O espaço escolar é um dos primeiros lugares em que a criança se insere em uma experiência coletiva e assume um importante papel na construção do conhecimento e nas relações com o outro. Para Santos os anos escolares são importantes, durante os quais as crianças estabelecem estrutura mentais básicas. “O espaço escolar induz dialéticas fundamentais como: interno/externo, aberto/fechado, pequeno/grande, curvo/retilíneo, e conceitos como: o próprio, o alheio, o comum” (1).
Diversas são as pesquisas que investigam a relevância do espaço escolar enquanto ferramenta de aprendizagem. Anne P. Taylor afirma que a qualidade do espaço escolar tem um impacto considerável nos alunos e argumenta que o ambiente escolar é de fato um “currículo silencioso” que pode fornecer experiências de aprendizagem positivas (2).
“A chave é ver o ambiente construído e sua qualidade como parte ativa e indispensável no processo de aprendizagem [...]. Os objetos edifícios que projetamos não são meramente coisas a serem possuídas, mas também representam ideias, ações e crenças [...]. Lembre-se que nós, seres humanos, existimos como parte – e não à parte – do ambiente [...]. Nossa capacidade natural de aprender está diretamente ligada à constante interação com o meio ambiente [...]. Nós não podemos deixar de interagir com o nosso ambiente. Assim, a qualidade do meio ambiente afeta a qualidade da aprendizagem” (3).
Por outro lado, questiona-se cada vez mais o espaço escolar tradicional cuja arquitetura pauta-se simplesmente nas considerações técnicas como metragem, normas e regulamentos, deixando em segundo plano outras questões fundamentais como a estética, o prazer e o conforto. Uma profunda reflexão tem sido elaborada nas últimas décadas sobre a arquitetura escolar que promove a repetição de padrões de salas de aula exploradas no século 19: salas de aula enfileiradas com acesso por um extenso corredor, carteiras alinhadas em frente a um grande quadro negro ou branco, professor ocupando uma posição de poder e vigilância sobre os alunos. O layout padronizado com carteiras individuais, ainda presente no ensino fundamental, promove o distanciamento dos alunos sob o argumento das distrações, desordem e a garantia da disciplina e do controle (4).
Para Taylor, a arquitetura deve avançar sobre as questões normativas e quantitativas e possibilitar interações significativas.
“Infelizmente, muitos programas de arquitetura ou planos para instalações de escolas públicas começam com necessidades predeterminadas e requisitos técnicos mínimos, tais como metragem quadrada ou metodologias educacionais padronizadas [...] A criança não é totalmente educada e o edifício não está completo, a menos que objetivos sejam atingidos, incluindo altos níveis de satisfação estética e conforto. A partir desses simples paralelos de corpo/estrutura, mente/função e espírito/beleza, começamos a ver os tipos de perguntas que devemos fazer antes de projetar instalações educacionais. Em termos do corpo, quais sistemas de construção (iluminação, ventilação) e espaços ou formas (abertas, fechadas) apoiarão melhor o bem-estar físico e a aprendizagem sinestésica das crianças? Quais fatores ambientais fazem as crianças se sentirem seguras? Para desenvolver a mente, como os espaços projetados podem apoiar melhor as disciplinas e os conceitos relacionados? Como o design apoia o trabalho de crianças de todas as idades e estilos de aprendizagem? Como relações espaciais afetam sistemas de ensino ou como os professores ensinam? E, finalmente, à luz da aprendizagem espiritual, o que é prazer para uma criança? (5).
Taylor argumenta a favor da arquitetura como ferramenta de aprendizagem, uma vez que exerce forte influência no comportamento humano. Para a autora são três os princípios básicos para se projetar ambientes escolares dentro de uma visão holística: as pessoas são parte e não estão à parte do ambiente; o universo é naturalmente interdisciplinar e assim deveriam ser o projeto e as soluções; a mente humana funciona de forma integrada, o que influencia a maneira de aprender, e deve influenciar a maneira de se pensar a educação e seus espaços.
Esta relação entre a organização do espaço escolar e os padrões de interações entre usos, crianças e espaço são tratadas por Prakash Nair e Randall Fielding (6) cujo trabalho fundamenta-se na teoria da Linguagem dos Padrões, estabelecida na década de 1970 por Christopher Alexander (7). Para os autores, as salas de aula não devem ser planejadas para atuarem como espaços estáticos baseados na transmissão linear de conhecimento do professor para o aluno. Ao contrário as novas salas de aula devem ser planejadas para o aprendizado holístico, não unidimensional, mas multifacetado. Nesse novo modelo de aprendizado, “diferentes alunos (de diferentes idades) aprendem coisas diferentes de pessoas diferentes em lugares diferentes de maneiras diferentes e em momentos diferentes” (8). Ressalta-se ainda a importância de considerar todos os espaços da escola como lugares de aprendizado e não somente o espaço confinado da sala de aula.
Projetos de espaços educacionais adequados às necessidades contemporâneas, que consideram as múltiplas inteligências estão presentes em edifícios educacionais inovadores. São escolas abertas às novas propostas pedagógicas que se preocupam com a qualidade e a organização do espaço escolar. Nessas escolas os espaços são integrados, fluidos, sem rigidez ou hierarquias na estruturação de suas funções, possibilitando experiências diversas e mais personalizadas. Pode-se citar projetos premiados como a escola Fuji-Kindergarten no Japão (9) projetada por Tezuka Architects e construída em 2007, o Centro de Educação infantil Te Mirumiru, na Nova Zelândia, projetada por Collingrid and Smith Architects, construída em 2012 (10) e, no Brasil, destaca-se a escola de ensino fundamental Wish School, localizada em Tatuapé, São Paulo, projeto do jovem Grupo Garoa (11).
Este trabalho apresenta uma reflexão sobre a importância da experiência espacial na arquitetura e em especial na arquitetura escolar, estabelecida a partir das relações concretas ocorridas entre luz, cor, materiais e a própria conformação do espaço, percursos e usos. A partir desta reflexão apresenta o projeto da escola Wish School e discute a coerência da arquitetura com a proposta pedagógica pautada no ensino holístico. Na Wish School a experiência espacial se torna parte fundamental na materialização do currículo escolar.
Experiência e lugar
Para Christian Norberg-Schulz o lugar tem um caráter peculiar, que transcende o sítio ou local da construção, abrangendo a tectônica. Interpretando os conceitos da obra de Heidegger sobre o habitar, discorre sobre o argumento de que a dignidade do homem se realiza no lugar arquitetônico onde habita, e habitar é estar em paz em um local protegido, assim, “o ato de demarcar ou diferenciar um lugar no espaço se converte no ato arquétipo da construção e a verdadeira origem da arquitetura” (12). Norberg-Schulz, recupera o conceito romano do genius loci, sobre a existência de um espírito de um determinado lugar, e atenta sobre a realidade qualitativa e poética da arquitetura, que tem como tarefa a criação da "alma do lugar"(13).
Nosso corpo se relaciona com o meio e o meio afeta nosso corpo, não há corpo separado do espaço. Para Maurice Merleau-Ponty “será preciso despertar a experiência do mundo tal como ele nos aparece enquanto estamos no mundo por nosso corpo, enquanto percebemos o mundo com nosso corpo” (14). Portanto, toda a experiência da arquitetura é corporal e esta experiência reforça a sensação de pertencer ao mundo.
A percepção do espaço pelo homem depende de seus sentidos e da memória. O corpo não é somente físico, ele é enriquecido pela memória e pelos sonhos. Bachelard afirma que “os verdadeiros bem-estares têm um passado. Todo passado vem viver, pelo sonho, numa casa nova” (15). Para Bachelard os poderes do inconsciente fixam as mais distantes lembranças, confirmando assim, que o corpo sabe e lembra, e nossas sensações de conforto, proteção e lar estão enraizadas nas nossas primeiras experiências. Os espaços vividos de hoje, são os espaços de memória de amanhã, podendo ser resgatados ao reconhecê-los na paisagem, pois as imagens presenciais despertam imagens da memória, também os sentidos são capazes de nos transportar para lugares que recordamos e aflorar a imaginação.
Na arquitetura nós temos uma autêntica experiência física e sensorial, pois o corpo inserido no espaço é o mediador entre o mundo e nossa existência. "A arquitetura elabora e comunica ideias do confronto carnal do homem com o mundo por meio de emoções plásticas [...] o mister da arquitetura é tornar visível como o mundo nos toca" (16).
Para Christopher Alexander quando um espaço está em perfeita harmonia com seu propósito ele apresenta o que denomina “qualidade sem nome”, esta qualidade que estamos constantemente buscando em nossas vidas, e os lugares que intensificam os momentos apreciados ficam em nossa memória, por isso, a necessidade de uma arquitetura que seja capaz de potencializar esses momentos. Para o autor a qualidade de um espaço está relacionada aos padrões de acontecimentos que nele ocorrem e que, por sua vez, experimentamos. Espaços, edifícios ou cidades estão governados pelos eventos: atividades, acontecimentos, forças, situações. Os padrões de acontecimentos não se restringem apenas a eventos humanos, mas incluem também eventos físicos como o brilho do sol percebido em uma janela, o vento que sopra, a luz que adentra. O caráter do lugar é estabelecido pela linguagem, a relação dos padrões de acontecimentos e sua acomodação no espaço arquitetônico. A atenção se volta não somente à forma ou à geometria, mas aos eventos inter‐relacionados que nos permitem experimentar o espaço (17).
Bruno Zevi afirma que o espaço é o protagonista da arquitetura, e que as quatro fachadas de um edifício constituem apenas a caixa dentro da qual está encerrada a joia arquitetônica, isto é, o espaço. Para ele, a arquitetura não provém somente da geometria dos elementos construtivos que encerram o espaço, mas, precisamente, do vazio, do espaço interior em que os homens andam e vivem. O espaço arquitetônico não é neutro, ele oferece possibilidades de apropriações, pois é, sobretudo, o ambiente, a cena onde vivemos nossa vida. O caráter da arquitetura está “no fato de agir com um vocabulário tridimensional que inclui o homem” (18). Através do movimento pelo espaço, percebemos pontos de vista sucessivos, experimentando a espacialidade. Neste processo o tempo, a quarta dimensão, é fundamental para o entendimento do espaço. "Todas as obras de arquitetura, para serem compreendidas e vividas, requerem o tempo da nossa caminhada, a quarta dimensão" (19).
Esta busca na arquitetura pela experiência corporal refuta a imagem da arquitetura enquanto mero espetáculo, na qual a visão se sobrepõe aos demais sentidos corporais. Juhani Pallasmaa discorre sobre esta predileção pelos olhos. Para o autor, nos últimos anos, predominam na arquitetura os aspectos exclusivamente visuais que adotam a estratégia da persuasão instantânea, em vez de uma experiência embasada na existência humana, "a arquitetura modernista em geral tem abrigado o intelecto e os olhos, mas tem deixado desabrigados nossos corpos e demais sentidos, bem como nossa memória, imaginação e sonhos" (20). Para o autor estamos em diálogo e interação constante com o ambiente, assim, uma obra de arquitetura é experimentada em sua essência material, corpórea e espiritual.
“Em experiências memoráveis de arquitetura, espaço, matéria e tempo se fundem em uma dimensão única, na substância básica da vida, que penetra em nossas consciências. Identificamo-nos com esse espaço, esse lugar, esse momento, e essas dimensões se tornam ingredientes de nossa própria existência. A arquitetura é a arte de nos reconciliar com o mundo, e esta mediação se dá por meio dos sentidos” (21).
A arquitetura integra as estruturas físicas e o mundo perceptivo. As relações estabelecidas entre luz, espaço, cor, forma, textura, influenciam a percepção humana e podem possibilitar o “habitar” no verdadeiro sentido da palavra. Norberg-Schulz nos diz que juntos, esses elementos constituem a qualidade ambiental, que é a essência do lugar (22).
Este conjunto de experiências espaciais é, para Peter Zumpthor, a “atmosfera” de um lugar, e esta atmosfera se revela quando o espaço é capaz de nos tocar. "A atmosfera comunica com a nossa percepção emocional, isto é, a percepção que funciona de forma intuitiva e que o ser humano possui para sobreviver" (23). A obra Termas de Vals, projetada por Peter Zumthor e construída na Suíça em 1996 explora esse conjunto de experiências ao conectar a obra aos cinco sentidos da percepção humana: a experiência sublime da luz em contato com a materialidade da obra revestida em pedra, as diferentes temperaturas e cores da água, o cheiro da floresta, os sons ecoados no interior da obra, o calor da pedra exposta ao sol. Esse conjunto de sensações, explorado na obra de Zumthor, cria a “atmosfera” e possibilita “o banho nascido das montanhas”. Reforça o argumento do arquiteto, de que sua obra se inicia com uma imagem concreta, um “acontecimento corpóreo e físico”. A Zumpthor interessa a arquitetura concreta, com todo o arcabouço de sensações possíveis (24).
Para Herman Hertzberger uma arquitetura de qualidade é aquela que permite várias associações, que interpretadas individualmente, possibilita vários significados, determinando assim, uma relação entre seus usuários e entre estes e a própria arquitetura. Enfatiza também, que uma forma destituída de significados está reduzida ao seu objetivo mais primário. “Quanto mais níveis de experiências – no sentido de aspectos – forem levados em conta em nosso projeto, mais associações podem ser feitas e, portanto, maior será a gama de experiências para diferentes pessoas em situações diferentes, cada um com suas próprias percepções” (25).
A extensão da escola Montessori, projetada por Hertzberger e construída em Delft entre 1968 a 1970, explora a possibilidade do espaço escolar de assumir interpretações distintas, usos não programados e a apropriação individual do espaço, dotando-o de identidade e afeto. Vidraças com saliências largas assumem outras funções e podem abrigam vasos de planta, livros e objetos, preenchidos conforme necessidades individuais. Um pódio de tijolos no meio do saguão, aparentemente algo que está “no meio do caminho” pode servir de local de reuniões informais de alunos e assumir distintas interpretações. Pode ainda se expandir transformando-se em um palco para apresentações. Para Hertzberer “deveríamos fazer projetos de tal modo que o resultado não se referisse abertamente a uma meta inequívoca, mas que ainda admitisse a interpretação, para assumir sua identidade pelo uso” (26).
Através dos cinco sentidos o homem experimenta o espaço. Esse espaço habitado e vivenciado dá origem a um conjunto de imagens, cheiros, sons, recordações, valores que construirão nossa forma de apreender o ambiente. Yi-Fu Tuan afirma que é através da percepção que o homem sente o ambiente, gerando juízo de valor, atitudes e ações sobre ele. “O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor” (27).
Diante do exposto, ressalta-se a importância de se produzir uma arquitetura com ênfase na experiência, na percepção e nos sentidos, elementos que devem ser incorporados principalmente na arquitetura escolar, que configura, depois da casa, um dos lugares mais importantes na socialização da criança. A arquitetura do edifício escolar deve ser capaz de estimular todos os sentidos da criança, transmitindo informações perceptuais que extrapolam a preocupação com a funcionalidade e a estética.
O espaço escolar no ensino infantil
É cada vez mais necessário que o projeto arquitetônico do ensino infantil possibilite a realização da proposta pedagógica, favorecendo a interação, apropriação e identificação da criança com o espaço.
Os estudos de Antonio Frago e Agustin Escolano apresentam o caráter cultural e a função curricular do espaço escolar, considerando-o como um lugar dotado de significados que transmite uma grande quantidade de estímulos e conteúdo. Para os autores a arquitetura escolar é em si mesma um programa, “uma espécie de discurso que institui na sua materialidade, um sistema de valores, como os de ordem, disciplina e vigilância, marcos para a aprendizagem sensorial e motora e toda uma semiologia que cobre diferentes símbolos estéticos, culturais e também ideológicos” (28).
Para conhecer o espaço, é preciso que a criança se movimente por ele, se apropriando de suas características e apreendendo as relações que ali se estabelecem. Mark Dudek afirma que até os 7 anos a criança é muito curiosa e tende a explorar fisicamente o espaço, se relacionando com a realidade externa, adquirindo o conhecimento através da interação com os objetos (29).
A percepção e exploração do meio é um processo de aprendizagem. Gisele Azevedo, na introdução de sua tese Arquitetura Escolar e Educação: um modelo conceitual de abordagem interacionista, coloca que o espaço escolar está repleto de vivencias sociais e cognitivas, e a dinâmica de relações extrapola a simples noção da tridimensionalidade do espaço, para ter significação de lugar, reconhecido e vivenciado pelos usuários (30). Segundo Azevedo apesar dos projetos escolares ainda repetirem os parâmetros da sociedade industrial, há uma tentativa de se distanciarem do perfil das escolas do século 19, que tem como preceito o controle e a disciplina.
A apropriação dos espaços pelas crianças ocorre principalmente pelas brincadeiras, através das quais as crianças criam arranjos espaciais e interagem com o espaço em sua totalidade. Assim, para que a criança transforme o ambiente em lugar, não basta que ela o utilize. “A apropriação é um processo dialético, que envolve tanto a mudança do ambiente quanto da própria criança, através de diferentes modalidades de brincadeiras” (31).
“É no brincar das crianças que o espaço adquire uma dimensão essencial: não há possibilidade alguma de brincar sem que haja disponibilidade de um espaço e de um tempo adequados, ambos, ao tipo de movimento e atividade que uma determinada brincadeira exige. [...] A criança imita, simula, inventa jogo o tempo todo, multiplica e enriquece sua experiência através da brincadeira e da observação” (32).
Ambientes que oferecem possibilidades de renovação possibilitam que o ensino ocorra de maneira mais interessante. Uma proposta educacional mais dinâmica, normalmente exige espaços mais flexíveis nos quais as crianças podem deixar suas marcas e ter experiências criativas ao reinventar suas brincadeiras.
Inúmeras e muito significativas foram as mudanças ocorridas na maneira de entender o desenvolvimento da criança e o processo educativo. Diante das novas propostas sobre a educação infantil, e de tantas e novas demandas sociais, faz-se necessário um novo olhar sobre o espaço físico escolar. Nesse novo contexto, os arquitetos são responsáveis pela proposição de soluções mais adequadas às necessidades pedagógicas atuais. Para Marcella Deliberador diversas são as metodologias de ensino e diversos devem ser os espaços escolares. “A bibliografia sobre metodologias pedagógicas sinaliza novos paradigmas que pressupõe maior flexibilidade de uso dos espaços, com presença de maior variedade de configurações” (33).
Espaço e experiência na escola Wish School
A Wish School fica localizada em Tatuapé, São Paulo. Projeto do jovem Grupo Garoa, construído no ano de 2016, vencedor do prêmio 21st century schools in latin america and the caribbean 2018 do banco intra-americano do desenvolvimento e menção honrosa na 11ª bienal de arquitetura de São Paulo 2017.
O projeto arquitetônico da Wish School se desenvolve a partir da preexistência de dois galpões conectados, implantados em um terreno de 15m de largura e 50m de profundidade. Aos arquitetos foi lançado o desafio de transformar o rígido e inóspito espaço dos galpões em um ambiente acolhedor que permitisse à escola desenvolver um projeto pedagógico inovador, para crianças de 2 a 14 anos: sem hierarquias, sem salas de aula convencionais, sem divisões por séries ou disciplinas, sem avaliações tradicionais por provas. Reconhecida pelo Ministério da Educação – MEC como uma das 178 instituições inovadoras e criativas (34), a escola propõe o ensino bilingue e holístico, uma abordagem que,
“acredita que todos os aspectos da experiência humana devem ser considerados, não só o intelecto racional (como na educação tradicional), mas também os aspectos físicos, emocionais, sociais, culturais, criativos, intuitivos e espirituais da natureza de cada ser humano” (35).
Para este desafio, o processo de projeto acomodou dinâmicas participativas mediadas pelo arquiteto e pesquisador Caio Vassão com o grupo Garoa, alunos e educadores, elaboradas, segundo os arquitetos, “para entender a complexidade das interações envolvidas nessa abordagem de ensino”:
“Assim criamos não somente um panorama de questões práticas e funcionais a serem abordadas, mas também expectativas sensoriais, algumas abstratas, outras literais; às vezes irrealizáveis, às vezes precisas e abstratas” (36).
Percursos
Nossa visita à escola ocorreu durante o recesso escolar de julho de 2018. Em meio a atividades de manutenções, caminhamos pelos espaços na ausência das crianças, acompanhados por Andressa Lutiano, fundadora da Wish School. Nos foi permitido experimentar o espaço vazio. Estávamos interessados na experiência arquitetônica, na atmosfera, na luz e na materialidade do espaço. Experimentamos nós, adultos arquitetos, um lugar projetado para as crianças e professores do ensino fundamental.
Vista da rua, um muro colorido e parcialmente translucido esconde um tímido galpão de cor branca, coberto por duas águas de um típico telhado metálico industrial. Uma arquitetura claramente introspectiva.
Ao entrar, o lugar atrás do muro nos revela uma grata surpresa: espaço, luz, cor e experiência são protagonistas em todo o percurso. A escala acolhedora se revela em vários detalhes: o banco de espera, a altura dos tetos, as bandeirolas ainda presentes, as cores, materiais e texturas. Uma arquitetura livre e sem hierarquias.
A liberdade do projeto pedagógico se traduz na liberdade dos espaços projetados e nas diversas possibilidades de percursos. Os limites são fluidos e não existem transições rígidas entre as salas de aula e os espaços que as circundam. O projeto explora a capacidade da arquitetura de atuar como ferramenta de aprendizado e permitir que seus espaços se transformem e se adpatem às situações cotidianas. Ao propoor espaços abertos, integrados e fluidos possibilitam os usos não programados e expontâneos, por alunos e professores.
“Abordamos a planta como território composto por zonas de contração e expansão, em que existem fronteiras e bordas, mas elas são tênues, permitindo e incentivando a transgressão, catalisando a apropriação imaginativa, entendendo as crianças como sujeitos ativos. Os corredores, lugares em que a única função é o movimento contínuo do ir e vir, não existem. Todos ambientes são expansões da sala de aula formal e propícios para a assimilação de conhecimento” (37).
A tradução do currículo pedagógico no espaço escolar se revela fundamental neste projeto. Rompendo com a rigidez do galpão preexistente, os espaços enxertados em seu interior fogem à ortogonalidade. Não existe obviedade na organização dos percursos.
O pavimento térreo é composto por salas de aulas transparentes rodeadas por grandes áreas abertas e iluminadas pela luz natural. Caminhar pela escola é descobrir passagens, entrar, sair, subir, descer. O corredor como lugar de passagem é substituído por um espaço fluido, mutante, que não apenas conecta os diversos ambientes da escola, mas é principalmente um lugar de trocas e experiências, extensões das salas de aula.
Ao chegarmos ao fundo do pavimento térreo nos deparamos com o refeitório aberto e integrado. Ali, as rampas cruzam nosso olhar, rompem com a escala do pé-direito elevado e nos conduzem ao segundo pavimento. Também a rampa é lugar de permanência. Seus patamares ampliados se tornam pátios abertos e possibilitam vivências: rodas de conversa, brincadeiras.
Subindo a rampa, ou as duas escadas localizadas lateralmente, chegamos ao segundo pavimento. Esse andar é composto por uma grande laje, que foi enxertada na estrutura do galpão pré-existente e não cobre completamente o piso térreo, permitindo a integração visual entre os andares. Integrar, iluminar e comunicar são aspectos fundamentais da organização espacial.
Ao chegar ao segundo pavimento encontramos um espaço ainda mais livre. O mezanino é um grande lugar de brincar dedicado às crianças menores. Mesmo sem a presença das crianças em nossa visita é possível apreender a liberdade dos espaços e as marcas de suas presenças. Quase podemos escutá-las. Castelos de papel, bandeirolas, cartazes pendurados e brinquedos se espalham pelos espaços que rodeiam as salas de aula.
Sala de aula: integração e flexibilidade
Também a sala de aula é fluida, dinâmica, moldável. A sala deixa de ser um local de longa permanência, para atuar como um lugar de apoio, um porto seguro, que permite saber para onde ir e voltar, no início e ao final do dia.
Existem duas configurações. A primeira com vedações fixas, mas completamente transparentes: uma simples e engenhosa combinação de estrutura metálica vedada com telhas translucidas, que permitem total visibilidade do lado de fora. A estrutura de vedação das salas é também a estrutura para o suporte das prateleiras que recebem os materiais usados nas salas, expostos para todos os olhares, que passam ou que usam a sala. Esta mistura de metal laranja, telhas transparentes, prateleiras de madeira e materiais coloridos compõem a atmosfera das salas, com suas cores, formas e texturas.
A segunda configuração é composta por mobiliários giratórios, que permitem diversas possibilidades. As paredes são armários com nichos e janelas. Esta configuração permite tanto as atividades mais introspectivas, que requerem concentração, e atividades integradas e abertas para os ambientes externos à sala. Através das paredes móveis é possível modelar o tamanho da sala de aula. Hora recolhe, hora se expande. As paredes móveis, ainda que fechadas, permitem ver o lado de fora, uma vez que os mobiliários incluem vazios, janelas e passagens que integram interior/exterior. O lugar da escrita com giz se torna uma grande parede coberta com tinta, rompendo com as bordas e limites do quadro tradicional.
A flexibilidade do mobiliário permite que a organização do espaço da sala de aula se adapte as atividades pretendidas, permitindo os usos não programados e as apropriações individuais.
Luz, espaço, dentro e fora.
A luz natural é protagonista nos espaços projetados para a Wish School. Em todo o percurso a luz natural invade os ambientes através de recursos simples, mas engenhosos. A cobertura metálica preexistente recebeu a inclusão de claraboias que possibilitam uma luz homogênea e distribuída por toda a extensão do galpão. Caixas de luz brotam das telhas metálicas conferindo movimento ao teto e direcionando nosso olhar.
As formas arquitetônicas, mesmo aquelas que parecem estáticas, podem se tornar dinâmicas com o constante processo de mutação da luz. O passar das horas faz com que a luz se projete em diferentes orientações, como também as suas variações de cores ao longo do dia e podem influenciar nossa percepção espacial e nos proporcionar ricas experiências visuais. A luz torna as coisas visíveis e nos informa sobre o que nos cerca, influenciando a nossa percepção e compreensão do espaço, nos permitindo apreciar suas qualidades e particularidades como os matizes das cores, a textura, a forma e a atmosfera dos interiores. Assim, a relação entre luz e o espaço é fundamental na arquitetura escolar.
“A luz, material, mas sempre em movimento, é precisamente a única capaz de fazer com que os espaços definidos pelas formas construídas com material denso, flutuem, levitem. Ela faz voar, desaparecer a gravidade. Vence-a. O insuportável peso da matéria inevitável e imprescindível só pode ser vencido pela luz” (38).
Nos fundos da escola, exatamente ao fundo do galpão, encontramos outra grande abertura zenital, iluminando a parede de pé-direito duplo e nos comunicando o fim do primeiro pavimento.
As atividades escolares normalmente acontecem em espaços internos. Por isso a importância de se oferecer um horizonte externo. É fundamental que se desenvolva na escola espaços com conectividade entre interior e exterior, que tenham visibilidade para toda as áreas de aprendizado, com aberturas voltadas para os pátios cobertos e descobertos, para os jardins e vegetações.
Em escolas tradicionais, a atenção dos alunos está vinculada a uma completa alienação do que acontece a sua volta, impedindo o olhar para fora, com o uso de janelas altas. “O que reforça uma educação com métodos e conteúdo desinteressante, incapazes de manter a concentração” (39).
No projeto elaborado para a Wish School a integração dentro/fora revela-se fundamental. As paredes das salas de aula são transparentes ou móveis, permitindo completa integração visual. Ora se pode configurar como espaço fechado, ora se abrem para interagir com os espaços circundantes. “Expandem para receberem atividades com mais interação, contraem para atividades introspectivas” (40). Portas, paredes e janelas são desenhadas de forma não convencional. As paredes se movem e a janela é mobiliário. Portões basculantes fazem a integração interior/exterior. Nas fachadas, janelas de vários tamanhos permitem ver o mundo lá fora, dispostas na altura das crianças.
As aberturas com tamanhos e alturas diversas e as envoltórias dinâmicas podem promover um interessante jogo de luz e sombra. É possível gerar com a arquitetura formas e espaços diferenciados, criando cantos e recantos propícios ao surgimento de situações e atividade lúdicas, que segundo Elza Santos “não só colabora para o desenvolvimento como é ferramenta valiosa no processo de aprendizagem infantil” (41).
O mesmo cuidado é percebido na escolha dos elementos que compõe a luz artificial. Grande parte do espaço externo é iluminado ao entardecer por luminárias penduradas por cabos que conferem uma atmosfera acolhedora e lúdica.
Também nos espaços interiores há um desenho diferenciado para a iluminação artificial, utilizando recursos simples, mas que conferem identidade aos espaços. Desenhos compostos por calhas pendentes com lâmpadas tubulares cruzam o teto das salas de aula e dos espaços de conexão, possibilitando uma iluminação indireta e suave.
O conjunto composto pelas formas, cores, texturas e luminosidade, projetado pelos arquitetos, soma-se à materialidade conferida pelos próprios objetos preenchidos pelo uso cotidiano do espaço. Juntos conferem a escala acolhedora e mutante, uma vez que a arquitetura permite a apropriação individualizada do espaço.
Considerações finais
A interação da criança com o espaço e as relações estabelecidas no ambiente escolar influenciam o processo de aprendizado e o desenvolvimento da criança. Este reconhecimento do espaço escolar enquanto elemento pedagógico tem se afirmado nas últimas décadas.
A qualidade espacial em ambientes escolares está relacionada a um conjunto de variáveis: forma, luz, sombras, texturas, percursos, escala. Juntas proporcionam a experiência espacial: como a criança percebe, interage e se apropria do espaço. É necessário projetar espaços em que as crianças possam experimentar com todo o corpo e mente. É no contexto da arquitetura que o corpo experimenta o espaço, tanto do ponto de vista da ação, quanto da percepção.
A organização do espaço escolar não hierárquico revela também a não hierarquia nas relações de ensino-aprendizado: a transmissão de conhecimento não é linear, mas multifacetada. Maior liberdade espacial proporciona à criança mais autonomia em suas decisões e responsabilidade por seus atos. O espaço compartilhado e livre requer que as regras sejam combinadas de forma coletiva, incentivando a colaboração, o compartilhamento e a preocupação com o outro, virtudes necessárias e urgentes aos novos tempos, também fluidos e mutantes.
notas
1
SANTOS, Elza. C. Dimensão lúdica e arquitetura: o exemplo de uma escola de educação infantil na cidade de Uberlândia. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 2011, p.41.
2
TAYLOR, Anne P. Linking Architecture and Education: sustainable design for learning environments. New Mexico, University of New Mexico Press, 2009.
3
Idem, ibidem, p. 25. Tradução das autoras.
4
ARRIADA, Eduardo; NOGUEIRA, Gabriela M.; VAHL, Mônica M. A sala de aula no século XIX: disciplina, controle, organização. Conjectura, v. 17, n. 2, maio/ago. 2012, p. 37-54.
5
Idem, ibidem, p. 5-6. Tradução das autoras.
6
FIELDING, Randall; NAIR, Prakash. The Language of School Design: Design Patterns for 21st Century Schools. Minneapolis, Designshare, 2005.
7
ALEXANDER, Christopher; ISHIKAWA, Sara; SILVERSTEIN, Murray; JACOBSON, Max; FIKSDAHL-KING, Ingrid; ANGEL, Shlomo. Uma Linguagem de Padrões. A Pattern Language. Porto Alegre, Bookman, 2013; ALEXANDER, Christopher. El modo intemporal de construir. Barcelona, Gustavo Gili, 1981.
8
FIELDING, Randall; NAIR, Prakash. Op. cit., p. 19. Tradução das autoras.
9
TEZUKA ARCHITECTS. Fuji Kindergarten. [s.d.] <http://www.tezuka-arch.com/english/works/education/fujiyochien/>.
10
COLLINGRIDGE AND SMITH ARCHITECTS. Te Mirumiru Early Childhood Education Centre, Kawakawa. [s.d.] < https://collingridgeandsmitharchitects.com/portfolio/te-mirumiru-kawakawa/?portfolioCats=71>.
11
GRUPO GAROA. Wish School <http://www.grupogaroa.com/47wish.
12
NESBITT, Kate (Org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 443.
13
PLUMMER, Henry. La Arquitectura de La Luz Natural. Barcelona, Blume, 2009.
14
MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins fontes, 1999, p. 278.
15
BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo, Martins Fontes, 1993, p. 25.
16
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: a arquitetura e os sentidos. São Paulo, Bookman, 2011, p. 43.
17
ALEXANDER, Christopher. El modo intemporal de construir (op. cit.).
18
ZEVI, Bruno. Saber ver a arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 17.
19
Idem, ibidem, p. 23.
20
PALLASMAA, Juhani. Op. cit., p. 19.
21
Idem, ibidem, p. 68.
22
NESBITT, Kate. Op. cit.
23
ZUMTHOR, Peter. Atmosferas: entornos arquitetônicos – as coisas que nos rodeiam. Barcelona, Gustavo Gilli, 2006, p. 12.
24
Les Thermes de Pierre. Direção Richard Copans. Arte France, Les Films d'ici, RMN, 2001 (26min). YouTube, 10 set. 2010 <https://www.youtube.com/channel/UCNpYu3iAblTfQcOyAw-xdvA/feed>.
25
HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 174.
26
Idem, ibidem, p. 153.
27
TUAN, YI-FU. Espaço e Lugar: a perspectiva da experiência. São Paulo, Difel, 1983, p. 7.
28
FRAGO, Antonio. V.; ESCOLANO, Agustin. Currículo, espaço e subjetividade: a arquitetura como programa. Rio de Janeiro, DP&A, 2001, p. 26.
29
DUDEK, Mark. Children’s Spaces. New York, Architectural Press, 2005.
30
AZEVEDO, Gisele. A. N. Arquitetura escolar e educação: um modelo conceitual de abordagem interacionista. 2002. Tese de doutorado. Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2002.
31
MOREIRA, Ana Rosa C. P. Ambientes da infância e a formação do educador: arranjo espacial no berçário. 2011. Tese de doutorado. Rio de Janeiro, EDU UFRJ, 2011, p. 50.
32
LIMA, Mayumi S. A cidade e a criança. São Paulo, Nobel, 1989, p. 187.
33
DELIBERADOR, Marcella. S. Parâmetros da arquitetura escolar e o jogo de cartas como ferramenta de apoio ao desenvolvimento do programa arquitetônico. 2016. Tese de Doutorado. Campinas, FEC Unicamp, 2016, p. 25.
34
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Inovação e criatividade na educação básica. Mapa <http://simec.mec.gov.br/educriativa/mapa_questionario.php>.
35
WISH SCHOOL. Projeto Pedagógico <https://www.wishanaliafranco.com.br/projeto-pedagogico>.
36
GRUPO GAROA. Op. cit.
37
Idem, ibidem.
38
BAEZA, Alberto. C. A ideia construída. Portugal, Caleidoscópio, 2013, p. 51.
39
AZEVEDO, Gisele. A. N. Op. cit., p. 113.
40
GRUPO GAROA. Op. cit.
41
SANTOS, Elza. C. Op. cit., p. 41.
sobre as autoras
Cynthia Marconsini é arquiteta e doutora em Ciências da Arquitetura (Proarq UFRJ, 2012). É professora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Cidade da Universidade Vila Velha e líder do Grupo de Pesquisa Sistemas Contemporâneos de Projeto.
Grace Queiroz é arquiteta, mestranda no programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Cidade da Universidade Vila Velha e pesquisadora do Grupo Sistemas Contemporâneos de Projeto.