Entre os anos de 2015 e 2019 foi elaborado e executado o Projeto de Pesquisa Arqueológica vinculado e subsidiário ao Plano de Conservação e Restauração Arquitetônica do Convento franciscano de Santo Antônio de João Pessoa, ação limitada a aspectos específicos estabelecidos por licitação realizada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional na Paraíba — Iphan PB.
O papel subsidiário limitou os objetivos da pesquisa de arqueologia da arquitetura ao atendimento das demandas oriundas da equipe responsável pela elaboração do referido Plano.
No Conjunto Franciscano da Ordem dos Frades Menores — OFM — é observado a partir do adro, espaço que antecede o templo barroco, obra sofisticada do século 18 limitada por muros laterais revestidos com azulejos encimados por ornatos calcários. A unidade estética deste vasto ambiente só é rompida no que se refere ao piso atual.
O piso em placas calcárias retangulares e uniformes visto no Conjunto Franciscano de João Pessoa foi agregado a este amplo acesso por sobreposição a outro que remanesce a 50 centímetros abaixo do nível encontrado em nossos dias.
Em 2015 (1), por orientação do Iphan PB, foram removidas duas lajes deste revestimento visando aferir a presença e documentar informações veiculadas pelo Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão, Provincial do Convento no século 18. De fato, o piso descrito por este franciscano lá está, composto por placas cerâmicas e de pedra aplicadas em mosaico de configuração geométrica. O piso anterior do adro mostra detalhe parcial do desenho e disposição das placas reveladas.
Submetido o Projeto de Pesquisa Arqueológica à análise técnica da Instituição de proteção ao patrimônio cultural brasileiro (2) recebeu aprovação tendo desenvolvido atividades de campo em 2018 e 2019 autorizadas pela Portaria Iphan n. 55 de 11 de setembro de 2018.
Neste período, dados documentais foram compilados e deram corpo à Pesquisa Histórica (3), peça determinante na elaboração de um Plano de Trabalho que, objetivando a mínima intervenção, focou de início áreas pré-determinadas, entendidas como de maior interesse arqueológico e arquitetônico.
Uma destas áreas seria, em princípio, o trecho da propriedade onde está a Fonte de Santo Antônio, obra do século 18 de onde era retirada a água que abastecia a comunidade e o conjunto religioso. Neste ambiente, localizado em torno de 60.00 metros abaixo do patamar onde estão implantados convento e igrejas, ficava também uma mina de calcário que forneceu material construtivo para executar ou ampliar as paredes estruturais bem como as cantarias decorativas dos diversos edifícios.
O entorno da fonte, entretanto foi desconsiderado em 2018 como área a intervir em função do intenso revolvimento do solo ocorrido nas obras de recuperação realizadas a partir da década de 1970.
No desenvolvimento da pesquisa iniciada em 2018, várias atividades do dia a dia conventual puderam ser identificadas com base nos testemunhos documentais e construídos, restando no entanto, incógnita sobre a presença e as formas de atuação dos escravos, enquanto mão de obra usual no Brasil do século 18.
O reconhecimento desta lacuna instigou questionamentos que, na oportunidade do presente artigo, são o centro da reflexão. Onde estariam acomodados, por exemplo, os escravos que serviam aos religiosos nos aspectos da extração do calcário da mina para a construção civil e do suprimento da água da Fonte?
Na ausência de qualquer evidência consistente, um correr de casas geminadas localizadas próximas à Fonte, se transformou no eventual e único indício material da presença escrava, razão pela qual estão ausentes deste breve conteúdo referências à morada e à mão de obra cativa relacionada à “lide doméstica” conventual, ainda a serem identificadas e estudadas.
O escravo
Ao introduzir a figura do escravo no contexto dos conventos, particularmente os da Ordem dos Frades Menores instalados no Nordeste do Brasil dos primeiros séculos, interessa referir Caio Prado Junior que, na Formação do Brasil Contemporâneo analisa o tema e atribui aos escravos o importante papel na formação brasileira até o século 19:
“O que, antes de mais nada, e acima de tudo, caracteriza a sociedade brasileira até princípios do século 19 é a escravidão. Em todo lugar onde encontramos tal instituição, nenhuma outra levou-lhe a palma na influência que exerce, no papel que representa em todos os setores da vida social. [...] Na América assistimos ao recrutamento de povos bárbaros e semibárbaros, [...] o homem reduzido a mais simples expressão [...]. Nada mais se queria dele, nada mais se pediu e obteve que sua força bruta, material” (4).
Ainda de acordo com Prado Junior no caso da produção de gêneros de primeira necessidade nos centros urbanos (incluam-se neste contexto as cercas conventuais) a questão é contornada, pois
“Trata-se de pequenas unidades que se aproximam do tipo camponês europeu, em que é o proprietário que trabalha ele próprio, ajudado quando muito por pequeno número de auxiliares, sua própria família em regra, e mais raramente, algum escravo.[...] Naturalmente a questão aparece mais seriamente no século 18 quando os centros urbanos adquirem relativa importância; mas o problema já existia desde o princípio da colonização” (5).
A presença dos escravos no Brasil quer em áreas rurais quer urbanas, ficou assentada com foco tanto no atendimento da produção rural quanto nas necessidades citadinas. Para o entendimento da consolidação deste sistema, obtido pelo tráfico humano ao longo do tempo, convém anotar as palavras do pesquisador Alexandre Vieira Ribeiro em artigo publicado na Revista de História da Biblioteca Nacional acerca do vulto e do interesse na “importação” desta mão de obra especial, pois
“Com quase quatro séculos de duração e mais de 12 milhões de seres humanos embarcados na costa africana, o tráfico transatlântico de escravos foi o maior fluxo migratório forçado da História, pelo menos até o século 19. E os beneficiários desse comércio, rapidamente transformados em um dos principais motores da economia mundial, não estavam exclusivamente na Europa e na América. Os homens e as mulheres embarcados nos navios negreiros eram capturados e negociados por africanos. O tráfico foi um negócio afro-europeu” (6).
Cabe observar que a posição da Igreja católica a respeito da escravidão negra até o século 19 parece ter sido permanentemente dúbia ou mesmo omissa, sem “contestar a licitude dessa instituição” (7) ao longo do tempo em que foram transportados para o Brasil, uma vez que o sistema produtivo tinha no contingente africano o suporte de todos os trabalhos.
Na verdade, o conhecimento histórico demonstra que
“No Brasil escravocrata (compreendido no período de meados do século 16 até o século 19), uma congruência da esfera espiritual (representada pela Igreja Católica) com a laica (o Estado), a fim de justificar a prática da escravidão, gerando benefícios a ambas. A teologia católica de legitimação do sistema escravista configurou-se com diferentes aparências, diferentes imagens que, de uma forma ou de outra, concorriam com o objetivo de construção ideológica” (8).
O termo “negócio” liga-se à expressão “mercadoria”, pois “a presença africana na América portuguesa se estabeleceu de forma maciça na medida em que esta se tornou imprescindível para a administração colonial e por conta das atividades que geravam lucro para a Real Fazenda — escravos africanos eram mercadorias tributadas nas alfândegas de Sua Majestade” (9).
Senzala. Que há no nome?
No campo ou nas áreas urbanas os escravos de origem africana (homens e mulheres) eram quase sempre instalados em acomodações conhecidas entre nós, no Brasil, pela expressão “senzala”.
Ao se consultar o mais antigo dicionário da língua portuguesa, de autoria do religioso católico Raphael Bluteau (10), editado em oito volumes e impresso em Lisboa entre 1712 e 1728, verificou-se que nada consta a respeito do vocábulo “senzala”...
Sem abrir mão de obras assemelhadas e da mesma centúria, pesquisou-se o Dicionário da língua portuguesa publicado por Antônio de Moraes Silva e editado em Coimbra em 1789 (11). Moraes Silva foi proprietário rural e senhor de engenhos (assim no plural) em Pernambuco, razão pela qual estava o autor familiarizado (no convívio diário) com o termo “senzala”, a saber, “no Brasil, a casa de morada dos pretos escravos”. O vocábulo “senzala” (ou sanzala) tem origem no quimbundo, idioma do tronco linguístico banto, falado em Angola, na África. Significa morada ou habitação. A partir deste entendimento percebe-se que física e arquitetonicamente a senzala não está vinculada, necessária ou exclusivamente, aos engenhos de açúcar no Brasil. Sítios e imóveis urbanos também dispunham desse tipo de habitação cujas dimensões e material construtivo já mereceram atenção e texto do arquiteto e professor Geraldo Gomes da Silva (12) pela ótica do ambiente rural em Pernambuco.Outros imóveis urbanos, como os antigos conventos administrados pelas diversas ordens religiosas estabelecidas em terras brasileiras, demandaram o apoio da imprescindível mão de obra escrava.Dentro dessa estrutura, a existência de senzalas nas propriedades conventuais é fato confirmado pela História. Artigo digital do jornalista Rodrigo Rezende apontava em 2009 esse fato: “Os historiadores garantem que os frades franciscanos [do Convento da Penha, no Espírito Santo] tiveram escravos e que um certo número ajudava na manutenção e nos serviços prestados à comunidade de Vila Velha. A senzala existiu e um dos historiadores que se ocuparam do Convento da Penha, um franciscano chamado Frei Basílio Rover, chegou a registrar em seu trabalho que era apreciável a quantidade de escravos que em determinado momento trabalhavam para os frades no Convento. Havia escravos encarregados das hortas, das construções. Tinha até músico e os que participavam dos atos religiosos” (13). A senzala franciscana na ParaíbaParticularmente neste foco — e por ter sido objeto dos estudos de arqueologia da arquitetura entre 2018 e 2019 — tal é o caso (e não só) do Convento Franciscano de Santo Antônio sediado na área central da cidade de João Pessoa, capital da Paraíba.A referida pesquisa histórica de 2018, realizada previamente aos trabalhos de campo no conjunto arquitetônico paraibano, permitiu conceituar que a concepção e instalação física de senzala conventual não devem ser entendidas como um acidente, isto é, enquanto ocorrência eventual ou sem autorização superior.Neste sentido, a transcrição de ata da reunião capitular ocorrida na Bahia em sete de dezembro de 1780, documento localizado no Arquivo da Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil sediada no Recife, Pernambuco, deixa saber do controle rigoroso nas unidades conventuais relacionadas às obras ali ocorridas, conforme se lê:
“[Ata] na qual determinou-se que nenhum religioso particular, se intrometa por título algum, a fazer, ou idear obra nos conventos e determinando o Prelado algum religioso para tirar esmola para alguma obra se entregue tudo ao irmão síndico do convento para que, por conta do Prelado, corra toda fábrica” (14).
De acordo com as reflexões de Frei Celso Márcio Teixeira no artigo intitulado “Uma visão franciscana de economia” (15), entende-se que os ensinamentos de São Francisco (1182 — 1226) apesar da firmeza com que renega o interesse pelo dinheiro e riquezas materiais em geral, sugere que o que deve reger a economia franciscana é o cuidado dos irmãos nas suas necessidades. Esta característica é motivada pelo conceito de gerir a vida ao invés de possuir e acumular bens materiais. Com o direito à propriedade vedado, ficavam as posses reduzidas ao atendimento das necessidades humanas básicas.
Teixeira estabelece, no mesmo texto, três evidências quanto aos princípios que sinalizam para um real modelo econômico franciscano:
1. O trabalho quando recomenda que “exerçam a mesma arte que conhecerem” como forma de receberem o que lhes for necessário à sobrevivência;
2. A socialização dos bens adquiridos pelos trabalhos realizados, com foco no atendimento das necessidades e partilhados entre todos, independentemente de quem ou quantos realizaram o lavor — a fraternidade;
3. A entrega do supérfluo ou mesmo do necessário, quando o outro for mais necessitado.
Frei Celso Teixeira, na continuidade do texto, entende que estes marcos de conduta serviram para balizar as adaptações econômicas que, ao longo dos séculos, os franciscanos foram promovendo na forma de lidar com necessidades e bens que, embora sem prever a extinção da pobreza, permaneceu na busca pela inclusão dos mais pobres na sociedade.
A dinâmica dos aspectos materiais da presença franciscana na Paraíba refere aparente contradição seráfica entre riqueza e monumentalidade de um lado e do outro a regra franciscana da pobreza, em contraste com os investimentos aplicados na grandiosidade barroca cujo auge se deu no século 18, levada a termo sob a fundada justificativa que “em nome de Deus nunca é demais” e valendo-se do uso da mão de obra escrava, tão mais afastada dos índios locais, quanto mais corriqueira era a importação dos negros africanos.
Neste sentido valem, mais uma vez, as palavras de Caio Prado Junior quando entende que
“Aqui [no Brasil] será o negro africano que resolverá o problema do trabalho. Os portugueses estavam bem preparados para a substituição; já de longa data, desde meados do século 15 traficavam com pretos escravos adquiridos nas costas da África, e introduzidos no Reino europeu onde eram empregados em várias ocupações: serviços domésticos, trabalhos urbanos pesados, e mesmo na agricultura. [...] Não se sabe ao certo quando apareceram pela primeira vez no Brasil; há quem afirme que vieram já na primeira expedição oficial de povoadores (1532).[...] O processo de substituição do índio pelo negro se prolongará até o fim da era colonial. Far-se-á rapidamente em algumas regiões: Pernambuco, Bahia.
Durante mais de século e meio, a produção do açúcar [...] representará praticamente a única base em que assenta a economia brasileira.
Não está nestas condições a urbana. É certo que no primeiro século e meio da colonização os centros urbanos são muito pequenos. Assim mesmo, inclui uma população dedicada sobretudo à administração e ao comércio que não tem tempo nem meios para ocupar-se de sua subsistência” (16).
Assim, é válido vincular as senzalas à presença permanente da mão de obra escrava no programa arquitetônico conventual. A ocorrência destas edificações especificamente no estabelecimento franciscano de João Pessoa não está referida na documentação material ou documental compulsada até esta data.
Diante da grandiosidade do empreendimento religioso estudado, é inevitável supor a presença destes cativos tanto com relação aos serviços domésticos quanto aos que atuavam na cerca conventual. Neste particular, fotografias tomadas em 1973 quando das obras de recuperação executadas pelo Iphan na Fonte de Santo Antônio deixam perceber a sequência de cinco pequenas casas geminadas de porta e janela que são visualizadas em primeiro plano, antes do início dos serviços, a partir da Rua Gouveia Nóbrega (um dos limites atuais da propriedade).
Este casario aparece ao fundo das obras de restauração em andamento. Para o observador atento, estas ocorrências foram consideradas indício de eventual morada dos escravos e deram margem a especulação segundo a qual o conjunto construído pode indicar a localização estratégica da senzala vinculada aos trabalhos de extração da pedra calcária bem como a coleta e transporte de água da fonte que abastecia o Convento e a comunidade do entorno.
A pesquisa documental de 2018 (17) localizou minuta de Decreto Estadual que pretendia tornar de utilidade pública para fins de desapropriação a área da Fonte de Santo Antônio e os lotes onde estão as casas geminadas, para atender a Projeto de um Horto Botânico. A descrição das propriedades deixa perceber a uniformidade dos terrenos que têm dimensões básicas de 6.00 m x 18.00 m. O levantamento cadastral de 2018 evidencia corte no terreno para implantação da Fonte e do casario, registrado em porção desvinculada no século 20 da cerca conventual.
Para efeito comparativo inseriu-se o mesmo trecho visualizado em 2019, por imagem de satélite. É possível identificar que o conjunto de casas permanece desmembrado da propriedade franciscana e apresenta configuração de ocupação semelhante à registrada em diversos cadastros anteriores, ressalvadas as alterações na arquitetura, como pode ser observado na imagem por satélite da Avenida Gouveia da Nóbrega.
Genericamente, do ponto de vista da tipologia arquitetônica, a solução de unidades conjugadas percebida neste conjunto se constitui em padrão extensamente reproduzido no Nordeste brasileiro. Os escravos “eram constantemente vigiados; as senzalas não tinham porta de fundo, todos tinham de sair, bem à vista, pela frente” (18).
Ao estudar tema semelhante, Joceneide Cunha, historiadora da Universidade Federal da Bahia, estranha o tratamento diferenciado dado a determinada casa de escravos em Sergipe e observa que “a moradia tinha comunicações ‘anteriores e posteriores’, ou seja, havia portas na frente e atrás. Dificilmente imagina-se uma senzala com tantas portas, o que facilitaria as saídas e entradas dos escravos e possíveis fugas” (19).
Sobre a participação da mão de obra africana nos conventos da Ordem dos Frades Menores, cabe referir Frei Venâncio Willeke, OFM (20), em trabalho original datilografado (com anotações manuscritas) existente no Arquivo da Província Franciscana de Santo Antônio do Brasil, no Recife, intitulado Estatísticas da Província de Santo Antônio 1585 — 1892, onde consta que o convento de Salvador, Bahia, contava em 1775 com “67 sacerdotes e coristas e 9 irmãos professos, ao todo, pois, 76 religiosos [...]. A título de curiosidade, em 1775 o Convento de Salvador possuía 86 escravos”.
Este grande número de serviçais curiosamente não encontra registro quanto ao abrigo nos programas arquitetônicos conventuais. Exceção se faça, segundo o mesmo Willeke, no estudo referido acima, ao convento seráfico de Salvador, onde, para os escravos, “havia capela própria, cuja fachada ainda se conserva como frontispício da padaria conventual”.
Interessante registrar que, na reunião capitular celebrada na Bahia em 4 de dezembro de 1802, ficou determinado que
“Sendo necessário administrar o Santíssimo Viatico aos enfermos, escravos dos nossos Conventos, em hora que se não possa dizer missa nas enfermarias, para nelas administrar, se lhe leve o Santíssimo Sacramento com toda solenidade, como se costuma levar aos Religiosos; o que também se fará nos Conventos em que não há enfermaria, quando houver necessidade” (21).
Com relação ao regime jurídico do escravo no meio sócio religioso até a segunda metade do século 19, sob a concordância silenciosa do Reino e da Igreja Católica, deve-se comentar que
“A posse de escravos pelos religiosos considerava-se normal; os carmelitas se justificavam com o exemplo dos beneditinos, que os possuíam em quantidade.
No tocante à posição da Igreja, vale salientar que os escravos negros das ordens religiosas eram considerados sob certos aspectos, como “bens eclesiásticos”[o que segundo os autores], “dificultava a sua libertação, devido às implicações do Direito Canônico quanto à alienação de bens”.
É sintomático nesse sentido fazer-se uma consulta aos livros de receitas e despesas dos conventos de então. Os escravos negros comprados ou vendidos figuram ao lado das compras ou vendas de carne, peixe, sabão, farinha, cavalos e bois... Claro que teologicamente não ocorria na cabeça de nenhum membro de ordem religiosa ou do clero afirmar que o escravo era uma “coisa”. Porém, juridicamente, sua rotulação estava entre “as coisas” ou os “bens”. E não apenas sua rotulação, mas também às vezes seu próprio estatuto jurídico o era. É bem típico o caso sucedido em 1870 entre os carmelitas de Pernambuco. Frei João do Amor Divino, sem autorização legal de seus superiores maiores, concedeu liberdade a oito escravos de seu convento. A isso se opôs o administrador dos “bens” da Ordem carmelita, Frei Alexandre José do Rosário Figueiredo. E o argumento em questão girou em torno da “alienação de bens” eclesiásticos sem os trâmites legais” (22).
Com o objetivo de pontuar a importância da análise das diversificadas relações sociais estabelecidas entre senhor e escravo, referem os autores da História Geral da Igreja na América Latina, História da Igreja no Brasil que
“Os negros viam também a Igreja como o meio através do qual eles conseguiam sua promoção religiosa e social. Um certo acesso ao mundo dos brancos era conseguido de modo especial através da Igreja. Ser “irmão de São Benedito”, “irmã de Santa Efigênia”, “irmão de N. S. do Rosário” dava aos olhos dos negros foros de importância. Pelas irmandades e confrarias os negros se sentiam promovidos social e religiosamente. Elas eram como um sucedâneo do sacerdócio e da vida religiosa proibida para os negros”.
O historiador José Antônio Gonsalves de Mello na reedição fac-similar de 1980 do Novo Orbe Seráfico Brasílico do Frei Antônio de Santa Maria Jaboatão menciona que
Não deve passar sem registro a biografia de Frei Francisco de Santo Antônio, do Convento de Olinda, “chamado vulgarmente o Pretinho, por ser negro por natureza e humilde por virtude. Era natural de Pernambuco. Foi na sua mocidade soldado do Terço de Henrique Dias e pelejou nas guerras de Pernambuco contra os holandeses. Restaurada a terra deixando o quartel buscou nos claustros da Religião um quarto para descanso da alma e segurança do espírito”. Entretanto a Ordem não o admitiu à condição de Frade professo pelo fato de ser preto, e ele foi ao Reino “e achando lá quem o introduzisse com o piedoso monarca D. Pedro II este o remeteu à Província, ordenando aos Padres dela o admitissem à profissão que veio a fazer no mesmo Convento de Olinda a 2 de agosto de 1689”.
Um fato como o acima referido não tem merecido a atenção dos historiadores das relações raciais no império colonial português a transcrição deixa marcado que havia atitude de discriminação em relação ao que se chamava na época “o acidente da cor” por parte de pessoas ou entidades no mundo português — aqui a Ordem Franciscana (23).
Sinalizada de longa data a necessidade de aproximação e algum reconhecimento aos homens de outras raças, entre tantos ícones da Igreja Católica, são identificados vários religiosos (homens e mulheres) negros que, por serviços dedicados à fé cristã, foram elevados à condição de santos, a exemplo de Elesbão, Baltazar e Efigênia. Já São Benedito — detentor de capela devocional nos franciscanos da Paraíba — por ser das figuras religiosas mais celebradas no Brasil, recebeu neste estudo a reprodução do breve histórico que consta no Dictionary of Saints (24).
Benedito, o Mouro (o Negro) 1526 — 1589
Nascido escravo próximo a Messina, Itália, foi libertado por seu senhor e tornou-se um ermitão (solitário), eventualmente encontrando-se com outros em Montepellegrino.
Foi empossado superior da comunidade, porém quando tinha em torno dos 38 anos, o Papa Pio IV desfez as comunidades de religiosos solitários, fazendo com que Benedito se tornasse um Irmão Franciscano leigo e cozinheiro no Convento de Santa Maria, próximo a Palermo. [...] Foi designado, contra a própria vontade, superior quando optou pela reforma, ficando impedido de ler ou escrever.
Após servir como superior tornou-se mestre dos noviços franciscanos embora rapidamente tenha pedido para sair desse posto e voltado à primeira condição de cozinheiro.
Sua santidade, a reputação quanto aos milagres e a fama como confessor atraíram hordas de visitantes que desejavam conhecer o sombrio e humilde cozinheiro.
São Benedito morreu no convento e foi canonizado em 1807, sendo patrono dos negros católicos nos Estados Unidos da América. O sobrenome “o Mouro” é considerado impróprio, cuja origem vem do idioma italiano onde “il moro” significa “o negro”. Abril, 4.
Na cidade do Recife, Pernambuco, duas obras de arte pictórica, óleo (ou têmpera?) sobre tábuas de madeira, foram reproduzidas no catálogo da exposição Santos Negros, instalada em 2019 no Museu de Arte Sacra de Pernambuco em Olinda (25). Estão aqui apresentadas por serem entendidas como representantes do que poderá ser reconhecido e estudado adiante: a escola de pintura franciscana nordestina, enquanto movimento artístico.
Na Figura 9, Aparição de Nossa Senhora a São Benedito. Na Figura 10, a representação de São Benedito e outros frades. Estas foram executadas provavelmente após a canonização em 1807.
Considerações finais
Ao perceber a senzala como espaço construído integrante do programa dos conventos franciscanos nordestinos no Brasil até o século 19, e tendo por base os primeiros dados apresentados e sistematizados neste artigo, entende-se que a ampliação do conhecimento sobre o tema poderá estar centrada em três frentes de pesquisa, a saber:
1. Validar na unidade da Paraíba e identificar nos demais conventos não só a senzala, mas outros ambientes que abrigavam o fazer, o dia a dia, a exemplo ds casas da lenha e do sal identificadas durante pesquisa de arqueologia da arquitetura efetuada no conjunto franciscano de Igarassu/PE, na década de 1980;
2. Verificar a conveniência do emprego da arqueologia da arquitetura com objetivo de identificar senzalas e outros elementos do programa edilício franciscano nas unidades nordestinas;
3. Reiterar a percepção de que estabelecimentos religiosos com mesma tipologia e tempo constituem unidades autônomas o que significará o espaço da morada escrava como parte integrante do programa arquitetônico conventual.
notas
1
MELO NETO, Ulisses P. de; MURARO, Carmen L. Plano de Conservação e Restauração do Convento de Santo Antônio de João Pessoa. Projeto de Pesquisa Arqueológica. Relatório Final Análise arquitetônica e arqueológica; Análise tipológica; Sistemas e Materiais Construtivos. João Pessoa, Iphan PB, 2019.
2
O conjunto franciscano da Paraíba é tombado em nível federal desde 1938 (Capela da Ordem Terceira) e 1952 (Igreja e convento de Santo Antônio).
3
MELO NETO, Ulisses P. de; MURARO, Carmen L. Plano de Conservação e Restauração do Convento de Santo Antônio de João Pessoa. Projeto de Pesquisa Arqueológica. Relatório Final Pesquisa Histórica. Anexo II Doc. 6. João Pessoa, Iphan PB, 2018.
4
PRADO JUNIOR. Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Colônia. São Paulo, Martins, 1942, p. 267-270.
5
PRADO JUNIOR. Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo, Círculo do Livro, 1945.
6
RIBEIRO, Alexandre Vieira. Escravo é aquele que não sou eu. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 10, n. 108, Rio de Janeiro, Sociedade Amigos da Biblioteca Nacional — Sabin, 2014, p. 26-29.
7
ARAÚJO, Róbson Tavares de. A Igreja Católica e a Política: reflexões sobre instituição e poder. Artigo. Biblioteca Digital da Câmara dos Deputados, Centro de Documentação e Informação, Brasília, 2009 <https://bit.ly/3fPGq6T>.
8
BILHEIRO, Ivan. A legitimação teológica do sistema de escravidão negra no Brasil. Revista do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora — CES, v. 22, Juiz de Fora, 2008, p. 100 <https://bit.ly/3fSNnnG>.
9
SANTOS, Joice. Em nome do Pai, do filho e da Real Fazenda. Revista de História da Biblioteca Nacional, ano 10, n. 108, Rio de Janeiro, Sociedade Amigos da Biblioteca Nacional — Sabin, 2014, p. 20-21.
10
BLUTEAU, Raphael. Vocabulário Portuguez e Latino. Lisboa, Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712-1728. Brasiliana Biblioteca Col. Guita e José Mindlin <https://bit.ly/3KEPp9p>.
11
SILVA, António de Moraes. Diccionário da Língua Portugueza, composto pelo padre D. Raphael Bluteau, reformado e acrescentado por António de Moraes Silva, natural do Rio de Janeiro, Lisboa, Oficina de Simão Thaddeo Ferreira, 1789, p. 689. Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin <https://bit.ly/3Asq3qD>.
12
GOMES, Geraldo. Engenho e Arquitetura, Recife, Fundação Gilberto Freyre, 1997, p. 43-48.
13
REZENDE, Rodrigo. Lenda ou Verdade? Até senzala teria existido nas terras do Convento. Artigo [fragmento]. Gazeta online. Redação multimídia, 9 abr. 2009 <https://glo.bo/3fQVFwp>.
14
MELO NETO, Ulisses P. de; MURARO, Carmen L. Plano de Conservação e Restauração do Convento de Santo Antônio de João Pessoa. Projeto de Pesquisa Arqueológica. Relatório Final Pesquisa Histórica (op. cit.), p. 24.
15
TEIXEIRA, Francisco. Celso M. Uma visão franciscana de economia. Instituto Teológico Franciscano, 2012 <https://bit.ly/3fRcveH>.
16
PRADO JUNIOR. Caio. Op. cit., p. 31.
17
MELO NETO, Ulisses P. de; MURARO, Carmen L. Plano de Conservação e Restauração do Convento de Santo Antônio de João Pessoa. Projeto de Pesquisa Arqueológica. Relatório Final Pesquisa Histórica (op. cit.), p. 26.
18
TOLLENAIRE, Louis-François de. Notas Dominicais tomadas durante viagem em Portugal e no Brasil. 1816, 1817, 1818. Recife, Empreza do Jornal do Recife, 1905.
19
CUNHA, Joceneide. Senzalas de palha, choças e choupanas: apontamentos sobre a história da moradia escrava nas terras sergipanas (1801-1888). Revista do Instituto Histórico e Geográfico de Sergipe, n. 46, v. I Dossiê Sergipe Provincial, 2016, p. 9.
20
WILLEKE, Frei Venâncio OFM. Estatísticas da Província de Santo Antônio 1585 — 1892. Documento datilografado avulso. Recife, Arquivo da Província de Santo Antônio do Brasil, s.d., p. 4.
21
Arquivo da Província de Santo Antônio do Recife PE. Documento avulso, s.d.
22
HAUCK, João Fagundes; FRAGOSO, Hugo; BEOZZO, José Oscar; GRIJP, Klaus Van der; BROD, Benno. Historia Geral da Igreja na América Latina. História da Igreja no Brasil. Segunda época: A Igreja no Brasil no Século 19. Tomo II/2. Petrópolis, Vozes, 1980, p. 92; 160; 202.
23
JABOATAM, Frei Antônio de Santa Maria [1858]. Novo Orbe Seráfico Brasílico, ou Chronica dos Frades Menores da Província do Brasil. Recife, Assembleia Legislativa de Pernambuco, 1980.
24
DELANEY, John. Dictionary of Saints. Great Britain, Kaye-Wand Ltd, 1982, p. 98. Tradução dos autores.
25
PEREIRA, Padre Rinaldo (org.). Santos Negros. Catálogo da exposição. Recife, Cepe/Maspe, 2019.
sobre os autores
Ulisses Pernambucano de Melo Neto é arqueólogo. Tem especialização em História e História da Arte (UFPE, 1973). Coordenou a primeira pesquisa de arqueologia industrial (Sítio do Físico, no Maranhão) e a primeira arqueologia subaquática no naufrágio do Galeão Sacramento, na Bahia. A atuação mais relevante está centrada em pesquisas de arqueologia da arquitetura, executadas desde a década de 1970.
Carmen Lucia Muraro é arquiteta e mestre em conservação e restauração de monumentos e sítios históricos (MP Cecre, 2013). Integrou o quadro do Iphan (2003-2016) em atividades de fiscalização, gerenciamento de projetos, pesquisas técnico-históricas do patrimônio material brasileiro. Atua na área cultural, participando de equipes interdisciplinares que desenvolvem projetos, além de pesquisas históricas e de campo.