-form to show contemporary contradictions and incompleteness of Tatic Urbanism, in order to elaborate a new research agenda from the periphery.

español
Casos de autonomía local en la producción del espacio se analizan a partir de la crítica marxista de la forma-mercancía para evidenciar las contradicciones contemporáneas del Urbanismo Táctico a fin de elaborar uma agenda a partir de la periferia.


how to quote

CASTRO, Laura Fonseca de; MELLO E SÁ, Thiago Canettieri de. Em busca da autonomia perdida. As contradições, desdobramentos e (im)possibilidades das práticas cotidianas autônomas em pequena escala, no centro e na periferia. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 244.06, Vitruvius, set. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.244/7881>.

O capitalismo, como forma histórica de mediação social da era moderna, se reproduz na medida em que incorpora esferas que lhe são exteriores. Ao penetrar na vida cotidiana, incide em toda a produção do espaço (1). Sua forma básica, a mercadoria, se estende sobre o conjunto da vida social, se realizando e realizando a própria vida à sua própria semelhança. Porém, o processo de desenvolvimento do capital é, como demonstrou Karl Marx (2), um processo contraditório – e essa contradição intrínseca se realiza também na produção do espaço. Ao perceber a dinâmica própria do capital, nos deparamos com uma forma de realização que estaria, em princípio, fora das determinações formais desta mediação social do capital. Em geral, são espaços que são produzidos socialmente derivados do movimento contraditório do capital que abre oportunidades para práticas e usos de caráter desviante.

Na bibliografia de estudos urbanos, esta ação social aparece sob o termo de urbanismo tático (3). Partimos da análise de algumas experiências de intervenções táticas sem a ação do Estado com o objetivo de analisar as implicações e (im)possibilidades de práticas autônomas e o risco de cooptação neoliberal. Abordaremos exemplos brasileiros e estrangeiros: o coletivo Space Hikackers de Londres, Reino Unido; a Praia da Estação de Belo Horizonte, Brasil; a criação dos Park(Ing) Day que se desdobrou na regulamentação dos parklets de São Francisco, Estados Unidos; e o Parquinho do Nego de Esmeraldas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, Brasil. Esses casos servirão de base para a argumentação sobre as práticas antidisciplinares espaciais que acontecem no cotidiano, produzidas coletivamente em microescala e que surgem em contraposição a práticas de planejamento e gestão estratégica das cidades sob a perspectiva da relação neoliberal entre Estado e Capital.

Neil Brenner (4) lança a hipótese polêmica de que o urbanismo tático se efetivaria como mais uma expressão de produção do espaço do capital, mesmo que seus agentes não o saibam e possam, até mesmo, se situar como anticapitalistas em nível de discurso. Não é essa a fórmula última da ideologia como aparece em Marx, de que “não sabem, mas ainda assim o fazem”? Brenner ao mesmo tempo em que reconhece a importância de certas práticas que apontam para um projeto de autonomia local, indica no texto contradições desse modelo, demonstrando como muitos se inserem na conjuntura histórica de produção capitalista.

É neste emaranhado de posições que nosso trabalho se situa. Longe de querer definir quais práticas são mais ou menos anticapitalistas – o que, por si só, já poderia ser questionável – vamos tratar aqui de avaliar as semelhanças e diferenças entre as experiências de uso e produção autônoma coletiva de espaços da cidade a partir de sua apropriação tática desses quatro contextos espaciais diferentes: uma experiência de urbanismo tático no centro urbano de um país central; uma no centro de um país periférico; uma na periferia urbana de um país central; e, por fim, uma na periferia de um país periférico. Assim, o objetivo do artigo é engajar na discussão referente a práticas socioespaciais que se dizem autônomas para demonstrar as (im)possibilidades da efetivação da autonomia. Por fim, vamos testar a hipótese de que é possível elaborar uma espécie de correção periférica ao argumento de Neil Brenner.

As experiências de urbanismo tático: reflexões sobre dinâmicas sócio-territoriais em pequena escala no centro e na periferia

O urbanismo tático evidencia a necessidade de atualizar o espaço através de seu uso e dá relevo às questões levantadas pela comunidade local por meio da apropriação inventiva das estruturas espaciais existentes no lugar. Também conhecido como "urbanismo faça-você-mesmo" (DIY Urbanism) e como “urbanismo de guerrilha", o Urbanismo Tático seria uma tentativa de produzir o espaço urbano de maneira a representar as lutas das comunidades que o habitam, a redefinir os limites, significados e organização de sua esfera pública. Grupos se engajam na contestação ativa e na reconfiguração espacial a partir de operações em microescala territorial e são capazes de promover mudanças maiores em cidades hegemonicamente orientadas por interesses Estatais que favorecem o capital. Suas ações não demandam grandes investimentos financeiros, por isso, são capazes de articular agentes locais em torno de relações de troca e crítica que desestabilizam estratégicas presentes nos espaços públicos em prol da possibilidade de novas interações e usos (5).

Os modos de ação do urbanismo tático se dão em pequena escala e buscam provocar a discussão acerca do uso do espaço por meio da apropriação de espaços de uso comum, reformas, eventos e criação de lugares de encontro organizados predominantemente por comunidades que se localizam à margem, seja no sentido geográfico de periferia, seja à margem do pensamento hegemônico ordenador dos espaços. Esses desvios de uso desafiam a noção convencional, normalizada e codificada de produção do espaço. Apesar de se articular por meio de iniciativas locais auto-organizadas em microescala, o Urbanismo Tático configura uma ferramenta de planejamento e desenho urbanos que permite a experimentação de uma proposta, o reconhecimento de suas falhas e a abertura para possibilidade de correção e reestruturação. No Urbanismo Tático, a produção do espaço se dá através do engajamento da comunidade local e da mídia na crítica das políticas públicas e das parcerias que estabelece com os setores do capital privado. Ou seja, as diversas maneiras de produzir o espaço são operadas a partir da promoção de encontros e trocas cotidianas e a potencializa como local para o acontecimento de fóruns de discussão sobre o território, expandindo a noção de comunidade presente no espaço público.

Neste artigo, a seleção dos exemplos que ilustram as táticas urbanas foi feita de modo a transitar entre as diferentes escalas e posições no que se refere às relações de centro e periferia: i) Os Space Hijackers fazem provocações políticas no centro de Londres, uma megalópole localizadas no centro mundial; ii) a Praia da Estação que acontece em uma praça no centro de Belo Horizonte, uma cidade periférica no contexto global, como movimento autônomo crítico às políticas de controle de conduta municipais que reivindica o uso livre da Praça da Estação; iii) o movimento Park(ing) Day, precursor da regulamentação dos parklets em San Francisco, na Califórnia, que surge da insatisfação de ativistas acerca do protagonismo dos carros no uso nas ruas e da insuficiência de espaços voltados ao encontro e permanência; iv) finalmente, um exemplo de experiência de um bairro periférico na periferia global, o Parquinho do Nego, uma área de lazer autoconstruída com material de descarte de construção civil e automóveis pela população local na margem de um rio no bairro Icaivera, localizado na fronteira dos municípios de Esmeraldas, Betim e Contagem.

Como primeiro exemplo, apresentamos os arquitetos anarquistas do coletivo Space Hijackers de Londres. A principais ações desse coletivo de anarquistas eram festas clandestinas que ocupavam trens da linha circular de metrô. O coletivo divulgava as datas e horários dos encontros em sua plataforma digital e os próprios participantes levavam equipamentos de som, luzes de boate, bebidas, comidas, instalavam barras e balanços nos vagões em movimento que eram escondidos quando paravam nas estações, de modo que os controladores do sistema de transporte não se davam conta dos acontecimentos. Após as festas os acontecimentos eram narrados no site em tom provocador e de deboche diante das autoridades. A primeira reuniu cerca de 150 pessoas, a segunda, 600, e a terceira, mais de duas mil pessoas ocupando os trens e as estações. Ao todo, foram cinco festas entre 1999 e 2010 que questionavam a validade do código de conduta imposto pela legislação municipal. O intuito das Secret Circle Line Parties era intervir de maneira autônoma e coletiva nas decisões institucionais que orientam a experiência do espaço público (6). O urbanismo pensado a partir desses eventos provocadores cria um hiato na narrativa histórica oficial da cidade por meio da ressignificação de lugares centrais que historicamente são constituídos a partir da construção de territórios racionalizados de poder e segurança, pois subvertem o caráter de isolamento e dispersão do transporte público a partir e seu uso efêmero para o encontro e divertimento.

A “Praia da Estação” em Belo Horizonte também é um acontecimento tático de natureza provocadora, uma “praia de cimento da lúdica revolução” (7). Em 2010 um grupo de mais ou menos trinta pessoas se reuniu na Praça da Estação, localizada no centro de Belo Horizonte, para protestar contra o decreto do prefeito que proibia a realização de eventos em espaços públicos da cidade. Os manifestantes geralmente portam roupas de banho, levam cadeiras de praia, guarda-sol, caixas de isopor e instrumentos musicais enquanto banhistas usam as fontes de água e caminhão pipa pago por financiamento coletivo espontâneo entre os presentes. Este movimento foi, a princípio, promovido por uma juventude de classe média branca e, após algumas edições, passou a ser frequentado também por um público aparentemente periférico e metropolitano, significativamente pobre, negro e LGBTQI+. Desde que aconteceu pela primeira vez, a “Praia” ocupa a praça frequentemente e já serviu de referência para a organização de blocos de carnaval de rua e outras organizações autônomas de cunho político.

A Secret Circle Line Party e a Praia da Estação são produções efêmeras que não alteram a infraestrutura da cidade no momento em que se realizam, mas revelam novas possibilidades de uso capazes de subverter as normas de comportamento no espaço público e, notadamente, articulam a comunidade local na elaboração coletiva de uma crítica às formas de governo e ao controle normativo do comportamento. Os eventos acontecem espontaneamente, se pretendem “horizontais” e “autogestionados”, por isso a quantidade de pessoas engajadas pode variar entre dezenas e centenas. Independentemente de dados quantitativos, o que se nota é a potência política desses acontecimentos que parte da apropriação crítica e democrática do espaço e sua reverberação midiática.

O Urbanismo Tático também pode ter um caráter menos efêmero no que se refere à ocupação e uso do espaço. Os parklets são um tipo de construção que ocupa vagas de estacionamento público e se configura como espaço de uso livre. A regulamentação estatal atual dos parklets é consequência de uma experiência tática chamada Park(ing) Day, que aconteceu a primeira vez no bairro East Cut em San Francisco nos Estados Unidos em setembro de 2005, organizada por amigos que contestavam a função social das vagas de estacionamento nas vias públicas (8). Eles ocuparam uma vaga de estacionamento com grama sintética, um vaso com árvore e um banco. Em poucos minutos transeuntes ocuparam o espaço para almoçar, descansar e conversar. Os desdobramentos midiáticos do acontecimento fizeram com o que fosse fundada a Rebar, organização não-governamental – ONG que elaborou um manual com orientações sobre os aspectos técnicos e conceituais que alguns meses depois recebeu da Trust for Public Land, ONG que possui atividades em escala nacional e associação direta com programas estatais que replicou a ideia em outras 31 cidades em um ano. Assim, o que se iniciou como uma ação autônoma coletiva local de pequena escala, se ampliou como prática capaz de ser reproduzida em outras conjunturas. A prefeitura de San Francisco solicitou ao Rebar que desenvolvesse um modelo de instalação mais permanente que os Park(ing) para a implantação do programa Pavement to Parks que foram chamados de parklets, espaços de uso público patrocinados por empresas locais que ocupam vagas de estacionamento de rua.

Nos países capitalistas centrais, notadamente nos Estados Unidos, o Urbanismo Tático tem um caráter autônomo fortemente individualista em detrimento de uma autonomia coletiva que se manifesta espacialmente em uma comunidade. Hoje, o conceito dos parklets se difundiu e se estabeleceu como prática incentivada pela legislação municipal das prefeituras das grandes cidades, inclusive muitas no Brasil. Se nas primeiras instalações dos Park(ing) grupos reordenavam taticamente o espaço de vagas de carro para atender à demanda de mais espaços públicos de permanência, inicialmente deslegitamada por instituições de controle e segurança, rapidamente foi absorvida pelo aparelho de Estado como solução financiada por iniciativas privadas plasticamente atraente para o problema urbano de insuficiência de espaços destinados ao lazer (9).

No entanto, estudar um caso localizado em um bairro de periferia de um país periférico é essencial para a análise crítica das práticas de Urbanismo Tático. O “Parquinho do Nego” se localiza no bairro Icaivera, na divisa dos municípios de Contagem, Betim e Esmeraldas, na Região Metropolitana de Belo Horizonte. Nego, dono de um bar em frente a um terreno público localizado à margem do rio usado como depósito de entulho, decidiu usar os próprios materiais abandonados ali para fazer um espaço de lazer para crianças. Ele construiu brinquedos, mesas e cadeiras fazendo o que ele chamou de “gambiarra” baseado em conhecimentos adquiridos “no Youtube e enciclopédias” (10). Ao alterar a estrutura física do espaço e abrir a possibilidade para outros usos, Nego realizou ali um desvio tático no espaço. Ele afirma que circulam pelo parquinho entre cinquenta e cem crianças por semana. Quando ele propõe um novo uso para o espaço, ele traz à tona questão urbana da falta de áreas de lazer no bairro, equipamentos públicos que deveriam ser de responsabilidade do governo local. Nota-se que sua ação não foi um consenso entre todos os habitantes do território e gerou um espírito de competitividade com outros donos de bar do bairro. Todavia, Nego interviu no espaço com o apoio de parte da vizinhança para requalificar o espaço para uso público sem o interesse de tomar posse privada do terreno.

No caso dos parklets, atualmente a prática se encontram em um novo ciclo de reprodução capitalista do espaço, foram incorporados na lógica de mercado e são usados como uma maneira de estender a área privada de comércio e prestação de serviços particulares, como bares e cafés, que usam os parklets para servirem seus clientes e acabam por constranger as pessoas que não são consumidoras do estabelecimento, mesmo sendo oficialmente espaços públicos. Sob esse aspecto do consumo, não se deve ignorar a semelhança dos parklets com o parquinho do Nego, pois ambos ocupam uma área pública em frente ao estabelecimento comercial, mesmo que fosse subutilizada para estacionamento ou para depósito de entulho. Nego afirma que quando os pais levam as crianças para brincar acabam comprando produtos no seu bar, logo, a existência do parquinho aumentou o lucro do seu negócio particular.

Ao tomar para si a responsabilidade de reformar o espaço de modo – a princípio – espontâneo, o urbanismo tático dá relevo à lentidão dos processos burocráticos do Estado em dar uma resposta às demandas da população, ao passo que revela a capacidade da tática de servir de teste imediato para uma proposta. Ou seja, se a experiência falha, o Estado se resguarda de qualquer envolvimento. No caso do Nego, consideramos a postura autônoma da comunidade de periferia que atua sobre seu próprio território e que não se inclui no mapa de interesses midiáticos e corporativos do capitalismo central. O fato de Nego, o agente social que atuou diretamente na produção do espaço do parquinho, se beneficiar da presença comunitária no espaço para comercialização de produtos não é suficiente para explicar a sua ação neoliberal frente a realidade daquele lugar. Por isso, vamos nos aprofundar na sistematização dessa condição em escala global e colocar uma contradição interessante de ser analisada em escala local: o Urbanismo Tático que se estabelece como alternativa à atuação das instituições públicas pode acabar reforçando o regime neoliberal?

A lógica da mercadoria e as (im)possibilidades do uso

De acordo com Neil Brenner, algumas características do Urbanismo Tático contribuem para sua cooptação por códigos capitalistas que coordenam o tecido social urbano. A característica fundamental do Urbanismo Neoliberal é a capitalização de ativos de instituições públicas em conjunto com de atores privados que coordenam a vida cotidiana por meio de relações de mercado no território. A consequência perversa de tal modelo de urbanismo é a precarização espacial e social dos lugares não vinculados a atores privados. Como uma reação a essa condição contemporânea, o Urbanismo Tático se manifesta em intervenções localizadas em microescala de espaço e tempo e trata de questões consideradas urgentes pela comunidade, que atua de maneira participativa dentro de um modelo de "faça você mesmo" em oposição ao método totalizador de planejamento urbano típico dos projetos estatistas que corroboram para a produção do espaço em função do capital, que é impositiva nos centros e negligente nas periferias.

Ao colocar soluções informais, paliativas e imediatas para problemas urbanos estruturantes de um território – tal como a precariedade ou ausência de espaços públicos de lazer – que poderiam ser abordados formalmente em programas, planos e projetos de médio e longo prazo, o discurso do Urbanismo Tático acaba por aliviar as responsabilidades do governo. Dessa maneira, além de não colaborar com a ampliação da luta coletiva por justiça social, também reforça as práticas neoliberais, pois legitima e sedimenta os laços entre governo que não se preocupa com questões locais coletivas que se omite quanto à responsabilidade de produção e gestão do espaço. Logo, transfere a responsabilidade sobre os impactos urbanos, econômicos e sociais para os cidadãos, que se veem vulneráveis frente a iniciativas privadas estratégicas. Assim, a contradição do Urbanismo Tático reside justamente no caráter tático, que diminui a importância das instituições públicas ao mesmo tempo que não propõe uma revolução do marco regulatório que orienta o desenvolvimento urbano sob a égide do capitalismo.

N’O Capital (11), Marx começa dizendo que a mercadoria parece uma coisa óbvia, mas é cheia de “sutilezas metafísicas e melindres teológicos”. O autor percebeu que a mercadoria cumpria uma função muito específica dentro da sociedade capitalista e que, com isso, organizava socialmente uma forma específica de metabolismo social. Assim, mais do que um produto comum, ela desempenha o papel de amalgamar as relações sociais, transformando o que é relação entre humanos em relação entre coisas. É este o conteúdo do que aparece como fetichismo da mercadoria. De acordo com Moishe Postone (12), “o fetichismo significa que, devido ao caráter peculiar e duplo das formas sociais estruturantes do capitalismo, as relações sociais desaparecem das vistas”. A mercadoria é uma fantasmagoria, algo que ao mesmo tempo esconde as relações sociais e as constrange. A objetividade fantasmagórica da mercadoria é resultado de um processo de determinação abstrata que opera de modo impositivo sobre as pessoas. Ou seja, a mercadoria é um processo social em que as relações humanas são abstraídas de seu conteúdo.

Guy Debord (13) desenvolveu a ideia do fetichismo da mercadoria em uma análise considera o movimento da abstração real do capital, que passa a ter sua lógica estendida para o conjunto do espaço e tempo vivido e passa a se apresentar como totalidade. A experiência do cotidiano é, ela própria, subsumida à lógica da mercadoria e se torna um epifenômeno da produção capitalista. Deve-se entender a mercadoria como resultado da operação prática cotidiana que cria essa forma social para, em seguida, o cotidiano ser dominado por ela. Portanto, a abstração não passa de uma abstração, mas sobredetermina a prática real da vida concreta. Ou seja, existe uma força lógica e ontológica que domina as práticas sociais (14). Como seria possível então buscar a autonomia?

A crítica da ideologia de Slavoj Zizek (15) pode ser aplicada nas experiências de urbanismo que remontam à autonomia espacial que se autodefinem como experiências críticas, que, finalmente, venceriam o poder da dominação capitalista – quando entendido como formulação personificada de dominação – mas que perdem de vista a potência que a ideologia exerce na própria vivência cotidiana e que, também, se efetiva nestes momentos críticos. Sobre isso, vale ter em conta o conceito de fantasia ideológica. Na psicanálise, a ideia de fantasia aparece para designar o elemento que instaura a busca por uma completude, dada que a inserção do sujeito no campo do simbólico é sempre precária. A fantasia, portanto, teria, em Lacan, a função de servir ao sujeito como recuperação daquilo que foi perdido. Quando Zizek aproxima essa interpretação propriamente psicanalítica com a concepção de ideologia de Marx, ele percebe que o mesmo parece existir ao se efetuar alguma crítica. A tessitura da ideologia é constituída de uma tal maneira que incorpora, no nível da aparência, uma dimensão que parece inconsistência, apenas para revelar que existe uma ilusão desconsiderada, que sua própria estruturação é reafirmada ao ser tomada como inconsistente.

Em sua análise, Marx alude a um processo de sobredeterminação do valor sobre o valor de uso. O fim do capitalismo, numa eterna repetição tautológica, seria o dinheiro em busca de mais dinheiro como expressão fenomênica da riqueza social. Isto significa que “a dimensão do valor de uso é, certamente, constituída em uma forma moldada pelo capital”; entretanto, diferentemente do valor, “o valor de uso não está necessariamente vinculada ao capital” (16). Desta forma, Marx apresenta, em última análise, a noção de uma contradição entre o potencial das capacidades gerais humanas acumuladas e a sua forma existente, profundamente estranhada, constituída pelo trabalho, tempo e espaço abstratos. Desta maneira, por mais que não exista um "fora do capitalismo", experiências que não estejam completamente internalizadas nas formas abstratas de dominação social pelo trabalho, tempo e espaço podem indicar, portanto, formas de autonomia e autogestão e temos muito o que aprender com elas para, assim, potencializar nossa crítica ao capitalismo.

Entretanto, os desvios de uso do espaço que o Urbanismo Tático desenvolve podem representar a sua inserção no que pretende combater. A forma de uma intervenção não questiona os fundamentos das determinações abstratas da acumulação e, como alerta Brenner, acaba sendo capturado. Como? Em geral, estas práticas de desvio tático e de indisciplina – quando não orientadas para um cerne fundamental – são incorporadas no próprio desenvolvimento da forma do capital. A existência dos desvios como Urbanismo Tático, por mais contraditório que possa parecer, acaba incorporando um aumento da renda fundiária possível de ser auferida, renda essa que só se efetiva a partir da própria ação. A tática é, ela própria, o chamariz da acumulação. O capital – e sua maleabilidade plástica – é capaz incorporar movimentos que aparecem, num primeiro momento, críticos a sua forma de produção do espaço.

O que nos parece desta abordagem é uma presença irremediável da forma-mercadoria, mesmo naquelas que, à primeira vista, a nega, afinal, a persistência da mercadoria está na sua capacidade de absorver o que lhe nega. Mesmo práticas críticas ao capital podem ser incorporadas em seu movimento tautológico. Especificamente sobre o Urbanismo Tático é possível perceber que ocorre nestes processos uma valorização dos espaços em que acontecem. Grupos, em geral de jovens com ensino superior e de classe média, ao frequentarem os novos espaços criados taticamente reforçam e atuam como um atrativo: são a chamada classe criativa que, frequentando este espaço, acaba criando uma forma especial daquele espaço e, com isso, permite auferir rendas fundiárias mais elevadas. Assim, é necessário o desenvolvimento de uma crítica da produção capitalista do espaço que esteja ciente das conexões entre determinadas práticas do urbanismo tático com o que o geógrafo Neil Smith chamou de gentrificação. A indisciplina, deste ponto de vista, converte-se em disciplina (17).

A presente discussão suscita perguntas relativas ao uso do espaço como apropriação de elementos urbanos existentes enquanto meio de manifestação de contraconduta no cotidiano e também apresenta o urbanismo tático como possibilidade de as comunidades locais experimentarem soluções espaciais autônomas que são críticas ao modelo totalizador e burocrático do Estado ao mesmo tempo que, contraditoriamente, reforçam as práticas heterônomas do Urbanismo Neoliberal. No entanto, esse aspecto é inerente aos processos de reivindicação espacial, visto que na metrópole pós-moderna orientada pelo capital o indivíduo está constantemente exposto a mudanças de conjuntura política, ética e estética.

Do modo como percebemos, a capacidade inventiva de certas práticas pode ser autônoma somente nas margens da urbanização capitalista, em suas periferias. O constrangimento colocado aos indivíduos que moram nestas localidades, a precariedade das condições, a ausência de emprego e a negligência do Estado obrigam a uma certa forma de reprodução que se deve efetivar de maneira crítica, a partir de uma série de gambiarras. Nestes territórios, parece existir uma autonomia territorial de fato. Assim, parece que a crítica de Brenner ao Urbanismo Tático não vale inteiramente para as periferias. Ou seja, é possível uma correção periférica ao argumento de Brenner sobre o urbanismo tático: as experiências do cotidiano da periferia obrigam a um determinado uso tático inventivo que não é totalmente absorvido pelo capital e suas determinações. Exatamente por estar na margem, ali, pode se efetivar o desvio.

Este argumento aparece, de uma maneira mais geral, numa entrevista do geógrafo Milton Santos (18) que comenta como os pobres são efetivamente inventivos. Isso significa que poderíamos encontrar nas periferias determinadas formas de produção de valores de uso que passariam por outras lógicas que não estão sobredeterminadas pela formas gerais do capital. Existe ali, sim, uma liberdade que embora seja uma liberdade triste (19), marcada pela precariedade, abre a experiência de autonomia para ser encontrada nas margens e periferias do urbano.

Conclusão: a correção periférica como possibilidades de prática anticapitalista

A análise aqui desenvolvida sustenta o argumento de que uma possível correção periférica ao urbanismo tático pode aparecer como prática anticapitalista. Não que as periferias sejam, em si, lugares externos a lógica do capital, como vimos no exemplo do Parquinho do Nego. Mas, por elas serem marcadas pela precariedade e carência, obriga os indivíduos a usos criativos na produção do espaço, revelando potencialidades antes desconsideradas na discussão do Urbanismo Tático.

Aqui pretendemos apontar o que chamamos de correção periférica como uma suprassunção [Aufhebung] no sentido em que ela é uma ação, uma experiência em si, ao mesmo tempo preservação, negação e superação da prática do Urbanismo Tático. Para além do idealismo hegeliano, a ação espacial é efetivada através de uma atividade criativa, pela realização de um devir – e do risco inerente da contradição, pois é potência de solução e de fracasso (20). Percebemos a correção periférica como suprassunção, pois ela é uma síntese que não se adequa nem à condição primeira de Estado neoliberal, nem à resposta tática neoliberal – uma dessemelhança de ambos. Ela é suprassunção porque nega a negação, ou seja, nem Estado nem capital são instâncias consideradas como base para a produção do espaço nesses lugares de margem. Sob esse aspecto, a correção periférica nega também a tática, é a negação do papel do Estado e do capital na produção do estado que em um esforço de autonomia autogestionária falha em perceber sua insuficiência, a tática quando praticada no centro ou a partir dele não é suficientemente radical pois permanece o reconhecimento (mesmo que pela negação) do papel social do capital na economia política nesses espaços (21).

Entretanto, a condição de periferia da periferia transcende esse ponto de falha. Como espaço de precariedade, abre-se na periferia a possibilidade de surgimento de um modo outro de produzir o espaço em que o valor de troca é efetivamente colocado em segundo plano e as relações sociais de produção seguem um modelo colaborativo. É preciso entender que para o Urbanismo Tático existir, o Urbanismo Neoliberal, estratégico, tem que existir primeiro, mas na periferia ele existe de outra forma e com outra força. Se na periferia não temos o reconhecimento simbólico nem do Estado nem do capital na produção do espaço, o que surge é uma terceira forma de ação que nega tanto a estratégia quanto tática, e que, contraditoriamente, incorpora a representação mental do urbano exportada pelo centro, suas relações sociais e seus modos de fazer.

Na periferia, o desvio se dá em direção ao devir sem Estado e sem capital – por desinteresse dessas mesmas forças. – através da experiência cotidiana. Apontar as contradições desses quatro exemplos não é um movimento em direção à apresentação de uma crítica final absoluta, mas um movimento pelo reconhecimento de que mesmo as soluções carregam em si contradições latentes que são complexas justamente por se atrelarem a uma compreensão dinâmica e histórica do momento.

Ainda é necessário refletir sobre este assunto e apresentamos aqui uma sugestão de agenda de pesquisa que possa aprofundar as discussões: i) uma abordagem pela crítica da ideologia, como a que faz Slavoj Žižek com aproximações junto a psicanálise poderiam ajudar a compreender os mecanismos libidinais e de desejo que estão em jogo; ii) uma abordagem empírica, mapeando mudanças no preço imobiliário e no perfil de usuários/moradores antes e após as práticas do Urbanismo Tático, ressaltando diferenças entre centro e periferia; iii) uma reflexão a partir da dialética espacial de Henri Lefebvre que esclareça as relações entre os espaços concebido, percebido e vivido neste tipo de prática; iv) abordagens de pesquisas qualitativas com entrevistas em profundidade com os grupos e indivíduos envolvidos neste tipo de prática, a fim de captar suas percepções; v) entender o papel do Estado em experiências concretas, se posturas mais autoritárias ou mais permissivas alteram os desdobramentos das práticas espaciais de intervenção no espaço público da cidade.

Para uma crítica da economia política hoje, é indispensável entender os mecanismos por meio dos quais o capitalismo se reproduz e garante sua força de dominação – e, com certeza, o urbanismo, estratégico neoliberal ou tático, faz parte deste seu repertório. Muito embora ele o faça não sem contradições. Desta forma, trata de encontrar nas contradições do capital, experiências de autogestão e de autonomia outras formas de mediação social para além da mercadoria, do trabalho e do dinheiro. Nossa hipótese é que nas periferias existe possibilidade para isso, uma vez que a precariedade material e a informalidade configuram um tipo determinado de experiência que passa pela lógica da desidentidade e da despossessão, se diferenciando das determinações abstratas do capital. A pesquisa sobre práticas cotidianas autônomas em pequenas escalas ainda deve avançar muito não apenas na compreensão destas ações mas para que possa contribuir com a busca da autonomia perdida. Para isso, a crítica é imprescindível para que se possa refletir sobre as (im)possibilidades desta prática.

notas

NA – O presente trabalho foi realizado com apoio da Capes, código de financiamento 001.

1
LEFEBVRE, Henri. La survie du capitalisme. Paris, Anthropos, 1973.

2
MARX, Karl. O Capital. Livro 1. São Paulo, Boitempo, 2013.

3
LYDON, Mike; GARCIA, Anthony. Tactical Urbanism: Short-term action for long-term change. Washington, Island Press, 2015.

4
BRENNER, Neil. Seria o urbanismo tático uma alternativa ao urbanismo neoliberal? e-Metropolis, ano 7, n. 27, 2016.

5
HOU, Jeffrey (Org.). Insurgent Public Space. Guerrilla Urbanism and the remaking of the contemporary city. Nova York, Routledge, 2010.

6
SPACE HIJACKERS, 2017 <https://spacehijackers.org/html/projects/circle.html>.

7
MUSA, Priscila. Movimentos Imagem. Belo Horizonte, EA UFMG. 2015. p. 299.

8
SCHNEIDER, Benjamin. How Park(ing) Day Went Global. Bloomberg CityLab, Nova York,

15 set. 2017 <https://www.citylab.com/life/2017/09/from-parking-to-parklet/539952/>.

9
DAVIDSON, Mariko. Tactical urbanism, public policy reform, and 'innovation spotting' by government: from Park(ing) Day to San Francisco's parklet program. Massachussets, MIT DSpace, 2013.

10
CARNEIRO, João. 'Rei da gambiarra', dono de bar transforma terreno em parquinho. Folha de São Paulo, Seção Cotidiano, Contagem, 10 jul. 2017 <http://m.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/07/1899761-rei-da-gambiarra-dono-de-bar-transforma-terreno-em-parquinho.shtml?cmpid=compfb>.

11
MARX, Karl. Op. cit., p. 132.

12
POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo, Boitempo, p. 513.

13
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, Contraponto, 1997.

14
TUPINAMBA, Gabriel. O que é abstração real? Breviário de Filosofia Pública, n. 54, v. 2, 2012.

15
ZIZEK, Slavoj. Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992.

16
POSTONE, Moishe. Tempo, trabalho e dominação social. São Paulo, Boitempo, 2014, p. 417.

17
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: a história da violência nas prisões. Petrópolis, Vozes, 1999.

18
SANTOS, Milton. 1997. TV Cultura. Entrevista ao programa Roda Viva, 31 mar. 1997. YouTube, 04 ago. 2015 <https://www.youtube.com/watch?v=xPfkiR34law>.

19
FERRO, Sergio. Arquitetura e trabalho livre. São Paulo, Cosac Naify, 2006.

20
ZIZEK, Slavoj. The ticklish subject. The absent centre of political ontology. Londres, Verso, 1999.

21
Economia política do espaço, uma economia biopolítica do corpo etc.

sobre os autores

Laura Castro é arquiteta e urbanista (2014), mestre (2016) e doutoranda em Arquitetura e Urbanismo pela Universidade Federal de Minas Gerais. Bolsista Capes, pesquisadora do Grupo Cosmópolis (CNPq) e do Observatório das Metrópoles (INCT), professora do Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura e do Urbanismo (UFMG).

Thiago Canettieri é geógrafo (PUC-MG/2012), mestre em Geografia (PUC-MG/2014), doutorando em Geografia (UFMG), bolsista Capes, pesquisador do Grupo Indisciplinar (CNPq) e do Observatório das Metrópoles (INCT).

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244.06 urbanismo
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