Enquanto em diferentes campos das artes (1) — música, dança, artes cênicas ou ainda artes visuais ou plásticas — a ideia de improvisação já vem sendo usada como tensionadora da ideia de composição e, também, das ideias de autoria única ou da obra como um produto, o que proporcionou a criação de outras práticas, processos e procedimentos compositivos mais complexos, no campo do urbanismo, a ideia de improvisação ainda é tida como o oposto, a ausência ou o equívoco mesmo de qualquer tipo de planejamento. O intuito do presente artigo é, a exemplo da revalorização contemporânea da ideia de improvisação pelos campos artísticos, buscar compreender melhor esta ideia e a prática da improvisação para problematizar justamente esta suposta oposição binária entre improvisação e planejamento (e projeto urbano), propondo considerar a improvisação como um princípio intrínseco às práticas, processos e procedimentos urbanísticos, sobretudo aqueles mais participativos, informais e ligados à autoconstrução popular, para, assim, conferir ainda mais complexidade à teoria mas também à prática urbanística, a partir da ideia de improvisações urbanas (2).
Para explicar a enorme dificuldade do campo do urbanismo em incorporar a ideia de improvisação em suas práticas, talvez seja importante lembrar que desde a emergência do urbanismo enquanto disciplina teórica e prática, em meados do século 19 (3), este campo disciplinar está relacionado a diferentes processos de ordenamento e controle, por vezes bastante autoritários, de intervenção nas antigas cidades existentes. No seu primeiro século de existência, a disciplina se dedicou, de forma predominante, a buscar precisamente a antítese da desordem ou improvisação das cidades, ou seja, o ordenamento a partir da prática do planejamento modernizador, desde então visto como o antídoto aos espaços desordenados ou improvisados. Todo tipo de improviso era considerado como um erro fatal, um equívoco fundamental que qualquer plano ou projeto urbano moderno deveria evitar a qualquer custo.
A nova disciplina criada para resolver o problema (4) das grandes cidades, seus diferentes tipos de improvisos (sobretudo os sociais e urbanísticos), já surgiu assim com funções claramente controladoras, normativas e ordenadoras, seguindo princípios da lógica funcional e do progresso técnico, o que ainda repercute até hoje, em termos práticos e, sobretudo, metodológicos. Apesar das críticas ao funcionalismo e racionalismo exacerbados do urbanismo moderno (5) que se tornaram mais correntes a partir dos anos 1960 (6), as bases metodológicas principais da disciplina ainda continuam operantes, muitas vezes em propostas que buscam tratar questões consideradas como críticas ao urbanismo moderno funcionalista como nas propostas de projetos urbanos participativos que sempre precisam lidar com a questão da improvisação na prática, ou seja, com as diferentes formas de improviso que ocorrem necessariamente em qualquer processo de efetiva participação da população no planejamento.
Como se sabe, apesar da prática artística da improvisação ser bastante antiga, seus estudos críticos são mais recentes e, nas últimas décadas, é possível perceber o alargamento da abrangência desta questão que vai das artes às indústrias financeiras globais passando pelos estudos da neurociência e pelas ciências da computação. A enorme diversidade de abordagens dos estudos críticos da improvisação vai hoje das narrativas de resistência política e práticas subversivas, uma tradição das vanguardas no campo das artes, até sua mais recente captura neoliberal para criação de algoritmos de redes comerciais da internet ou de novas formas de organização de empresas, de start ups, chegando até nas chamadas smart cities. Mas sobressaem no histórico das pesquisas sobre improvisação os numerosos estudos na área da música, sobretudo em torno do jazz afro-americano, enfatizando a questão temporal (e de ritmos) associada à prática ou performance da improvisação. São, contudo, ainda bem raros os trabalhos publicados sobre a teoria e prática da improvisação dedicados a campos disciplinares mais comumente preocupados com questões espaciais, como nos casos do urbanismo (ou dos estudos urbanos) e da arquitetura (ou do design). Citamos, por exemplo, como exceção que confirma a regra, o livro Adhocism: The Case for improvisation, publicado em 1972 por Charles Jencks e Nathan Silver (7).
Jencks ficou conhecido mundialmente por suas críticas à arquitetura e urbanismo modernos e sua defesa do pós-modernismo arquitetônico em livros best-seller como: The Language of Post-Modern Architecture, Post-Modern Classicism ou What is Post-modernism? (8). Esse livro anterior, dedicado à improvisação e publicado com Silver, circulou bem menos, apesar de poder ser considerado hoje um clássico sobre o tema, e só teve uma nova edição em 2013. Edição devidamente expandida e atualizada, com um novo prefácio de Jencks publicado poucos anos antes de sua morte. O principal argumento do livro, a proposta crítica do adhocism, parte da definição do Shorter Oxford English Dictionary da expressão ad hoc — “for this or that particular purpose” (9) — para pensar novos usos de diferentes pré-existências como podemos ler na apresentação de Jencks e Silver no livro de 1972:
“’Adhocism’ is a term coined by Charles Jencks and first used by him in architectural criticism in 1968. It can also be applied to many human endeavors, denoting a principle of action having speed or economy and purpose or utility. Basically it involves using an available system or dealing with an existing situation in a new way to solve a problem quickly and efficiently. It is a method of creation relying particularity on resources which are already at hand” (10).
O livro fazia parte de uma crítica mais ampla do purismo e funcionalismo do movimento moderno em arquitetura e urbanismo, uma crítica que, em particular a partir dos anos 1960, também passou a valorizar a arquitetura popular ou vernácula como na famosa exposição organizada por Bernard Rudovsky no Museum of Modern Art — MoMA de Nova Iorque em 1964: “Architecture without architects. A short introduction to non-pedigreed architecture”. Podemos citar ainda dentro desse repertório crítico-propositivo as experiências de urbanização de favelas latino-americanas nesses anos 1960, como aquelas propostas por John Turner e Eduardo Neira, em Lima, ou por Carlos Nelson Ferreira dos Santos e o grupo Quadra no Rio de Janeiro. O livro de Jencks e Silver se apresenta como um manifesto daquilo que depois passou a se chamar de autoconstrução ou, ainda, de do it yourself. A proposta tinha como base as práticas criativas mais cotidianas, como adaptar uma lata usada como suporte para velas (11), para chegar a questões de projeto de design, arquitetura e urbanismo. Ao final do novo prefácio de 2013, Jencks escreve um “Adhocist Manifesto” em 10 pontos, no terceiro pode-se ler:
“3. Thus adhocism is the style of eureca. It is the origin moment of new things, when forms are tipically hybrid, and like all creative instants, the conjunction of previously separated systems. Hence, the style must remain heterogeneous to be understood. Like the best surrealismo when seen for the first time, it is experienced as an incongruous marriage; often the copulation of incommensurable things. But as species and things envolve, their ad hoc attachments become supplementary, conventional and usually simulated. Fully envolved this heterogeneity is integrated and non-ad-hoc” (12).
A atualização da proposta não só reconhece sua herança surrealista como ainda inclui uma crítica contemporânea, Jencks explica também como o livro de 1972 se aproximava das ideias correntes à época de outros críticos e teóricos ditos pós-modernos da arquitetura e urbanismo como o inclusivismo de Robert Venturi ou o contextualismo de Colin Rowe, chegando a comparar seu livro com Collage City, livro publicado por Colin Rowe e Fred Koetter em 1978 (13). É interessante notar que os dois livros, Collage City e Adhocism, são reconhecidamente tributários de um tipo de improvisação específico que parte da ideia de bricolagem (bricolage), desenvolvida por Claude Lévi-Strauss em seu livro O Pensamento Selvagem, de 1962 (14). A ideia de Lévi-Strauss está presente logo nos primeiros parágrafos do primeiro capítulo do livro de Jencks e Silver de 1972, The spirit of Adhocism:
“Perhaps the oldest and simplest method of creation consiste of combining readily available subsystems ad hoc, since it is always easier to work with what is familiar and at hand than what is removed in space and time. At any rate, this is the characteristic mode of creation in tribal cultures: the creation of masks, clothing, weapons and shelter from materials available, such as bone, shell, wood, hair etc. The anthropologist Claude Lévi-Strauss has discussed this activity under its common French label, bricolage (15).
Colin Rowe e Fred Koetter, no livro Collage City publicado em 1978 (16) também usaram colagens de fragmentos heterogêneos, a partir das propostas dadaístas, como mote para fomentar uma crítica contundente tanto aos excessos funcionalistas do urbanismo moderno tido como homogeinizador e totalizante quanto às ideias modernas de pureza arquitetônica, de urbanismo como utopia redentora e, sobretudo, de tabula rasa, considerada extremamente reducionista. O livro — que se opunha claramente a qualquer modelo coercitivo, totalizante ou autoritário da tradição moderna mais funcionalista — propunha uma ideia de “cidade-colisão” ou “cidade-colagem”, um “pluralismo esclarecido” (17) ou uma cidade-palimpsesto, e fazia um claro elogio ao fragmentário na cidade dentro de uma proposta crítica de uma heterogeneidade radical.
O livro de Rowe e Koetter teve boa circulação na época, não apenas nos meios da pesquisa e ensino universitários (os estudos iniciais do livro partiram de experiências de Colin Rowe com estudantes) mas também no campo da prática profissional, sobretudo na América do Norte. Os autores usaram, para dar apoio às suas críticas e, também, como uma forma política da colagem, a ideia de bricolagem como um modo de pensar.
“Collage and the architect’s conscience, collage as technique and collage as state of mind: Lévi-Strauss tells us that ‘the intermittent fashion for ‘collages’, origination when craftsmanship was dying, could not…be anything but the transportation of ‘bricolage’ into the realms of contemplation’ and, if the twentieth century architect has been the reverse of willing to think of himself as a ‘bricoleur’ it is in the context that one must also place his frigidity in relation to major twentieth century discovery. Collage has seemed to be a lacking in sincerity, to represent a corruption of moral principles, an adulteration” (18).
A ideia de bricolagem (bricolage) surge precisamente como exemplo dessa outra forma de pensar que Lévi-Strauss — após sua experiência brasileira entre 1935 e 1939, e especialmente sua experiência ameríndia com os povos nativos que viviam no território do Mato Grosso no Brasil —, denominou de pensamento selvagem (pensée sauvage) (19). Como Lévi-Strauss tão bem explicou em seus trabalhos, esta outra forma de pensar não seria o pensamento dos selvagens nem o pensamento de uma humanidade primitiva, ou arcaica, mas sim “o pensamento em estado selvagem, diferente do pensamento cultivado ou domesticado” (20).
A revolução no campo da antropologia proposta por Lévi-Strauss desconstruiu completamente as antigas teorias evolucionistas, que ainda entendiam os povos ditos primitivos como pré-lógicos, incapazes de um pensamento lógico ou abstrato. Povos ditos longínquos ou exóticos que estariam, em termos evolucionistas, ainda no começo de uma escala linear progressiva que levaria a humanidade do primitivo ao civilizado, do pré-lógico ao científico. Lévi-Strauss deslocou, assim, não somente a ideia do primitivo do século 19 (que ainda era recorrente no século 20), com enorme carga pejorativa, para aquela do selvagem, com toda sua potência criativa, mas também transformou a própria faculdade do pensar, retirando-a de um monopólio da filosofia ocidental e, em particular, eurocêntrica.
Lévi-Strauss não somente demonstrou como as sociedades ditas selvagens nos mostram outras formas de pensar, alternativas ao pensamento científico, tecnicista e positivista, mas, sobretudo, deixou claro que o pensamento selvagem não seria um pensamento dos selvagens, menos ainda uma forma de pensar exclusiva dos povos e sociedades ditos selvagens mas, sim, bem mais amplamente, toda forma de pensar que não se deixaria domesticar, seja ela contemporânea ou antiga, exercitada perto ou longe. O pensamento selvagem não precede, como poderiam supor os evolucionistas, a um pensamento domesticado, tido como culto, civilizado ou científico, mas o acompanha permanentemente, permitindo paralelismos e correlações até mesmo com as formas de pensar ocidentais mais complexas como, de certa forma, já fizeram Bruno Latour ou Paul Rabinow, em suas etnografias de laboratórios científicos (21). Ao contrário, por exemplo, do entendimento cartesiano da forma de pensar como uma consciência individual dentro de uma linha temporal que demarca uma época, o pensamento selvagem seria mais anônimo e coletivo, e poderia ser identificado nas sociedades as mais diversas. O pensamento selvagem estaria próximo do mundo sensível, do campo das artes em geral e, também, dos saberes mais populares ou vernáculos.
O pensamento selvagem, ainda segundo Lévi-Strauss, parte de formas de observação singulares do mundo, se apoia em elementos concretos, porém heterogêneos, parte de diferenças dinâmicas, sendo assim necessariamente impuro, complexo, mas que sempre foi tido como confuso, irracional ou incoerente, uma vez que diretamente relacionado a uma proliferação ou multiplicidade de diferenças. O trabalho maior do antropólogo foi precisamente decifrar essa outra coerência interna, ou outra lógica, do pensamento selvagem, sem partir das tradicionais premissas etnocêntricas, que buscam ver o outro a partir de si (do suposto civilizado ocidental). O selvagem, diferentemente do primitivo, tido como a simplificação ou estágio anterior do civilizado, seria o outro (ou os vários outros) do civilizado, do ocidental. O pensamento selvagem seria a alteridade do próprio pensamento eurocentrado, colonial ou colonizado.
Foi exatamente para exemplificar a sobrevivência (no sentido warburguiano) do pensamento selvagem entre supostos civilizados ocidentais, evidenciando a coexistência dessas duas lógicas ou ciências distintas, que Lévi-Strauss recorreu à sua famosa ideia de bricolagem (bricolage) que está relacionada à ideia do ad hoc, como mostrou Jencks e Silver, mas também de autoconstrução, e poderia ser pensada como o próprio princípio constitutivo de um planejamento improvisado, uma forma de pensar o projeto urbano como processo que incorporaria a improvisação como seu princípio instaurador. A bricolagem (bricolage) seria assim um pensamento urbanístico selvagem.
“There still exists among ourselves an activity which on the technical plane gives us quite a good undestanding of what a Science we prefer to call ‘prior’ rather than ‘primitive’, could have been on the plane of speculation. This os what is commonly called ‘bricolage’ in French. In its old sense the verb ‘bricoler’ applied to ball games and billiards, to hunting, shooting and riding. It was however always used with reference to some extraneous movement: a ball rebounding, a dog straying or a horse swerving from its direct course to avoid an obstacle. And in our own time the ‘bricoleur’ is still someone who works with his hands and uses devious means compared to those of a craftsman. [...] The ‘bricoleur’ is adept at performing a large number of diverse tasks; but, unlike the engineer, he does not subordinate each of them to the availability of raw materials and tools conceived and procured for the purpose of the project. His universe of instruments is closed and the rules of his game are Always to make do with ‘whatever is at hand’, that is to say with a set of tools and materials which is always finite and is also heterogeneous because what it contains bears no relation to the current project, or indeed to any particular project, but is the contigent result of all the occasions there have been to renew or enrich the stock or maintain it with remains of previous constructions or destructions. The set of the ‘bricoleur’s’means cannot therefore be defined in terms of a project” (22).
Há uma distinção entre o bricoleur e o artista (“l’homme de l’art”), mas sobretudo entre o bricoleur e o engenheiro, que pode ser usada para distinguir o autoconstrutor do arquiteto e urbanista (planejador), mostrando que a autoconstrução é uma prática construtiva ligada ao acaso, à contingência e, sobretudo, ao inacabamento. Se o pensamento selvagem é o pensamento em estado selvagem, a construção em estado selvagem seria a autoconstrução, e o urbanismo em estado selvagem, a partir do exercício da bricolagem, seria o que estamos chamando de improvisação urbana.
Diferentemente do “engenheiro”, ou do arquiteto, urbanista ou planejador mais tradicional, o bricoleur não é instruído por um projeto formal, uma projeção futura, mas sim por sua instrumentalidade, seu presente. Ele improvisa com o material que tem à sua disposição. Há uma clara diferença temporal quando não há um projeto prévio à ação. Por isso, o bricoleur não para de “renovar e enriquecer o estoque”, sempre “com resíduos de construções e destruições anteriores”, com as sobras e restos disponíveis de outros tempos e espaços, fragmentos heterogêneos que são reciclados, reutilizados. Como escreveu Lévi-Strauss, “a regra de seu jogo é a de arranjar-se sempre com os moyens du bord [com o que estiver disponível a bordo, o que estiver à mão]” (23). Sem um projeto definitivo, a construção não acaba, é constante e mutante, em movimento permanente. O projeto passa assim a ser um processo aberto, um tipo de “obra aberta” como propunha Haroldo de Campos e Umberto Eco (24). A bricolagem também seria, portanto, um contínuo processo de montagem (25), desmontagem e remontagem, que parte de fragmentos heterogêneos, sobras e restos, ou “os farrapos, os resíduos”, para parafrasear Walter Benjamin (26), que ganhariam outros usos.
“It too works by analogies and comparaisons even throught its creations, like those of the ‘bricoleur’, always really consist of a new arrangement of elements, the nature of which is unaffected by whether they figure in the instrumental set or in the final arrangement. (…) This formula, which could serve as a definition of ‘bricolage’, explains how an implicit inventory or conception of the total means available must be made in the case of mythical thought also, so that a result can be defined which will always be a compromise between the structure of the instrumental set and that of the project. Once its materializes the project will therefore inevitably be at a remove from the initial ain (which was moreover a mere sketch), a phenomenon which the surrealists have a felicitously called ‘objective hazard’. Further, the ‘bricoleur’also, and indeed principally, derives his poetry from the fact that he does not confine himself to accomplishment and execution: he ‘speaks’not only with things, as we have already seen, but also throught the medium of things: giving an accout of his personality and life by the choises he makes between the limited possibilities. The ‘bricoleur’may not even complet his purpose but he always pus something of himself into it (27).
O exemplo da bricolagem já mostra uma outra relação com a temporalidade do pensamento selvagem, um tipo de reciclagem que faz coexistirem materialmente tempos distintos a partir de novos usos dados para sobras, sobrevivências, de outros tempos. Lévi-Strauss também deixou claro em seus textos e entrevistas que considerava a arte e os artistas seriam como um tipo de reserva do pensamento selvagem dentro do próprio pensamento domesticado ocidental. Lévi-Strauss não seria somente herdeiro de uma filosofia selvagem, indígena, mas, também, de procedimentos ou métodos (ou truques, segundo Walter Benjamin) dos artistas surrealistas (28).
O forte teor surrealista, sobretudo em termos metodológicos, do trabalho de Lévi-Strauss, em particular a partir de O Pensamento Selvagem, mas também, depois, nos diferentes volumes das Mitológicas, nos parece tema ainda bem pouco explorado, até mesmo pelos próprios antropólogos. Apesar da proximidade assumida pelo próprio autor desde sua apresentação da ideia de bricolagem em O Pensamento Selvagem — como parece ter ocorrido com Walter Benjamin, em cujo trabalho o impacto surrealista também foi muito pouco compreendido pelos filósofos — ainda é raro encontrarmos considerações teóricas sobre essa aproximação, não obstante as contaminações surrealistas já terem aparecido em suas biografias (29) e em suas entrevistas (30), podemos ler algo bem próximo das bricolagens — improvisações, colagens ou montagens — dos artistas surrealistas nas páginas de O pensamento selvagem:
“There is certainly something paradoxical about the idea of a logic whose terms consist of odds and ends left over from psychological or historical processes and are, like these, devoid of necessity. Logic consists in the establishment of necessary connections and how, we may ask, could such relations be established between terms in no way designed to fulfil this function? [...] This logic works rather like a kaleidoscope, an instrument which also contains bits and pieces and products a process of breaking up and destroying, in itself a contigent matter [...] Finally, and most importante, these patterns produced by the conjunction of contigent events (the turning of the instrument by the person looking through it) and a law (namely that governing the construction of the kaleidoscope, which corrresponds to the invariant element of the constraints just mentioned) project models of intelligibility which are in a way provisional, since each pattern can be expressed in terms of strict relations between its parts and since the relations have no content apart from the pattern itself, to which no objet in the observer’s experience corresponds” (31).
Seria então um tipo de pensamento selvagem essa outra forma de pensar, necessariamente fragmentada e impura, formada por sobras e restos, que pensa a partir da montagem de diferenças? Nos parece que sim, sobretudo ao nos aproximarmos do campo ampliado da antropologia (etnografia e etnologia aí incluídas). Como se sabe, antropologia e urbanismo são campos disciplinares modernos que se formaram no mesmo momento (de meados para final do século 19) mas com propósitos, a princípio, complementares: enquanto os urbanistas promoviam a modernização das cidades, os antropólogos se preocuparam com as culturas outras (seja para preservá-las seja para colonizá-las ou domesticá-las), que passavam a correr risco de extinção a partir dessa modernização cada vez mais acelerada (desde a colonização do chamado, pelos europeus, “Novo Mundo”).
No livro Estética da ginga já aproximávamos a autoconstrução, em particular a maneira mais precária de construção nas favelas cariocas com essa ideia lévi-straussiana da bricolagem (32):
“As construções numa favela — e, consequentemente, a própria favela — jamais ficam de todo construídas. A coleta de materiais também nunca cessa. Ao lado dos barracos, se falta espaço, sobre o teto, há sempre uma reserva de pedaços de madeira, de papelões, de plásticos, de tijolos e de telhas, à espera de uma próxima melhoria. A construção é quase cotidiana: é contínua, sem término previsto, pois sempre haverá melhorias ou ampliações a fazer. A maneira de construir, ao contrário da construção mais convencional, é implicitamente fragmentária, em função desse contínuo estado de incompletude. Uma construção convencional, ou seja, uma arquitetura feita por arquitetos, tem um projeto prévio, e é esse projeto que determina o fim, o momento de parar, a conclusão da obra. Quando não há projeto, a construção não tem uma forma final preestabelecida e, assim, nunca termina. Daqui por diante, portanto, interessa falar de um outro tipo de prática construtitva: a bricolagem, que tem a ver com o acaso e a incompletude” (33).
Os primeiros barracos mais precários das favelas são quase sempre autoconstruídos com fragmentos de materiais heteróclitos, geralmente restos diversos de materiais de outras construções que podem ser reciclados, a medida que o favelado-construtor encontra (ou pode comprar) materiais mais adequados substitui os mais antigos. Inicialmente, são os materiais catados (lembremos da metáfora do colecionador e do trapeiro em Walter Benjamin) pelo próprio morador que determina a construção do primeiro abrigo, que depende do acaso dos achados, das sobras e dos restos encontrados, pedaços dos mais variados recolhidos em diferentes lugares, fragmentos heterogêneos de outras construções, sempre de segunda mão, que serão reutilizados, atualizados para outras funções, muitas vezes distintas daquelas para as quais foram feitos. Os favelados-construtores são, sem dúvida, exímios bricoleurs.
“O acaso é parte integrante da ideia de bricolagem; é o incidente, ou seja, o pequeno acontecimento imprevisto, que está na origem do movimento. Bricolar é, então, ricochetear, enviesar, zigue-zaguear, contornar. O bricoleur, ao contrário do homem de artes (no caso, o arquiteto-urbanista), jamais vai diretamente a um objetivo ou em direção à totalidade: ele age segundo uma prática fragmentária, dando voltas e contornos, numa atividade não planificada e empírica. A construção com pedaços de todas as proveniências, a bricolagem, será, portanto, uma arquitetura do acaso, do lance de dados, uma arquitetura sem projeto. Em vez de ser determinado pelo projeto, o bricoleur é determinado por sua instrumentalidade” (34).
A bricolagem arquitetônica e urbanística se aproximaria assim tanto da ideia do lance de dados e da colagem dos dadaístas, da montagem e do acaso objetivo (hasard objectif) dos surrealistas mas, também, da ideia de desvio (détournement) dos situacionistas (35). Apesar da clara distinção entre o bricoleur, que trabalha com as próprias mãos, e o arquiteto-urbanista ou planejador tradicional, que faz planos e projetos prévios, parece que ao entendermos a bricolagem como um tipo de improvisação urbana — entre vários outros tipos, como por exemplo, além do adhocismo de Charles Jencks, as derivas situacionistas, as táticas desviatórias de Michel de Certeau ou ainda as profanações de Giorgio Agamben — (36), poderíamos ir um pouco mais longe: no lugar da arquitetura e urbanismo planejados de forma convencional poderíamos procurar pensar o próprio princípio da improvisação urbana, a partir da bricolagem como forma de pensar, não só como uma outra prática construtiva coletiva, cotidiana, mas também como um outro tipo de projeto urbano, que ao incorporar as improvisações como princípio chegaria a uma forma de planejamento aberto e complexo, uma forma processual ligada ao imprevisto, ao acaso e ao inacabamento. Um tipo de jam urbanismo ad hoc?
Como bem escreveu Siegfried Kracauer: “O valor de uma cidade se mede pelo número de lugares que ela reserva à improvisação” (37). Kracauer considerava a improvisação como uma “reprodução da desordem indomável de nosso mundo” e, sobretudo, ele buscava sempre sua tensão transformadora e seu caráter emancipatório, em partir daquele tipo que ele chamava de “distração” (38). Se o valor da cidade se mede por seus lugares improvisados, como pretendia Kracauer nos anos 1920, como poderíamos tensionar a teoria e a prática do urbanismo a partir dessa ideia de improvisação urbana? Em particular a partir dos improvisos populares, aqueles que, diferentemente da maioria das performances artísticas, são ações coletivas, cotidianas e, na maior parte dos casos, pautadas pela necessidade e pela contingência em comum.
Como já explicamos, desde a sua formulação como campo disciplinar, o urbanismo está relacionado a diferentes intervenções higienistas, de ordenamento e controle ou a diversos planos de zoneamento e separação de funções (e classes) das novas cidades modernas, tendo por um dos seus melhores exemplos o Plano Piloto de Lúcio Costa de 1956, vencedor do concurso para construção de nossa capital federal, Brasília, inaugurada em 1960. A disciplina (39) se dedicou, de forma predominante (40), a buscar a antítese da dita “desordem” nas cidades, ou seja, o inverso de qualquer tipo de improvisação urbana. Mas, mesmo em Brasília, ícone do purismo urbanístico moderno, antes mesmo de sua inauguração já era possível encontrar várias dessas improvisações urbanas, sobretudo nas vilas e favelas (41) criadas e habitadas pelos candangos — os operários construtores da capital moderna erguida no centro do país, em apenas três anos. Em todo e qualquer projeto ou plano, por mais planejado e racionalista que seja, há sempre algo que escapa ao controle ordenador, há sempre algum tipo de improviso que surge ou que sobrevive em lampejos (no sentido warbuguiano).
Assim, um questionamento a partir da ideia de improvisação urbana poderia ser interessante exatamente para buscar uma alternativa crítica às dicotomias planejamento/improvisação e ordem/desordem, e da compreensão do planejamento (e também do projeto, como forma de projeção futura) sempre como um instrumento de controle ordenador de toda e qualquer forma de improviso urbano. Talvez pudéssemos começar por desfazer essa oposição simplificadora entre planejamento e improvisação, buscando incorporar o próprio princípio do improviso, tão presente no cotidiano de nossas grandes cidades como uma outra possibilidade crítica de planejamento — como as artes passaram a entender a improvisação como uma outra forma de composição —, que incorporaria a bricolagem e esses os outros modos improvisados de fazer cidade no repertório de suas próprias ferramentas metodológicas, para buscar compreender, de forma mais complexa, mas também propositiva, essas improvisações urbanas, sobretudo aquelas mais populares (e criativas) das cidades.
Talvez o primeiro desafio seja a compreensão do próprio princípio da improvisação como uma “filosofia de ação”, como buscou Jean-François de Raymond (42), ou como uma “ciência da ação”, como propôs Olivier Soubeyaran (43), uma ação em que, como no caso da bricolagem e do pensamento selvagem, não há uma norma (plano) previamente definida mas onde a composição ou planejamento (a organização ou ordenamento) ocorre durante a própria ação, no próprio ato, no instante mesmo da prática, a partir das condições e materiais disponíveis. Uma forma de ação complexa, necessariamente experimental, em movimento permanente, que não possui um projeto final prévio e que seu próprio projeto, pensado com um processo complexo, é construído durante a própria ação, um tipo de montagem que parte da multiplicidade de combinações possíveis de todos materiais e outros instrumentos disponíveis que, ao serem montados, fazem emergir nexos que não poderiam ter sido pensados previamente. A maior diferença entre o improvisador (bricoleur, ou montador) e o planejador tradicional parece estar relacionada ao modo como lidam com a temporalidade dos seus respectivos processos de criação (ou composição): enquanto um busca e favorece o movimento intrínseco ao próprio processo, o outro almeja fixá-lo suspendendo-o da ação processual, em alguma configuração (44) mais estável que lhe permita ser chamada de projeto (ou de obra). Assim, ao incorporar o princípio da improvisação como processo de montagem regida pelas circunstâncias da própria ação (experimentação), em movimento permanente, poderíamos chegar a um tipo de bricolagem urbana ou de urbanismo ad hoc, da ocasião ou do possível, que não seguiria mais quaisquer doutrinas, modelos ou receitas prontas, genéricas, mas sim as diferentes situações encontradas in loco, as contingências, emergências e insurgências de cada montagem específica, em um processo aberto de experimentação permanente.
notas
NE — Texto originalmente publicado em inglês no livro The Routledge Handbook of Philosophy and Improvisation in the Arts, organizado por Alessandro Bertinetto e Marcello Ruta. JACQUES, Paola Berenstein. Urban Improvisations. In BERTINETTO, Alessandro; RUTA, Marcello (org). The Routledge Handbook of Philosophy and Improvisation in the Arts. Londres, Routledge, 2021.
1
As ideias aqui apresentadas partem de reflexões recentemente desenvolvidas na disciplina Laboratório Corpocidade, ministrada com Fabiana Dultra Britto no recém-criado curso de Doutorado em Dança no Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal da Bahia — PPGDança UFBA, em que propusemos abordar a relação corpo/cidade como um tipo de coimplicação resultante de processos de improvisação. Agradecemos Fabiana Dultra Britto e toda a primeira turma dessa disciplina (2º semestre de 2019) composta de pós-graduandos das mais variadas áreas de conhecimento (artes visuais, artes cênicas, dança, arquitetura, urbanismo, design, comunicação, letras, relações internacionais etc.), assim como os diferentes convidados, professores de campos disciplinares também distintos (música, dança, urbanismo, arquitetura, história, performance etc.). Esta disciplina é também resultado de nossos esforços conjuntos na última década na coordenação, com Fabiana Dultra Britto, da plataforma de ações Corpocidade. Plataforma Corpocidade <https://bit.ly/3rv5Lso>.
2
A ideia de improvisações urbanas foi usada em um texto anterior, “Urban Improvisations: The Profanatory Tactics of Spectacularized Spaces” — publicado na revista Critical Studies in Improvisation/Études critiques en improvisation” — a partir das noções de tática desviatória de Michel de Certeau, de profanações de Giogio Agamben e de jogos urbanos dos situacionistas (liderados por Guy Debord), para pensar os usos improvisados (ou desviantes) e as diferentes apropriações dos espaços públicos feitas pelos praticantes ordinários das cidades. Práticas sem dúvida bem próximas do que podemos encontrar no cotidiano dos habitantes das “zonas opacas” (Milton Santos) das cidades, como nas táticas usadas pelos construtores informais das favelas, que criam, modificam e transformam, a cada dia, outros usos e possibilidades de apropriação pelos próprios praticantes, o que chamamos antes de espaço em movimento (Estética da ginga). O espaço em movimento não está ligado somente ao próprio espaço físico mas sobretudo ao movimento do percurso, à experiência de percorrê-lo, é diretamente ligado a seus atores, que são tanto aqueles que percorrem esses espaços opacos no cotidiano quanto aqueles que os constroem e os transformam continuamente. Os espaços estão em constante movimento exatamente por serem seus usuários/habitantes os verdadeiros responsáveis por sua construção coletiva. Essas táticas de improvisação não se restringem aos espaços opacos mais delimitados das cidades, como as favelas, mas infiltram também nos seus espaços mais luminosos, através de uma série de atores usuários das ruas: vendedores ambulantes, moradores de rua, catadores de lixo, prostitutas, usuários dependentes de drogas etc. JACQUES, Paola Berenstein. Urban Improvisations: The Profanatory Tactics of Spectacularized Spaces. Critical Studies in Improvisation/Études critiques en improvisation, v. 7, n. 1, Guelph, 2011; JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2001.
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O termo passou a ser usado a partir dos grandes projetos de modernização e expansão das antigas cidades europeias como o conhecido plano de embelezamento do Barão Haussmann para Paris de 1853 e da publicação de trabalhos teóricos como o texto de 1867, a Teoría General de la Urbanización de Ildefons Cerdà, responsável pelo famoso plano Reforma y Ensanche (ou Eixample) de Barcelona de 1859. CERDÁ, Ildefonso. Teoría general de la urbanización. Madrid, Imprenta Española, 1867.
4
É preciso lembrar do efetivo estado de miséria dos bairros operários das grandes cidades industriais europeias que sofriam surtos frequentes de epidemias e passaram a ser considerados, no início do século 19, responsáveis pela “degradação física e moral do trabalhador urbano” que nas décadas seguintes gerou uma “teoria da degeneração urbana do homem pobre”. A “turba de nômades”, como Haussmann chamou a população pobre trabalhadora dos bairros operários, como do Faubourg Saint Antoine de Paris, passou a assustar o então prefeito, pois aí também germinavam os processos revolucionários e insurrecionais da cidade, os famosos levantes populares, as barricadas de Paris. Sem querer entrar também nessas questões políticas/policiais já amplamente estudadas, o importante a chamar atenção seria para, como explicou magistralmente Michel Foucault em seus trabalhos, essas questões de saúde pública, decisões consideradas sanitárias e higienistas, aparentemente neutras, sempre estiveram diretamente ligadas a uma disputa de poderes e, assim, a outras questões intrínsecas, sobretudo políticas, presentes desde o início da disciplina, tida entretanto como universal, científica e puramente técnica.
5
Essas críticas dizem respeito à vertente moderna mais conhecida — purista, positivista, funcionalista, teleológica, que seguiu uma determinada ideia de progresso técnico, inelutável, exacerbando as noções de ordenamento e controle, determinantes no momento da emergência da disciplina científica —, mas que sabemos não ser a única. Como escreveu magistralmente Walter Benjamin: “O ‘moderno’, porém, é tão variado como os diferentes aspectos de um mesmo caleidoscópio”. BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2009, p. 58.
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As críticas se intensificam desde os anos 1950, a partir de grupos distintos como o Team X, última geração de arquitetos dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna — Ciam, ou, ainda, os situacionistas, que ao tratar da vida cotidiana em geral, da relação entre arte e vida, chegam na escala da arquitetura e, em particular, do urbanismo, e iniciam uma crítica radical ao funcionalismo moderno. Sobre as relações entre os dois grupos — o Team X e os situacionistas — e a circulação das ideias situacionistas no campo do urbanismo ver nossa apresentação do livro Apologia da Deriva. JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2003.
7
JENCKS, Charles; SILVER, Nathan [1972]. Adhocism: The Case for improvisation. Cambridge, MIT Press, 2013.
8
JENCKS, Charles [1977]. The Language of Post-Modern Architecture. 6ª edição. Hoboken, John Wiley & Sons, 1991; JENCKS, Charles [1980]. Post-Modern Classicism. Hoboken, Academy Editions Ltd, 1980; JENCKS, Charles [1986]. What is Post-modernism? 4ª edição. Hoboken, John Wiley & Sons, 1996.
9
BROWN, Lesley (org.) [1972]. Shorter Oxford English Dictionary. Oxford, Oxford University Press, 2013, p. 9.
10
JENCKS, Charles; SILVER, Nathan [1972]. Op. cit., p. 9.
11
Práticas que também fascinaram Lina Bo Bardi, sobretudo em seus “cinco anos entre os brancos” (final dos anos 1950, início dos 1960), quando ela esteve na Bahia (e fez incursões pelo sertão nordestino).
12
JENCKS, Charles; SILVER, Nathan [1972]. Op. cit., p. XIX.
13
ROWE, Colin; KOETTER, Fred [1978]. Collage City. Cambridge, MIT Press, 1983.
14
LÉVI-STRAUSS, Claude [1962]. O pensamento selvagem. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1976.
15
JENCKS, Charles; SILVER, Nathan [1972]. Op. cit., p. 16.
16
O livro tomava Roma como exemplo de pluralidade e colagem urbana, como bem explica Leandro Cruz: “O interesse dos autores pela configuração urbana de Roma, embora já estivesse evidente nas suas primeiras versões, ganhou mais relevo após a participação de Rowe e sua equipe no concurso e na exposição Roma Interrotta, realizados entre 1977-78, que consistia na elaboração de novas propostas para a cidade de Roma a partir do Plano de Giambattista Nolli (1748), conhecido por sua representação dos cheios e vazios na forma urbana — ora destacando, ora desconhecendo as fronteiras entre os espaços públicos e privados. Logo na ‘Introdução’ do livro são enunciadas algumas de suas ideias-chave. Os autores começam elaborando uma espécie de obituário da cidade moderna, em seguida criticam o distanciamento entre a promessa redentora da arquitetura moderna e seu alcance limitado”. Verbete do site Cronologia do Pensamento Urbanístico <https://bit.ly/32agxLS>.
17
“A utopia como metáfora e a Cidade-colagem como prescrição: esses opostos, envolvendo tanto as garantias do direito como da liberdade [...]. A desintegração da arquitetura moderna parece exigir tal estratégia, um pluralismo esclarecido parece se convidar, e é possível que até mesmo o senso comum aconteça. ROWE, Colin; KOETTER, Fred [1978]. Op. cit. Seleção e tradução Leandro Cruz.
18
Idem, ibidem, p. 139.
19
As reflexões sobre o pensamento selvagem aqui expostas são diretamente tributárias de um trabalho anterior bem mais amplo, acerca de uma outra herança moderna no campo do urbanismo, intitulado Montagem de uma outra herança, defendida em fevereiro de 2019 como exigência para promoção à Professor Titular da Universidade Federal da Bahia. A tese foi publicada pela EDUFBA em dois volumes: Fantasmas modernos e Pensamentos selvagens. JACQUES, Paola Berenstein. Fantasmas modernos: montagem de uma outra herança. Salvador, Edufba, 2020; JACQUES, Paola Berenstein. Pensamentos selvagens: montagem de uma outra herança. Salvador, Edufba, 2020.
20
LÉVI-STRAUSS, Claude [1962]. Op. cit.
21
Rabinow aproxima da bricolagem a forma de trabalho em laboratório de cientistas “de ponta” estudados em: Making PCR, A Story of Biotechology. Latour também pesquisou, com Woolgar, laboratórios científicos em: La vie de laboratoire, la production de faits scientifiques. RABINOW, Paul. Making PCR. A Story of Biotechology. Chicago, University of Chicago Press, 1996; RABINOW, Paul [1979]. La vie de laboratoire, la production de faits scientifiques. Paris, La Découverte, 1988.
22
LÉVI-STRAUSS, Claude [1962]. Op. cit., p. 17.
23
Idem, ibidem.
24
Haroldo de Campos publica em 1955 o artigo “A obra de arte aberta” e Umberto Eco, crítico do que ele chamava de “ortodoxia” estruturalista de Lévi-Strauss, publica seu clássico Obra aberta em 1962, mesmo ano da publicação do Pensamento Selvagem por Lévi-Strauss. Haroldo de Campos, mais próximo de Lévi-Strauss pela proximidade de ambos com o linguista Roman Jakobson, publicou vários outros textos que podemos relacionar a questão da bricolagem como em A arte do horizonte do provável (“Poética do aleatório”; “Poética do precário”; “Poética da breviedade” etc.), publicado em 1969. ECO, Umberto [1962]. Obra aberta. São Paulo, Perspectiva, 1988; CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo, Perspectiva, 2010.
25
Trabalhamos com a ideia de montagem em alguns textos já publicados como: “Montagem urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo” e “Pensar por montagens”. JACQUES, Paola Berenstein. Montagem urbana: uma forma de conhecimento das cidades e do urbanismo. In JACQUES, Paola Berenstein; BRITTO, Fabiana Dultra (org.). Memória, Narração, História. In Experiências Metodológicas para a compreensão da complexidade da cidade contemporânea. Salvador, Edufba, 2015; JACQUES, Paola Berenstein. Pensar por montagens. In JACQUES, Paola Berenstein; PEREIRA, Margareth da Silva. Salvador, Edufba, 2018.
26
“Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os”. BENJAMIN, Walter. Passagens (op. cit.), p. 502.
27
LÉVI-STRAUSS, Claude [1962]. Op. cit., p. 21.
28
Sobre a questão ver o texto mais importante sobre os surrealistas de Walter Benjamin, “O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia”. Já discutimos as deambulações surrealistas pelas cidades no livro Elogio aos errantes. BENJAMIN, Walter [1928]. O surrealismo: o último instantâneo da inteligência europeia. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo, Brasiliense, 1987; JACQUES, Paola Berenstein. Elogio aos errantes. Salvador, Edufba, 2012.
29
Como nas biografias mais recentes Claude Lévi-Strauss. O poeta no laboratório de Patrick Wilcken e Lévi-Strauss, de Emmanuelle Loyer. WILCKEN, Patrick [2010]. Claude Lévi-Strauss. O poeta no laboratório. Rio de Janeiro, Objetiva, 2011; LOYER, Emmanuelle [2015]. Lévi-Strauss. São Paulo, Edições Sesc, 2018.
30
Ver por exemplo as entrevistas com Eribon, De perto e de longe ou com Moraigne, Longe do Brasil. LÉVI-STRAUSS, Claude; ERIBON, Didier [1988]. De perto e de longe. São Paulo, Cosac Naify, 2005; LÉVI-STRAUSS, Claude; MORAIGNE, Véronique [2005]. Longe do Brasil. São Paulo, Editora Unesp, 2011.
31
LÉVI-STRAUSS, Claude [1962]. Op. cit., p. 36.
32
Já aproximamos a ideia de bricolagem lévi-straussiana à ideia de autoconstrução em favelas em outras ocasiões, como no texto “B comme Bricolage”, publicado no número “L’espace anthropologique” do periódico Les Cahiers de la recherche architectural et urbaine, e antes desse artigo nos livros Estética da ginga e Esthétique des favelas. JACQUES, Paola Berenstein. B comme Bricolage. Les Cahiers de la recherche architectural et urbaine, n. 20/21 (L’espace anthropologique), Paris, mar. 2007; JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica (op. cit.); JACQUES, Paola Berenstein. Esthétique des favelas. Paris, L’Harmattan, 2002.
33
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga. A arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica (op. cit.), p. 24.
34
Idem, ibidem, p. 25.
35
Sobre a relação entre os situacionistas e as cidades ver: JACQUES, Paola Berenstein (org.). Apologia da deriva. Escritos situacionistas sobre a cidade (op. cit.).
36
Exemplos que já usamos em JACQUES, Paola Berenstein. Urban Improvisations: The Profanatory Tactics of Spectacularized Spaces (op. cit.).
37
KRACAUER, Siegfried [1964]. Rues de Berlin et d’ailleurs. Paris, Le Promeneur/Gallimard, 1995. Tradução da autora.
38
“O fato de que os espetáculos que entram na esfera da distração sejam uma mistura semelhante ao mundo da multidão das grandes cidades, o fato de que eles possam prescindir de todo autêntico nexo objetivo, e mesmo do cimento da sentimentalidade, o qual oculta a carência só para torná-la mais visível, o fato de que estes espetáculos pressagiem a milhares de olhos e de ouvidos, de modo exato e claro, a desordem da sociedade, precisamente isto faz com que eles provoquem e mantenham acordada aquela tensão que deve preceder a necessária mudança. Frequentemente pelas ruas de Berlim se é surpreendido pela ideia de que tudo venha um dia, improvisadamente, rachar no meio. Também as distrações, para as quais o público é compelido, deveriam operar do mesmo modo”. KRACAUER, Siegfried [1963]. O ornamento da massa. São Paulo, Cosac Naify, 2009, p. 347. Grifo da autora.
39
Como citamos, para a nova disciplina chamada de urbanismo, que já surgiu moderna, qualquer improvisação urbana popular era inicialmente vista como um problema de higiene ou sanitário — antes de ser visto como problema estético, social ou militar —, a ser tratado sobretudo do ponto de vista médico-higienista ou da engenharia sanitarista. A grande cidade moderna foi compreendida assim como uma enorme patologia, um organismo doente, e não é raro encontrarmos a utilização de metáforas, como “câncer”, ou ainda “tumor” (usadas até durante o século 20 por vários urbanistas modernos, como um dos mais célebres, Le Corbusier), para designar algumas áreas tidas como mais problemáticas. No Brasil, os cortiços e habitações populares coletivas foram consideradas insalubres nas áreas centrais das cidades e, em seguida, também as favelas, que se desenvolvem sobretudo a partir das demolições dos cortiços e passaram assim a ser citadas nos discursos higienistas como um tipo de “lepra” urbana a ser extirpada das cidades. No campo disciplinar do urbanismo, sobretudo em seu exercício prático de elaboração de planos, ainda baseado no monopólio do planejamento, várias metodologias foram naturalizadas e termos herdados dos discursos higienistas com suas metáforas médicas ainda são usados, como o famoso diagnóstico — como se a cidade estivesse doente e precisasse de uma médico para curá-la —, mesmo por profissionais mais críticos aos recentes processos higienistas de limpeza social que surgem a partir dos novos processos de espetacularização e gentrificação das cidades.
40
Seja no chamado “urbanismo corporativo”, mundialmente hegemônico hoje, voltado para interesses do mercado (neourbanismo, urbanismo estratégico, tático etc.), seja no seu necessário contraponto crítico e militante, voltado para interesses dos habitantes, que poderia ser chamado de “urbanismo colaborativo” (urbanismo participativo, autogestionário, comunitário etc.), as questões metodológicas deste campo disciplinar, herdadas do século 19, ainda parecem ser pouco problematizadas apesar das inúmeras críticas ao funcionalismo e racionalismo do urbanismo moderno, como as já citadas.
41
A maioria dessas vilas, invasões e favelas foram demolidas, uma foi afogada pelo lago artificial (Vila Amaury) e uma ainda persiste até hoje (Vila Planalto), e sua população foi relocada nas cidades satélites como uma das mais famosas, Ceilândia (de Companhia Erradicadora de Invasões — CEI). Para a construção da capital, houve uma campanha de recrutamento de mão de obra, levando milhares de pessoas a migrarem em busca de oportunidades de emprego, renda e de futuro promissor no planalto central brasileiro. Eram os candangos, que construíram a cidade com suas próprias mãos. No entanto, não havia no plano moderno de Lucio Costa previsão de habitações populares para os operários de sua construção, e esperava-se, por parte dos planejadores, que os operários deveriam voltar a seus estados de origem após a inauguração da cidade. Escrevemos sobre a questão, em particular o caso da Vila Amaury, em JACQUES, Paola Berenstein; ALMEIDA JÚNIOR, Dilton Lopes de. A construção de Brasília: alguns silenciamentos e um afogamento. XII EHA — Encontro de História da Arte Unicamp, Campinas, 2018.
42
RAYMOND, Jean-François de. L’improvisation. Contribution a la philosophie de l’action. Paris, Librairie Philosophique J. Vrin, 1980.
43
“Ciência da ação”, como propôs Olivier Soubeyaran. SOUBEYRAN, Olivier. Pensée aménagiste et Improvisation. L’improvisation en jazz et l’écologisation de la pensée aménagiste. Paris, Éditions des archives contempaines, 2014.
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Remetemos à noção de que as configurações são sínteses transitórias dos processos relacionais instaurados pela ação do tempo, conforme formulada por Fabiana Dultra Britto, a partir dos seus estudos sobre Temporalidades em Dança. BRITTO, Fabiana Dultra. Temporalidade em dança. Belo Horizonte, FID Editorial, 2008.
sobre a autora
Paola Berenstein Jacques é arquiteta-urbanista, professora da faculdade de arquitetura e do programa de pós graduação em arquitetura e urbanismo da UFBA, coordena o grupo de pesquisa laboratório urbano, a plataforma de ações Corpocidade e edita a revista Redobra.