“Imaginemos essas colunas que vão se recuando pouco a pouco na parede, acompanhadas por pequenas estruturas – levemente colunares, estreitas, ogivais e igualmente direcionadas para o céu – destinadas a abrigar, em forma de baldaquino, as estátuas das figuras santas; imaginemos como, enfim, cada nervura, cada botão parece desabrochar num capitel em flor, num folheado, ou em qualquer outra figura da natureza, traduzida ali nos sentidos da pedra”.
Goethe, Poesia e Verdade.
O revival gótico
Até princípios do século 18, a arquitetura gótica havia recebido duros julgamentos de críticos e artistas coevos por se tratar de um estilo cujas formas pouco prezavam os cânones clássicos subsumidos na norma da geometria regular. Essa perspectiva negativa - muito bem esclarecida em artigo seminal do filósofo e historiador das ideias Arthur O. Lovejoy (1) – reduziu seu alcance no transcurso do Setecentos, sobretudo na Alemanha e Inglaterra, devido a um certo “renascimento do gótico” (gothic revival) estimulado por poetas, arquitetos e pintores. Não por acaso, o escritor inglês Horace Walpole recomendou com entusiasmo que os artistas se direcionassem ao gótico, go to the gothic! (2).
O estilo gótico para esses artistas representava a origem e identidade estética e cultural das terras nórdicas em contraposição ao solo clássico da Grécia e Roma. O revival significava, em termos éticos e políticos, a rejeição à conjuntura do Antigo Regime, prezando a liberdade e autonomia humanas. Era uma espécie de subversão às doutrinas iluministas, pois lançava luz sobre a subjetividade e gênio criativo em vez da codificação racional da Ciência Moderna e do mecanicismo de René Descartes. A natureza seria o símbolo de tal significação. Suas leis, embora veladas aos sentidos, transpareciam em formas livres e irregulares, mas harmônicas na conjunção do detalhe com o todo.
O poeta alemão Johann Wolfgang von Goethe se interessou pelo debate e respectiva circulação na Alemanha. A sua curiosidade aumentou depois do contato estabelecido, por volta de 1770, com o filósofo Johann Gottfried Herder, admirador das catedrais góticas por serem a expressão da cultura popular. A partir de então, Goethe se empenhou em escrever críticas e artigos sobre a arquitetura, tema, aliás, que perpassa sua obra literária desde Os sofrimentos do jovem Werther ao Fausto II.
Há dois escritos em particular nos quais ele tece reflexões sobre a arquitetura de duas catedrais: a de Estrasburgo, observada em seus detalhes nos anos de juventude, e a de Colônia, cidade revisitada na primeira década do século 19. Os textos são fundamentais à significação do estilo gótico como alegoria da liberdade, natureza e autonomia do gênio criativo humano.
O primeiro ensaio – Von deutscher Baukunst (“Sobre a arquitetura alemã”) – é de 1772. Seu conteúdo subsome o efeito que a catedral de Estrasburgo suscitaria em quem a contemplasse. A partir da observação de vários elementos decorativos, do edifício em si e da correspondência entre essas duas escalas, o jovem poeta e estudante de Direito percebeu a íntima relação entre arte e o que ele entendia ser “natureza”. Arte e natureza se enquadravam em uma totalidade formada por unidades que se relacionavam organicamente umas com as outras; sendo que a partir dessa relação, o objeto artístico alcançava originalidade. Goethe põe luz sobre o estilo gótico como expressão de arte igualada à Antiguidade clássica. Como refletiu W.D. Robson-Scott (3), o texto de 1772 seria o marco histórico do crescente gothic revival na Alemanha, impulsionando outros artistas a dar atenção à origem, técnica e ornamentação de outras catedrais.
O segundo texto foi publicado em 1823 e curiosamente intitulado de Von deutcher Baukunst. Goethe retoma algumas considerações iniciadas no ensaio sobre o exemplar de Estrasburgo. Aqui o “sensível” compensa-se com o empírico por meio da leitura da planta arquitetônica e desenhos da catedral de Colônia, cidade novamente visitada em 25 de julho de 1815. A afinidade entre o imaterial e o material e sua correspondência matizam a estética goetheana e a maneira de compreender a arte em sentido amplo, assunto, aliás, desenvolvido com toda a competência por Maria Filomena Molder e Pedro Fernandes Galé (4).
Os artigos indicados contextualizam-se grosso modo com a trajetória artística de Goethe. Talvez seja possível, embora mereça um debate maior, organizar a obra do poeta em dois momentos não estanques, mas correlatos e interdependentes. Convém lembrar que esta periodização corre o risco de cristalizar sua produção artística numa rigidez que se opõe à sua estética. Apesar de ser uma abordagem necessária, o presente artigo não tratará desse assunto, haja vista as digressões resultantes que prejudicariam os seus aspectos teleológicos.
A primeira fase corresponde ao período da juventude, no qual a literatura se coloca como centro das atenções. Nesse momento, o poeta se alinhou à estética do movimento Sturm und Drang (“Tempestade e Ímpeto”), segundo a qual a subjetividade predomina sobre a empiria, e categorias como “gênio”, “característico” e “criação” seguiram o movimento originário no espírito. O Sturm und Drang dizia respeito à sublevação do sentimento e do “instinto vital” contra a tirania do entendimento apregoado pelo Iluminismo, enfatizando o gênio criador livre de preceptivas e da racionalidade catalográfica (5). O ensaio sobre a catedral de Estrasburgo pôs luz na subjetividade, sendo a arquitetura em si o resultado da atividade genial do arquiteto.
O segundo momento ocorreu na maturidade do poeta. Aqui se tem o mesmo ímpeto da juventude de entregar-se à vida, para além de um racionalismo abstrato e limitante (6). Isso de fato está intimamente ligado ao entendimento de Goethe acerca da “vida” como categoria filosófica, revelada na sucessão de eventos que formam a própria história e cultura. A arquitetura, como arte histórica e culturalmente criada e vivenciada, ultrapassa os limites do projeto e da forma. Nos ensaios, a tectônica aparece como apropriada de ritmos que se dirigem ao infinito, sem limites ou estaticidade.
A Catedral de Estrasburgo e a natureza
A juventude de Goethe foi marcada por uma vasta produção literária, especialmente de poemas voltados a clarificar as relações sociais da sociedade alemã. Além dos eventos corriqueiros que celebravam as representações humanas em situações habituais, como navegar sobre um lago, comemorar a amizade numa taberna ou simplesmente refletir num jardim, Goethe se inspirou na natureza e nas maneiras de sua apresentação ao olhar sensível do espectador. A natureza, seja em seu aspecto científico, literário ou filosófico, seria o modelo de representação estética.
O que seria “natureza” para Goethe? Como a arte a comunica convertendo-se em modelo? Seria bom antes relembrar acerca da divergência do conceito de natureza postulado pelas Ciências Naturais do Iluminismo e aquele aderido por Goethe. Seus estudos botânicos, cromáticos e atmosféricos revelam a não exclusividade da racionalidade científica no desvendamento dos fenômenos naturais. Há uma certa renúncia às sistematizações catalográficas, como sugerem os modelos de classificação botânica de Lineu ou as imagens da Enciclopédia de D’Alembert, que apresentam a natureza como uma máquina funcional.
Para o poeta, a catalogação parece contraditória e insuficiente para explicar as (ir)regularidades visíveis e invisíveis da natureza, pois esta não tem sistema, mas vida vivificante em sucessão ilimitada, sendo algo que transcende a própria empiria sem deixar de ser sensível. Em conversa com Johann Peter Eckermann, Goethe assegurou a infinitude da natureza adjetivando-a de “incomensurável”, “difícil de encontrar a norma em meio a tão grandes irregularidades” (7). É essa profundidade insondável do fenômeno natural que o atraiu examiná-lo por muito tempo. Ali ele encontrava “o eterno encanto...de buscar sempre novas perspectivas e novas descobertas” (8).
Por outro lado, a natureza também se expõe em pequenos recortes. Isso é notório quando Goethe, ao arrolar suas escolhas poéticas da juventude, definiu a natureza como “uma série infinita de detalhes que nos são insignificantes e triviais” (9). Escondida nos pormenores existe uma natureza originalmente polarizada, que afirma os vínculos entre o todo e as partes constitutivas. Ecos desse dualismo ressoam nas primeiras epístolas de Werther. A carta de 10 de maio de 1771 descreve uma cena pastoral com o protagonista deitado na relva observando em sua solidão um jardim-paisagem (10) percebido como locus amoenus. Werther experimenta uma tranquila existência ao vivenciar maravilhado “o pequeno mundo (kleine Welt) (11) entre as ervas, essa multidão incontável de minúsculos vermes e insetos e sinto a presença do Todo-Poderoso que nos criou à sua imagem e semelhança” (12). Para além das questões morais envolvidas nesse verso, o microcosmo que aparece diante de Werther se potencializa no divino. Deus está, inclusive, nos pequenos vermes e insetos.
Na ocasião do seu primeiro ensaio – Von deutscher Baukunst –, Goethe observou a arquitetura segundo critérios subjetivos, de acordo com os categorias do movimento Sturm und Drang, tais como gênio, criação, característico e sentimento (13). O efeito do volume arquitetônico sobre os sentidos do espectador assumiu a base empírica das considerações. Conforme Dorothea von Mücke (14), o poeta discute a catedral como um trabalho de arte que permite verificar seus efeitos sobre o espírito humano. Em outros termos, a arquitetura deve ser entendida como arte com formas inspiradas na natureza, em vez de subsumir a exclusividade funcional da engenharia. Deixar-se guiar pela natureza é algo mais que reproduzi-la mimeticamente, significa atuar como atua a natureza e criar formas cuja beleza lhe seja similar.
Quando Goethe chegou a Estrasburgo, a catedral da cidade lhe causou um profundo e silencioso efeito: “eu não tinha a menor condição de compreender o que sentia naquele instante, mas levei comigo aquela impressão difusa ao subir apressadamente até o miradouro” (15). Alcançar o ponto mais alto do edifício seria uma experiência de liberdade. Embora o espectador se visse esmagado pela dimensão do monumento quando observado no nível do chão, esse efeito se dissipava ao se deparar com as extensas proporções do panorama revelado do alto.
Diante de si erguia-se um “monstro disforme e encrespado” designado pejorativamente pelos críticos da época de “gótico”. Estilo cuja semântica congregava um léxico concebido a partir de termos predominantemente negativos, tais como “indeterminado, desordenado, remendado e sobrecarregado” (16). A noção de Goethe sobre o estilo gótico diverge das preceptivas contemporâneas, sobretudo as formuladas no Renascimento. Enquanto os modelos arquitetônicos oriundos da Idade Média eram caracterizados como desarmônicos em decorrência de diversos motivos ornamentais, o poeta entendia de outra maneira aquela diversidade plástica. A catedral era um objeto artístico original e de linguagem universal essencialmente por imitar o efeito da natureza ao expor milhares de particularidades conectadas umas às outras e ao todo arquitetônico. Nesse aspecto, o gótico se tornou o símbolo da liberdade e expressão da natureza, pois havia uma unidade harmônica criada pela coesão decorativa.
Os detalhes da fachada, esculpidos por diferentes mãos, mas imaginados pelo gênio do arquiteto Erwin von Steinbach (c.1240-1318), celebram a harmonia como princípio estético sem se subjugar à simetria canonizada nas preceptivas da Antiguidade clássica. Faltava-lhe uma torre sineira, suas laterais foram ornamentadas por elementos típicos do medievo e os contrafortes garantiam a estabilidade do edifício.
A habilidade da catedral de esconder a harmonia de suas proporções em excessivas particularidades tornava possível o sublime efeito da imensa massa sobre o observador. O sublime deve ser compreendido não segundo o pensamento kantiano da terceira Crítica da Faculdade de Julgar, obra publicada dezoito anos após a escrita do ensaio de Goethe. Poderíamos pensá-lo em conformidade às reflexões de Longino, como um “eco de um espírito nobre” (17). Goethe deixa transparecer indiretamente em suas vivências a aceitação do conceito longiniano de sublime, como se nota na passagem: “uma obra de arte pode até nos causar uma impressão nobre e digna no que diz respeito à grandeza, à singularidade e à proporcionalidade de suas partes” (18). O poeta projetou para a enorme massa de pedras seus sentimentos e, por meio daquelas formas, conseguiu elevar seu espírito:
“Mas, ó, quando pairo sobre as aberturas sublimes e sombrias aqui ao lado, que parecem estar vazias e inúteis! Em suas formas audaciosas e esbeltas escondi as forças misteriosas que deveriam erguer aquelas duas torres altas no ar, das quais apenas uma está aí triste, sem o ornamento principal de cinco pontas que lhe destinei, para que as províncias circundantes prestassem homenagem a ela e ao seu irmão real” (19).
Essa afinidade entre arquitetura e natureza, isto é, perceber o todo por meio do detalhe e o detalhe em termos do todo, fundamentou os princípios estéticos adotados por Goethe ao longo de sua carreira literária. Apreender o absoluto no particular e vice-versa promovia a catedral como um objeto original. Como ele próprio afirma no ensaio, natureza e arte fusionadas conformam um todo eterno (20). O objeto de arte projetado por Steinbach em Estrasburgo assemelhava-se aos exemplares da natureza, anunciando a elevação do gênio humano ao status de divino: “O Deus havia se tornado homem, para o homem se elevar a Deus” (21).
O entendimento da interação entre estética e natureza aparece nos estudos de Botânica e Física. Em Die Metamorphose der Pflanfzen, o poeta desenvolveu o conceito de Urpflanze, ou “planta original”. Esta seria a forma ideal de toda a manifestação da natureza, pois estimula ver o geral no particular e obter a totalidade no tratamento do objeto. A doutrina das cores explora as afinidades entre luz e sombra na origem cromática. A luz, o fenômeno original, se desdobra em sombras e cores, uma deflagração que repercute sobre os corpos e os faz ressoar sensivelmente no olhar do espectador. O que de fato Goethe busca explicar com sua teoria das cores é a natureza revelada sensível e fenomenologicamente. Nesse sentido, há uma natureza reconhecida como unidade viva e infinita, sendo essa a noção de natureza que vai se potencializar, ou, no mínimo, terá sua aplicabilidade em diversos campos do saber artístico, filosófico e científico do Romantismo.
A catedral de Colônia: a torre de Babel das margens do Reno
A partir da segunda metade dos Setecentos, a arquitetura gótica foi saudada com entusiasmo por artistas e filósofos. Naquela altura, o gótico fascinava um público diversificado atraído pelo efeito que a dimensão e os ornamentos das catedrais transmitiam aos sentidos. Apreensões estéticas desse tipo seduziam miradas atentas ao escrutínio do estilo, tornando-se exemplar a edifícios ainda em fase de projeto, reforma ou revitalização. Serviu para Goethe como pano de fundo de suas criações poéticas (legível, a este propósito, na primeira parte do Fausto – o “Urfaust” – e em Götz von Berlichingen) e símbolo ideal de uma unidade territorial alemã fragmentada em diversos principados (22).
O autor do Werther estudou atentamente o estilo gótico, tendo se empenhado em compreender sua função política, estética e moral na Europa de pré e pós-Revolução Francesa. O ensaio de 1772 testificou um jovem espírito irrequieto e sintonizado às recentes críticas de arte ocupadas em reler as dimensões objetiva e sensível do gótico. A retomada foi julgada como utilidade viva (lebendiger Gebrauch) (23), isto é, a arte possibilitaria a satisfação presente sem, contudo, suprimir cronologias anteriores sedimentadas em objetos transmissores de memória. Quero dizer: novas interpretações visavam a familiarizar a sociedade coeva e a posteridade com o repertório cultural e artístico da Idade Média eclipsado pela Antiguidade Clássica e Renascimento Italiano. Goethe registrou em sua autobiografia esse “retorno” do gótico circunscrito numa chave positiva, ao contrário daquela firmada, sobretudo, nas categorias “desarmônico”, “indeterminado”, entre outras:
“Quando vejo que, em tempos mais recentes, a atenção se voltou novamente a esses objetos [catedrais góticas], e que a afeição, ou mais, que a paixão por esses assuntos começou a ressurgir e a florescer; quando vejo, hoje, jovens talentosos – e completamente arrebatados por essa obra – dedicarem incondicionalmente suas forças, seu tempo, seu cuidado e sua fortuna a esses monumentos de um mundo pretérito, fico então feliz de perceber que havia um valor naquilo que eu um dia tanto quis e desejei” (24).
O gótico representava o desenvolvimento de uma época artística que o Norte da Europa praticou e vivenciou de forma plena. Havia “algo de grandioso, algo sentido profundamente, refletido, elaborado e oculto” que corroborava relações cujos efeitos eram “irresistíveis” (25). O florescimento gradual da arquitetura gótica havia sido examinado, como sabemos, no artigo sobre a catedral de Estrasburgo, tendo retornado, em 1823, no texto dedicado igualmente a uma catedral, a da cidade de Colônia.
A leitura que Goethe fez da catedral de Colônia é, a título de conjectura, mais equilibrada do que as representações da arquitetura imaginadas no ímpeto juvenil e transparecidas sob o signo da arte produzida de acordo com o gênio criativo ou dependente da subjetividade. A citação no texto de 1823 dos Cours d’Architecture (26) do arquiteto francês Jacques François Blondel, por um lado assoma o pragmatismo da interpretação, por outro atesta o entendimento goetheano com respeito às questões estéticas do gótico iniciadas em seu artigo de 1772, isto é, o belo no gótico subjaz na interação compensativa e coesa entre as partes e o todo que configura a proporção e a harmonia:
“Olhamos com agrado para certas massas daquelas construções góticas, cuja beleza parece e é perceptível como decorrida da simetria e da produção do todo com as partes e das partes entre si... o que mais nos deve convencer é o fato de que quando investigamos com exatidão essas massas encontramos no todo as mesmas proporções dos edifícios que, construídos segundo as regras da boa arquitetura, nos oferecem tanto prazer na contemplação” (27).
A construção da catedral de Colônia se iniciou em 1248 conforme os empenhos de Conrado, o Grande (28). Devido a guerras contínuas e outros conflitos, a obra foi suspensa em 1559. Em 1815, quando Goethe revisitou a cidade, a execução do projeto continuava. Somente o coro, o altar-mor e partes das naves laterais estavam concluídos. A fachada principal encontrava-se incompleta, bem como as torres sineiras não haviam sido erguidas com todo seu esplender e altura. Esse cenário de não-conclusão, ou de “ruína” como considerou Goethe – “afinal, uma obra incompleta é como uma obra destruída” (29) –, estimulou sua imaginação a denominar, em tom metafórico, aquela gigantesca estrutura de pedra como o “conto da torre de Babel” implantada na beira do Reno, a qual, ainda que alçada ao firmamento, ia muito além de suas reais possibilidades concretas de realização. O término do projeto, que ocorreria nas últimas décadas do século 19, seria guiado pelos desenhos de Sulpiz Boisserée e publicados, entre 1821 e 1831, sob o título de Ansichten, Risse und Einzelne Theile des Doms von Köln (30).
As Ansichten (“vistas”) se compõem de 18 imagens do projeto idealizado por Boisserée para a conclusão da catedral de Colônia. O movimento de leitura das escalas parte do todo ao particular: se inicia com um panorama de implantação da catedral no contexto urbano, passando por desenhos arquitetônicos próprios do edifício até o detalhamento de colunas, janelas e ornamentos pensados em estilo gótico. O catálogo reúne plantas, fachadas, dois cortes, detalhes das colunas com seus respectivos ornamentos, estudos de vitrais coloridos e uma perspectiva interior. É bem provável que o autor tenha se valido da leitura continuada da documentação medieval, encontrada no convento das clarissas de Colônia, para dar forma ao projeto (31). Outros exemplares da arquitetura gótica espalhados na Europa lhe serviram de modelo. Uma carta trocada com Carl Ritter dá a ver que Boisserée havia se inteirado da forma e dos elementos decorativos da catedral de Burgos, situada na Espanha (32).
Em maio de 1811, Boisserrée visitou o poeta em Weimar portando os desenhos, os quais ampliaram o horizonte interpretativo de Goethe com respeito à dimensão objetiva da arte e sua vertente subjetiva. Conquanto parecesse inviável a finalização da obra, os desenhos gravados nas Ansichten atuaram como um ponto de viragem da forma pretendida para a catedral, pois reuniam a leitura moderna sobre o gótico sem relegar as formas primevas inerentes ao estilo. Os desenhos de Boisserée, combinados com a obra inacabada, geraram um efeito positivo em Goethe. Ambos os objetos estimularam sua imaginação a criar uma representação definitiva da catedral. Com isso se denota que a produção artística não deve priorizar a dimensão objetiva em detrimento da subjetividade, senão conciliá-las.
A leitura do catálogo fez com que Goethe devotasse tempo à pesquisa de outros exemplares da arquitetura gótica. O estudo recebeu nova luz quando a planta original da catedral foi encontrada pelo arquiteto Georg Moller (33). A este propósito, parece-me que a dimensão histórica da arquitetura é outra componente que direciona a narrativa do artigo de 1823. Vinculada à historicidade do objeto está a noção de ruína. Nesse estado, a arquitetura emite o conflito entre o trabalho humano e o “tempo silencioso e potente que não respeita nada” (34). Há uma exposição visual da tensão entre matéria e a potência do infinito (história).
A ruína da catedral, ou sua procura por uma fisionomia definitiva, exerceu um efeito sublime de surpresa, fascínio e susto (35). Repete-se a emoção sentida em Estrasburgo, uma experiência que invade o espírito elevando-o a um estado de grandeza e terror. No artigo de 1823, o sublime continua a assumir as proposições longinianas, mas sem relegar os conceitos discriminados por Edmund Burke em seu A philosophical enquiry into the origin of our ideas of the sublime and beautiful (36), trabalho publicado em 1756.
De acordo com Rosario Assunto citando Burke, uma das características de uma obra sublime é o não acabamento, a ausência de uma definição formal (37): “vejo, muitas vezes, nos esboços inacabados de desenhos algo que me agrada mais do que o desenho mais bem-acabado” (38). Isso ocorre em razão de o “inacabado” despertar a imaginação, quando busca “a promessa de algo a mais e não se contenta com o presente objeto dos sentidos” (39). Não se sabe se Goethe leu Philosophical Enquiry. Contudo, não nos surpreende a proximidade dessa dimensão do sublime – o inacabado – quando o poeta descreve o estado da catedral de Colônia como dispositivo que aviva a imaginação (40).
O poeta conclui o artigo com sensibilidade arrojada, fazendo referência à vida artística como um processo de formação (Bildung) do homem, à maneira da Urpflanze (planta original) considerada em seu Die Metamorphose der Pflanfzen (41). Ele evoca o ensaio de 1772, escrito sob um espírito tempestuoso, mas consciente das teorias e críticas que estavam ali redigidas. O ato de rememorar fez reviver a noção de arte e natureza basilares à interpretação do gótico da catedral de Estrasburgo: “eu tinha sentido as proporções internas do todo, eu percebi igualmente o desenvolvimento dos adornos particulares, justamente a partir do todo”. Os desenhos de Boisserée, que expõem a volumetria e os pormenores decorativos, corroboravam os conceitos de arte firmados na juventude. Fechava-se um ciclo de reflexões sobre a arquitetura gótica da Alemanha para “tornar corretamente visível e penetrante a diferença entre os primeiros germes e o último fruto” (42).
“Os sentidos da pedra” das catedrais: considerações finais
Os dois ensaios de Goethe considerados sobre diferentes pontos de vista demonstram a positiva conexão entre poesia e arquitetura. A tectônica possui um discurso visual inerente ao projeto e à forma, mas que carece de decodificação literária a fim de conferir entendimento ao objeto. Disso decorrem os tratados escritos desde a Antiguidade voltados a transcrever os “sentidos da pedra”, como se expressou o poeta alemão na epígrafe citada no início deste artigo.
Uma premissa que perpassa os ensaios se refere à arquitetura como arte não limitada à matéria. Sua essência contém a dimensão sensível percebida no ato de contemplar. A visão se sobressai diante dos outros sentidos em muitos dos escritos literários e científicos de Goethe. Mediado pelo olhar, Werther captou a atuação do pequeno mundo na ontologia da natureza. Em Doutrina das Cores é o aspecto fenomenológico da visão que configura as diferentes tonalidades cromáticas, em vez de serem determinadas por cálculos matemáticos apregoados pela Física Moderna. E foi justamente a partir dessa significação que o jovem estudante de Direito em Estrasburgo apreendeu o efeito do estilo gótico da catedral em seu espírito: “Mas, com que sentimento inesperado fui surpreendido pela visão quando cheguei diante dela (catedral)” (43). Com o olhar o homem está apto a sentir e representar o efeito sublime na arte, esse pathos que acompanha os versos de Fausto, a assimetria da catedral de Estrasburgo e o estado inacabado do exemplar de Colônia.
Os ornamentos da catedral de Estrasburgo e as gravuras de Boisserée formam uma variedade de objetos imprescindíveis à configuração do todo arquitetônico. Esses dois polos constitutivos da arte são também, para Goethe, intrínsecos à natureza. Aquela natureza celebrada pelo jovem poeta se encontra ainda matizada no estilo gótico da catedral de Colônia. Ambos os monumentos representavam a história e a cultura dos antepassados nórdicos transmitidas à posteridade como símbolo de liberdade. Liberdade das preceptivas geométricas clássicas, pois suas formas se circunscrevem na harmonia e na proporção do “particular que está submetido eternamente ao universal” (44).
notas
NA – agradeço à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo pela concessão da Bolsa Estágio de Pesquisa no Exterior, por meio da qual me foi possível pesquisar e refletir sobre o papel da arquitetura gótica na literatura de Goethe e nas publicações coevas ao poeta relativas à arte dos jardins (Gartenkunst).
1
LOVEJOY, Arthur O. Essays in the history of ideas. Baltimore, John Hopkins Press, 1948.
2
WALPOLE, Horace; apud TROTHA, Hans von. Der Englischer Garten: eine Reise durch seine Geschichte. Berlin, Klaus Wagenbach Verlag, 1994, p. 35.
3
ROBSON-SCOTT, W. D. Georg Forster and the Gothic Revival. The Modern Language Review, v. 51, n. 1, jan. 1956, p. 46-48.
4
MOLDER, Maria Filomena. O pensamento morfológico de Goethe. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995; GALÉ, Pedro Fernandes. Em torno do olhar: a formação do método morfológico de Goethe. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH USP, 2009.
5
LUKÁCS, Georg. Goethe y su época. Barcelona, Ediciones Grijalbo, 1968.
6
WERLE, Marco Aurélio. Vida e poesia em Goethe. Pensamentos Instigantes, CCBB, São Paulo, set. 2005, ainda em forma de manuscrito. Gostaria de agradecer ao prof. Marco Aurélio Werle pelo acesso ao texto durante as aulas de Estética I, realizadas entre agosto e dezembro de 2018.
7
ECKERMANN, Johann Peter. Conversações com Goethe nos últimos anos de sua vida: 1823-1832. São Paulo, Editora Unesp, 2016, p. 110.
8
Idem, ibidem, p. 709.
9
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade. São Paulo, Editora Unesp, 2017, p. 317.
10
Os primeiros “jardins-paisagem” (Landschaftsgarten) apareceram na Inglaterra em oposição à matematização e subordinação da natureza do então chamado “jardim de gosto francês”. O jardim-paisagem implicou a elaboração de formas correspondentes às da natureza.
11
O “pequeno mundo” será, dentre outros aspectos, um dos fundamentos da narrativa de Fausto I (o Urfaust). O microcosmo de Fausto refere-se, como no Werther, à subjetividade.
12
GOETHE, Johann Wolfgang. Os sofrimentos do jovem Werther. São Paulo, Liberdade, 2009, p. 15.
13
WERLE, Marco Aurélio. Introdução. In GOETHE, J. W. Escritos sobre arte. 2ª edição. São Paulo, Humanitas, 2008, p. 16.
14
MÜCKE, Dorothea von. Beyond the paradigma of representation: Goethe on Architecture. Grey Room, v. 34, n. 35, 2009, p. 6-27.
15
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade (op. cit.), p. 428.
16
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 43.
17
LONGINO. Do sublime. São Paulo, Martins Fontes, 1996, p. 44. Ver também WERLE, Marco Aurélio. Natureza e sociedade no Werther de Goethe. Artefilosofia, n. 22, jul. 2017, p. 39-49.
18
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade (op. cit.), p. 460.
19
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 44.
20
Idem, ibidem, p. 41.
21
GOETHE, Johann Wolfgang. Goethes Werke. Stuttgart und Berlin, Jubiläums-Ausgabe, 1902-7, p. 18. Do original: “Der Gott war zum Menschen geworden, um den Menschen zum Gott zu erheben”. Tradução do autor.
22
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade (op. cit.), p. 608.
23
GOETHE, Johann Wolfgang. Von deutscher Baukunst. Goethe Werke. Band 12. Schriften zur Kunst und Literatur. Hamburger Ausgabe. München, Deutsche Taschenbuch Verlag, 2000, p. 179.
24
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade (op. cit.), p. 464.
25
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 237.
26
Os Cours d’Architecture de Blondel foram publicados em doze pequenos volumes, de 1771 até 1777. Blondel não chegou a concluir a obra, deixando a cargo de Pierre Patte que possuía conhecimento suficiente da história e técnica da Arquitetura. Cf. MIDDLETON, Robin Middleton. Jacques François Blondel and the ‘Cours d’Architecture. Journal of the Society of Architectural Historians, v. 18, n. 4, dez. 1959, p. 140-148 <https://doi/10.2307/987903>.
27
Apud GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 238.
28
BOISSERÉE, Sulpiz von. Selbstbiographie, Tagebücher und Briefwechsel. Zweiter Band. Stuttgart, Cota, 1862, p. 1.
29
GOETHE, Johann Wolfgang von. De minha vida: poesia e verdade (op. cit.), p. 748.
30
BOISSERÉE, Sulpiz von. Ansichten, Risse und Einzelne Theile des Doms von Köln, mit Ergänzugen nach dem Entwurf des Meisters, nebst Untersuchungen über die alte Kirchenbaukunst und vergleichenden Tafeln ihrer vorzüglichsten Denkmale. Stuttgart, Cotta’schen Buchhandlung, 1823. Tradução livre do título: “Vistas, Esboços e partes individuais da Catedral de Colônia, com complementos segundo o projeto do mestre, juntamente com pesquisa sobre a antiga arquitetura da igreja e quadro de seu preeminente monumento“.
31
MATTICK, Renate. Drei Chorbücher aus dem Kölner Klarissenkloster im Besitz von Sulpiz Boisserée. Wallraf-Richartz-Jahrbuch, v. 59, 1998, p. 59-101.
32
SIMON, Karl. Ein Brief von Sulpiz Boisserée. Wallraf-Richartz-Jahrbuch (1924-1934), v. 5, 1928, p. 168-170.
33
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 240.
34
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 241.
35
Idem, ibidem, p. 242.
36
Por questões de método, utilizei a tradução de Daniel Moreira Miranda.
37
ASSUNTO, Rosario. Naturaleza y razón en la estética del setecientos. Madrid, Visor, 1989, p. 32.
38
BURKE, Edmund [1756]. A philosophical enquiry into the origen of our ideas of the sublime and beautiful. Notre Dame, University of Notre Dame Press, 2005. BURKE, Edmund. Investigação filosófica sobre a origem de nossas ideias do sublime e da beleza. São Paulo, Edipro, 2016, p. 82.
39
Idem, ibidem, p. 82.
40
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 240.
41
GOETHE, Johann Wolfgang von. Die Metamorphose der Pflanzen. Hamburger Ausgabe. München, Deutscher Taschenbuch Verlag, 2000, p. 64-101.
42
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 243.
43
Idem, ibidem, p. 43.
44
GOETHE, Johann Wolfgang. Escritos sobre arte (op. cit.), p. 255.
sobre o autor
Esdras Araujo Arraes é arquiteto e urbanista (UFPE, 2006), mestre (2012) e doutor (2017) em História e Fundamentos da Arquitetura e Urbanismo pela FAU USP. Realiza pós-doutorado no Departamento de Filosofia da USP e estágio pós-doutoral na Freie Universität Berlin, ambos como bolsista pela Fapesp. Sua pesquisa busca entender a relação entre estética e natureza na conceituação de paisagem e jardim do século 18 e 19.