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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Eugênio Monteferrante Netto foi um arquiteto atuante de 1957 a 2013 no estado de São Paulo, Brasil, cuja obra é uma particular e instigante interpretação das idéias do modernismo brasileiro.

english
Eugênio Monteferrante Netto was an architect active from 1957 to 2013 in the state of São Paulo, Brazil, whose work is a particular and thought-provoking interpretation of the ideas of Brazilian modernism.

español
Eugênio Monteferrante Netto fue un arquitecto activo desde 1957 hasta 2013 en el estado de São Paulo, Brasil, cuya obra es una interpretación particular y sugestiva de las ideas del modernismo brasileño.


how to quote

PIZA, João Fernando Blasi de Toledo. Eugênio Monteferrante Netto. A obsessão pelo detalhe. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 280.00, Vitruvius, set. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.280/8913>.

Eugênio Monteferrante Netto, carinhosamente chamado de Eugênio pelos familiares e amigos, Monteferrante no mundo profissional e na política, foi um arquiteto e urbanista formado na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo — FAU USP e ativo de 1957 a 2013. A maior parte de sua atividade se desenvolveu na cidade de Botucatu, embora possua obras em outras cidades paulistas como Olímpia, Itápolis, Bariri, São Manuel, Avaré, Registro, São Caetano do Sul, São Paulo e também no Rio de Janeiro.

Pouco antes de seu falecimento, em 2013, Eugênio selecionou parte de seu acervo e doou ao Centro Cultural de Botucatu — CCB. O restante, doou a amigos ou encaminhou para destruição.

Entre 2013 e 2021 o CCB limpou e acondicionou o acervo de Monteferrante. Em 2022, através de um projeto de pesquisa do Departamento de Construção Civil do Instituto Federal de São Paulo Campus São Paulo — DCC IFSC, foi desenvolvida a catalogação da obra de Eugênio, partindo de uma listagem de suas obras construídas mais significativas elaboradas pelo próprio Monteferrante em 1986, e complementando com um levantamento no acervo do CCB, no acervo de projetos particulares aprovados na Prefeitura Municipal de Botucatu, e entrevistas a antigos colaboradores, familiares e amigos.

Embora limitada, essa pesquisa permitiu a identificação das obras mais significativas de Monteferrante. Para cada obra foi gerada uma ficha de informações, construindo um painel do conjunto de seus trabalhos: setenta projetos de arquitetura e urbanismo para particulares e instituições; dezenove projetos e planos urbanísticos para a municipalidade de Botucatu; dezoito projetos de comunicação visual; catorze pequenas reformas (1).

Família e primeiros anos

Eugênio nasceu em 17 de dezembro de 1932 em Botucatu. Seus pais, Levino Monteferrante e Adelina Blasi Monteferrante, eram ambos filhos de bem sucedidos imigrantes italianos, herdeiros de tradições artesanais e então pequenos industriais em ascensão.

No entanto, dificuldades nos negócios de Levino levariam a família a uma gradativa restrição econômica que exigiria de todos os filhos a tomada muito cedo de responsabilidades domésticas. Eugênio tinha três irmãs mais velhas: Emma, Mercedes e Judith. Mais novos eram os outros dois rapazes, Anísio e Hélios, sobre os quais Eugênio carinhosamente assumiu o papel de irmão mais velho, orientando e apoiando.

A técnica e a arte habitavam as conversas da família. O avô paterno foi pedreiro e mestre de obras nos primeiros anos no Brasil. Pelo lado materno, embora predominassem ferreiros e relojoeiros, havia uma certa relação com a construção. O tio avô Rafael Laurindo era professor de artes manuais na Escola Normal de Botucatu e arquiteto prático: sem formação, projetou diversas edificações em Botucatu nas décadas de 1910 e 1920, notavelmente a maior delas, ainda hoje existente, o Hotel Santo Antônio, na Avenida Floriano Peixoto. Durante sua infância e juventude Eugênio conviveu muito de perto com os tios maternos Brasil e Francisco Blasi, engenheiros mecânicos e eletricistas habilitados também como engenheiros civis, transitando entre as atividades industriais e inúmeros projetos de edificações na cidade. A casa de Eugênio ficava vizinha à fábrica dos tios, fomentando essa interação.

O talento de Eugênio para o desenho foi percebido logo na família e também fora: ainda adolescente passou a fazer cartazes para os eventos do Arcebispado, sendo inclusive chamado a cooperar como ajudante (junto de seu inseparável amigo Seiyu Gushiken) dos artistas Jacira e Henrique Oswald nas pinturas murais sacras que desenvolveram em Botucatu. Eugênio e Seiyu pintaram fundos e preencheram grandes panos de pintura para o casal de artistas (2).

Eugênio cursou o Grupo Escolar Cardoso de Almeida, e a seguir fez o Curso Científico na Escola Normal de Botucatu. Na época, o professor de matemática Cid Guelli estava fazendo fama (3) por aprovar seus alunos nos principais vestibulares da capital paulista, e Eugênio foi um deles. Em 1952 partiu para São Paulo para cursar a FAU USP.

A formação profissional

Na capital paulista passou a residir em uma pensão, dividindo o quarto com seu pai, então investigador de polícia. Nos anos seguintes vários primos de Botucatu foram estudar em São Paulo, e os finais de semana ficavam animados com a reunião destes aos primos paulistanos, residentes na Vila Mariana.

Na FAU USP estabeleceu amizade especialmente próxima com cinco colegas: Marlene Picarelli, João Walter Toscano, Benedito Lima de Toledo, Melanias Massage Nagamine e Roberto Franco Bueno. Com Bueno, desenvolveu trabalho para a disciplina Arquitetura Brasileira, de Carlos Lemos, a respeito de um antigo casarão de Jundiaí, que chegou a ser premiado (4).

Entre os professores, aqueles aos quais mais se liga são Anhaia Melo e, sobretudo, Zenon Lotufo. Este último era conterrâneo, amigo da família, e recebeu Eugênio de braços abertos na FAU USP.

Eugênio estagiou no escritório de Lotufo de 1953 a 1955, anos em que o escritório produziu alguns de seus mais icônicos projetos (Prefeitura de Bauru, Prefeitura de São Caetano do Sul, Fábrica de Fertilizantes da Petrobrás em Cubatão, Botucatu Tênis Clube) ao mesmo tempo em que Zenon colaborava com Niemeyer para o projeto do Parque do Ibirapuera.

A partir de 1956 Eugênio desenvolveu trabalhos para a Sociedade de Análises Grafo Mecânicas Aplicadas a Complexos Sociais — Sagmacs (5), principalmente levantamentos de campo na Zona Leste de São Paulo para o Estudo da Aglomeração Urbana Paulistana, paralelamente à colaboração com Zenon Lotufo em alguns projetos, seja desenvolvendo detalhamentos ou acompanhando obras.

A primeira fase profissional: escritório em São Paulo 1957–1968

Ainda em fins dos anos 1950 Eugênio estabelece escritório na avenida Brigadeiro Luis Antônio, proximidades da avenida Paulista, dividindo o espaço com Melanias Nagamine. A dupla desenvolveu alguns projetos em parceria, mas no geral trabalhavam em separado (6).

Em fins dos anos 1960 com várias obras em andamento em Botucatu, Eugênio decide mudar-se definitivamente para esta cidade, encerrando a parceria com Nagamine. Desta fase foram identificados trinta projetos, além de detalhamentos e acompanhamentos de obras de outros escritórios, como Zenon Lotufo e a Themag, dos quais não foi possível resgatar qualquer informação.

Segunda fase profissional: escritório em Botucatu 1969–1987

Em Botucatu, Eugênio foi nomeado Diretor de Planejamento (1970–1973) pelo então prefeito Luis Aparecido (Lico) da Silveira. Neste período coordenou o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado de Botucatu, aprovado em 1973, que se tornou o documento principal de orientação urbanística da cidade, determinando sua estrutura atual (2023). Eugênio voltaria à prefeitura como vice-prefeito e Diretor de Planejamento no mandato 1977–1982 e como consultor de urbanismo nos anos de 1983–1985. Paralelamente à sua atuação como urbanista, manteve um volume significativo de projetos particulares até meados da década de 1980. Desta fase foi possível listar setenta projetos, caracterizando a maior parte de sua produção documentada até o momento.

Terceira fase profissional: consultor esporádico e a volta à prefeitura

O envolvimento de Eugênio com o planejamento urbano de Botucatu foi crescente ao longo de sua vida profissional, enquanto as encomendas particulares seguiram caminho inverso. Vereador em 1997–2000 e novamente Diretor de Planejamento em 2001–2004, teve a oportunidade de voltar a defender algumas de suas propostas urbanísticas, participando intensamente como cidadão dos debates do Plano Diretor Participativo de 2008, onde conseguiu aprovar seu projeto para o novo centro Cívico de Botucatu. Desta fase foi possível identificar cerca de vinte projetos. Este menor volume de projetos pode estar relacionado a uma diminuição da produção de Monteferrante no período após 1987, mas também está impactado pela metodologia da catalogação de seus trabalhos, que dependeu quase unicamente da memória de colaboradores, amigos e familiares para o resgate das obras deste período, pois poucos projetos desta fase estão em seu acervo no CCB, na prefeitura de Botucatu este período não está catalogado e o próprio Eugênio não atualizou sua lista de projetos mais relevantes após 1986.

Pensamento e obra

O contexto botucatuense em que atuou

Grande parte do interesse da obra de Eugênio consiste em ajudar a lançar luzes sobre como a arquitetura moderna foi recebida nas cidades do interior paulista. Uma vez que a maior parte de sua obra se concentra em Botucatu, é relevante traçar um cenário da arquitetura nesta cidade no momento em que se inicia a atuação profissional de Eugênio.

A cidade de Botucatu viveu um período de relativa estagnação naqueles tempos: se no início do século 20 ela havia se afirmado como “capital da Alta Sorocabana” como a qualificou Pierre Mombeig (7), isso se dissipou gradativamente entre 1930 e 1960. Com o desenvolvimento de novos centros regionais a oeste, a região de influência de Botucatu se viu reduzida, impactando no comércio e nos serviços. A falta de energia elétrica e a limitação dos meios de transporte estrangularam o crescimento urbano, que naquelas três décadas apenas compensou o êxodo rural do próprio município (10 mil habitantes rurais x 30 mil urbanos em 1960, aproximadamente o inverso de 1930), ficando a população municipal estagnada. Para efeito de comparação, a cidade de Bauru tinha em 1930 aproximadamente a mesma população urbana de Botucatu (10 mil habitantes), e chegou a 1960 com o triplo da população desta (90 mil habitantes x 30 mil habitantes). No final dos anos 1950 começam a soprar ventos de mudança: em 1958 a rodovia Marechal Rondon é pavimentada conectando Botucatu a Itu e São Paulo; em 1962 é inaugurada a Usinas Elétricas do Paranapanema S.A. — Uselpa, fornecendo energia elétrica farta e segura; em 1963 é instalada a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu, hoje Campus Rubião Júnior da Universidade Estadual Paulista — Unesp (8).

Um dos primeiros sinais de otimismo e renovação seria a construção do Hotel Peabirú, iniciada em 1953, com projeto de Gustavo Gama Monteiro (9).

A obra de Eugênio

Casa da Cultura: Centro Cultural de Botucatu e Teatro Amador, Botucatu SP, 1957–1965

Ainda no último ano de faculdade, Eugênio desenvolveu este projeto pensando em um acesso central como uma pequena praça, para onde pudessem se voltar tanto o acesso do cine-teatro quanto o do centro cultural. Para separar o acesso de serviços do teatro, voltou-o para a praça Rubião Júnior, e distribuiu os camarins e apoios nesta lateral; bilheteria, bombonière e sanitários concentrou ao fundo da pracinha interna de acesso; o Centro Cultural seria articulado por uma galeria envidraçada voltada para a pracinha interna e uma escadaria; embaixo ficaria a biblioteca e em cima salas para cursos e palestras.

Casa da Cultura, Botucatu SP, 1957–1965. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Desenho João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2023

Plasticamente, os dois edifícios apresentariam empenas cegas simétricas para a rua General Telles, amenizadas por um recuo dos subsolos que destaca os volumes dos jardins frontais; estes dão generosidade ao passeio, tornando-o apropriado à concentração típica das saídas de espetáculos.

A execução da obra foi extremamente difícil, com arrecadação de fundos, de modo que foram oito anos para que se conseguisse ter o Cine Teatro inteiro e o primeiro piso do Centro Cultural; o segundo andar do Centro Cultural demorou outras três décadas para ser executado. A alteração da circulação do térreo do Centro Cultural rompeu sua relação com o jardim do Cine Teatro, desagradando Eugênio (10).

Instituto de Artes Santa Marcelina, Botucatu SP, 1959–1970

O Colégio Santa Marcelina de Botucatu é a casa mãe da irmandade italiana no Brasil. Seu núcleo original data de 1912, tendo passado por várias ampliações nas décadas seguintes.

Instituto de Artes Santa Marcelina, Botucatu SP, 1959–1970. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

Instituto de Artes e Colégio Santa Marcelina. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

Em 1959, Eugênio iniciou uma série de trabalhos no Colégio que rearticulam a circulação do edifício histórico com novas circulações verticais nos fundos; remodelou completamente o pátio posterior com novo paisagismo, criou novos anexos de serviços e terraços e por fim projetou o novo bloco destinado ao Instituto de Artes, que hoje abriga salas de aula do Colégio Santa Marcelina (11).

Loteamento Jardim Paraíso, Botucatu SP, 1962

Em 1962 Eugênio recebeu da família Barros o encargo de projetar o parcelamento de toda sua chácara, uma área de aproximadamente 977.715m², resultando em mais de 2 mil lotes. Tratava-se de uma grande área que conectou a cidade à Fazenda Lageado, e permitiu a Eugênio propor a organização de uma ampla área da cidade, que acabou por determinar a articulação das áreas vizinhas.

Jardim Paraíso, loteamento em amarelo, com principais vias destacadas em vermelho, Botucatu SP, 1962. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza sobre imagem Google Earth

As três vias principais têm função específica: a avenida Camilo Mazzoni foi feita para dar continuidade à avenida José Leonardo Villas Boas, ambas percorrendo a crista do espigão; a avenida José de Barros Sobrinho retificou o traçado da velha estrada rural que conectava a cidade à Fazenda Lageado margeando a ferrovia a meia encosta; e a avenida Rafael Laurindo partiu do centro da Vila dos Lavradores (bairro pré-existente vizinho) e a conectou à parte alta da gleba, percorrendo-a pelo meio, numa clara intenção de atrair o movimento comercial, ao mesmo tempo em que sugere um triângulo de avenidas estruturando a região norte da cidade de Botucatu.

Conjunto Assistencial e Educacional do Sesi, São Caetano do Sul SP, 1965–1968

Desenvolvido em parceria com Melanias Nagamine, este edifício se caracteriza pelos pátios internos formados entre os três pavilhões de dois pavimentos, interligados por passarelas. Guarda alguma semelhança com a solução proposta por Monteferrante para o Centro Cultural de Botucatu, na criação de pequenos jardins internos intercalados às edificações e sombreados pelas passarelas.

Conjunto Assistencial e Educacional do Sesi, São Caetano do Sul SP, 1965–1968. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

O esquema pavilionar das edificações e a implantação em platô intermediário na encosta inclinada permitiu que se fizessem seguidas ampliações sem que se perdesse a concepção arquitetônica do núcleo original.

Igreja Matriz de São João Batista, Olímpia SP, 1965–1975

Parceria de Eugênio com Melanias Nagamine, a igreja matriz São João Batista de Olímpia apresenta uma interessante implantação, possivelmente inspirada na igreja São Benedito de Botucatu, cujas obras foram dirigidas pelo tio de Eugênio, Francisco Blasi, e executadas pelos mesmos empreiteiros que trabalhavam com Eugênio no Colégio Santa Marcelina.

Igreja Matriz de São João Batista, modelo 3D, Olímpia SP, 1965–1975. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza

No entanto, em Olímpia, a dupla de arquitetos inovou, não só dando um desenho muito mais elegante à edificação como fazendo as rampas suspensas por pilares, dando mais leveza ao conjunto; a torre separada do corpo principal da igreja remete à tradição italiana do campanário independente. No geral, a simplicidade do conjunto e sua luminosidade parecem amenizar o gigantismo da estrutura, fazendo-a parecer acolhedora e simples.

Conjuntos habitacionais em Avaré SP e Botucatu SP, 1967–1968

Ao longo dos anos de 1967 e 1968 Eugênio desenvolve projetos para três conjuntos habitacionais, dois em Avaré e um em Botucatu, todos executados pela construtora Sobloco e viabilizados via Inocoop pela Cooperativa Habitacional de Avaré. O Conjunto Habitacional Dom Henrique Golland Trindade em Botucatu foi inserido no loteamento Jardim Paraíso, projeto de Eugênio, como modo de dinamizar sua ocupação. Eugênio teve o cuidado de não utilizar as esquinas de modo a evitar que o conjunto de casas populares definisse a plástica urbana, tornando-a monótona. Também deixou amplos recuos frontais de modo que as ampliações futuras pudessem redefinir a plástica de cada casa, personalizando-as.

Conjunto habitacional Dom Henrique, implantação, Botucatu SP, 1967–1968. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza sobre imagem Google Earth

Conjuntos habitacionais Água Branca e Voluntários, implantação, Avaré SP, 1967–1968. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza sobre imagem Google Earth

No caso do Conjunto Voluntários, em Avaré, as casas foram inseridas em trecho já urbanizado e relativamente central, aproveitando lotes vazios de quadras antigas. Por fim, o Conjunto Água Branca envolveu também o projeto de loteamento de uma gleba, onde Eugênio procurou ao máximo dar continuidade às vias existentes no entorno, porém em alguns casos para otimizar o aproveitamento da gleba criou ruas fora do alinhamento também. Sua preocupação, em todos os empreendimentos, passa pela visão de que o conjunto deve ser assimilado pela cidade e isso passa pela diluição de todos os contornos — arquitetônicos ou urbanísticos — que possam diferenciá-lo do restante da cidade.

Conjuntos habitacionais, tipologias das unidades, Avaré SP e Botucatu SP, 1967-1968. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Desenho João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2023

As casas foram projetadas em quatro tipologias: tipo 1 (um dormitório, 33m²), 2 (dois dormitórios, 45m²), 3 (três dormitórios, 60m²) e 4 (três dormitórios com cozinha e sala ampliadas, 70m²). Em todas as casas foram utilizadas janelas tipo “Ideal” nos dormitórios, fabricadas nas Indústrias Blasi; os vitrôs foram executados pela Serralheria Caricati.

Residência Bauer, Jardim Guedala, São Paulo SP, 1968

Eugênio experimenta pela primeira vez uma solução que voltaria a visitar várias vezes, acomodando no pavimento inferior garagem e ambientes de menor uso e concentrando a área residencial propriamente dita em apenas um pavimento. Os dormitórios para o norte, salas cruzando a casa da frente aos fundos, cozinha e serviços ao sul, nos fundos.

Casa Bauer, modelos tridimensionais com fotoinserção e perspectiva explodida, Jardim Guedala, São Paulo SP, 1968. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza

A ampla janela da sala ressaltada do plano da fachada e assimétrica, faz um contraponto vibrante à linearidade conferida pela laje frontal que cobre a entrada de pedestres e a entrada da garagem, cruzando o lote de uma divisa à outra.

Residência Ferreira de Barros, Botucatu SP, 1970

O proprietário visitou a residência Bauer recém concluída em São Paulo e adorou. Pediu a Eugênio uma casa similar em Botucatu. O contexto era bastante diverso: o terreno de São Paulo era inclinado, o de Botucatu, plano; o terreno de São Paulo possuía aproximadamente 700m², o de Botucatu cerca de 1.000m²; Embora as casas guardem muitas similaridades no arranjo, a relação com o quintal é totalmente distinta: a casa de Botucatu é praticamente uma casa sobre pilotis, com jardins avançando sob a casa e recebendo escadas helicoidais que descem dos ambientes sociais e de serviços.

Residência Ferreira de Barros, Botucatu SP, 1970. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

Eugênio deixou claro em seu depoimento (12) que esta era a obra particular que considerava que tinha chegado ao melhor resultado. É também um ponto de virada sob alguns aspectos: é a primeira casa em que Eugênio usa a janela metálica (chapa dobrada) de três folhas (vidro, cega e veneziana), que se tornaria característica de seus projetos daí em diante.

Residência Ferreira de Barros, perspectiva explodida, Botucatu SP, 1970. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2023

Sobre as janelas, vale destacar que Eugênio adotou pela primeira vez a janela de três folhas de correr em 1970 (projeto aprovado da casa Ferreira de Barros); João Kon é considerado criador deste tipo de janela, mas os primeiros edifícios de sua construtora que o adotam são de 1972 (13). Uma questão cronológica interessante a ser investigada.

Foi também o primeiro gradil em chapa dobrada em “U” de Eugênio — que também seria largamente copiado na cidade daí por diante; foi uma das últimas casas de volumetria “quadrada”, com telhado embutido e platibandas: depois, Eugênio passaria a explorar as possibilidades plásticas dos telhados em fibrocimento.

Residência Goulart, Botucatu SP, 1973

A partir de 1970 Monteferrante desenvolveu uma série de projetos residenciais em que explorava a plástica dos telhados em fibrocimento, principalmente com peças mais robustas que minimizassem ou até eliminassem a necessidade de madeiramento. Dentre estas experiências, a residência Goulart merece destaque pelo refinamento plástico atingido, pela implantação urbana primorosa, e pelo aparelho da alvenaria formando um painel que é uma verdadeira obra de arte, passando de modo quase imperceptível de uma parede opaca para um muxarabi em alvenaria.

Residência Goulart, Botucatu SP, 1973. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

A organização da casa é extremamente compacta; o quintal privativo é diminuto, privilegiando os jardins que contornam a casa e dão generosidade ao espaço público. De fora a casa parece ser uma casa térrea com acesso social pelo pavimento superior e subsolo garagem e de serviços; no entanto, trata-se de um sobrado, com acesso pela rua lateral e pelo pavimento inferior; o acesso superior é apenas para o escritório doméstico, embora possa ser usado para acessar a casa também. Na divisa dos fundos a parede reproduz o desenho do relevo da região, com o contorno característicos da cuesta de Botucatu, onipresente em diversos acabamentos, arquiteturas e projetos gráficos de Monteferrante.

Inicialmente este projeto deveria seguir uma volumetria mais ortogonal, com platibandas ocultando o telhado e fachada lateral alinhada à cobertura; curiosamente, no desenvolvimento dos trabalhos Eugênio desenvolve a solução em que explora o fibrocimento como definidor da plástica da casa, criando ainda um inovador sistema de forro para os beirais, com refinado ripado em madeira.

O forro em madeira, destacado da empena lateral do telhado em concreto pintado de branco, acompanha a sua curvatura enfatizando a presença da entrada secundária. O aparelho de alvenaria tem sua genialidade no fato de manter o ritmo das saliências criando vãos com a ausência de determinadas peças sem que se perca a trama do assentamento.

Escritórios do Sistema Autônomo de Águas e Esgotos de Botucatu SP, 1973

Neste projeto Eugênio faz uma grande experimentação em concreto armado, apoiado pelo seu calculista mais próximo, Akira Nishyama, que era de Avaré e foi por muito anos calculista na Themag em São Paulo. O projeto consiste em três grandes lajes cogumelo quadradas ladeadas por uma estrutura de fechamento independente. Trata-se de um dos poucos edifícios dos quais Eugênio guardou todo o desenho de detalhamento, permitindo uma reconstituição completa da concepção original.

Escritórios do Sistema Autônomo de Águas e Esgotos, atual Sabesp, Botucatu SP, 1973. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza

Embora o edifício esteja descaracterizado pela instalação de forro rebaixado e divisórias, a alvenaria e a estrutura estão preservadas e as reformas podem facilmente ser removidas, o que seria muito interessante para devolver à vista a estrutura mais escultural que Eugênio concebeu.

O mobiliário projetado inicialmente reforçava a continuidade espacial, antecipando a atual concepção de escritórios “open-space”. Sob vários aspectos este projeto reflete a declarada admiração de Monteferrante pelos trabalhos de Niemeyer assim como pela obra de Pier Luigi Nervi.

Urbanismo do Campus Lageado, Diretoria da FCA Unesp e Núcleo de Salas de Aula, Botucatu SP, 1986–1995

Projeto desenvolvido entre os anos de 1985 e 1988, foi uma imersão profunda de Eugênio em um trabalho de grande escala que foi do urbanismo ao detalhamento da arquitetura.

Urbanismo do Campus Lageado, implantação com intervenções do arquiteto, Botucatu SP, 1986–1995. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza sobre imagem Google Earth

Como em muitos de seus projetos, Eugênio viveu dentro da obra durante sua execução, acompanhando cada operação desde a terraplenagem até a instalação dos caixilhos, o que o ocupou até o início dos anos 1990. O resultado final agradou tanto a comunidade acadêmica quanto a população da cidade, que passou a frequentar o campus como se fosse um grande parque.

Diretoria da FCA, Campus Lageado, Botucatu SP, 1986–1995. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

Eugênio concebeu o sistema viário pensando não apenas nas conexões do campus com a cidade e na sua articulação interna, mas também ponderando que a posição das vias em uma área tão declivosa limitaria as possibilidades de implantação das novas edificações. Deste modo, concebeu as possibilidades de posicionamento das edificações juntamente com o desenho do viário, resultando numa implantação surpreendentemente suave e flúida em uma colina muito íngreme.

Central de Salas de Aula, Campus Lageado, Botucatu SP, 1986–1995. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Foto João Fernando Blasi de Toledo Piza, 2022

Quanto à posição das edificações, Eugênio se preocupou tanto em minimizar o movimento de terra para a criação de platôs quanto com a melhor ventilação e insolação dos espaços livres, alinhando os pavilhões paralelamente à direção dos ventos predominantes, que coincidiam com as curvas de nível aproximadamente. O estudo da insolação das edificações levou ao desenvolvimento dos brises em concreto afastados dos beirais, que juntamente aos pilares curvos definem a plástica da edificação (14).

A visão de cidade de Monteferrante: planos diretores e projetos urbanísticos para Botucatu, 1970–2013

Sem dúvida entre todos os projetos de Eugênio, aqueles aos quais mais se dedicou — muitas vezes sem qualquer pagamento — ou “graciosamente” como ele falava, são os projetos urbanos. Salta aos olhos a preocupação com o sistema viário, sobrepujando qualquer preocupação ambiental. O verde é para o lazer humano. Os fundos de vale são oportunidades urbanas para a implantação de vias expressas. As ruas devem ser largas, pois a cidade crescerá muito e terá muitos carros.

Embora hoje a crítica a algumas de suas propostas seja sensível, devido à mudança de paradigmas do planejamento urbano nas últimas décadas, alguns elementos que propôs se mostraram acertados: a importância de sistemas viários generosos não só para os automóveis, mas para comportar todas as infraestruturas de interesse público e ainda pedestres e ciclistas.

Botucatu foi seu laboratório de urbanismo por mais de trinta anos; nesse período, entre as muitas propostas que elaborou, podemos destacar três particularmente impactantes na cidade: o trevo de entrada da cidade pela rodovia SP209, o anel viário e a rodoviária.

O trevo da SP209, foi uma vitória de última hora. Com os tratores já no canteiro de obras, ele convence o então governador Paulo Maluf que a entrada da cidade tinha que ser pela avenida Pedretti Neto, larga e plana, e não pelas ruas Visconde do Rio Branco e Campos Salles, duas ladeiras estreitas (15).

Propostas para nova entrada, rodoviária e anel viário, croqui explicativo, Botucatu, 1970–2013. Arquiteto Eugênio Monteferrante
Elaboração João Fernando Blasi de Toledo Piza

A rodoviária, Eugênio propôs como a de Brasília, com dois níveis, um conectado à rodovia e outro, inferior, conectado ao anel viário expresso do centro da cidade. Diante da inviabilidade burocrática de fazer a rodoviária a cavalo da rodovia, ele altera sutilmente sua posição para a avenida Pedretti Neto, ao lado do Cemitério, e inicia as obras. Quando ele rompe com o prefeito Jamil Cury, este transforma a obra inacabada em um Varejão, e constrói uma outra rodoviária em ponto mais central da cidade. A argumentação de Cury era que o local proposto por Eugênio era mal servido por transporte coletivo e que seria melhor para a população da cidade acessar uma rodoviária mais central; Eugênio argumentava que isso levaria um tráfego indesejado de ônibus interurbanos para o coração da cidade e que se poderia criar o transporte coletivo até a nova rodoviária. Para piorar a situação, a rodoviária construída por Cury se situa junto a uma confluência de córregos, e o canal construído foi apontado por Monteferrante como subdimensionado (16). O tempo deu a razão a Monteferrante, tanto no subdimensionamento do canal quanto na inadequação da localização da rodoviária.

Por fim, o anel de vias expressas consistiria em implantar avenidas de fundo de vale sobre os córregos Lavapés e Tanquinho, formando um anel contornando a área central. A não implantação deste projeto preservou as corredeiras dos ribeirões e grandes áreas arborizadas, que atualmente estão sendo transformadas em parques.

Síntese conclusiva

A obra de Eugênio, até agora praticamente desconhecida no ambiente acadêmico, pode ajudar a compreender alguns processos não hegemônicos de difusão do movimento moderno e seu imbricamento com alguns elementos do ecletismo ainda persistentes no interior paulista na década de 1960.

Suas reflexões permeiam grande parte do planejamento urbano da cidade: ao longo de décadas definiram ou influenciaram a definição de quase todas as diretrizes viárias e urbanísticas da cidade. A visão de urbanismo de Eugênio pode ser vista como uma reverberação do que estava sendo proposto por pessoas e espaços institucionais centrais, como Harry Cole, estudado por Lucchese, figura central na definição das políticas urbanísticas e habitacionais do Serviço Federal de Habitação e Urbanismo — Serfhau (17).

notas

1
INTIMAITA, Larissa Ramos. Relatório final de pesquisa. São Paulo, DCC-IFSP, 2022.

2
Cinquantanni di Lavoro degli Italiani in Brasile
. São Paulo, Societá Editrice Italiana, 1937.Vol II, pp 242, 243 e 346; PIZA, M.A.B.T. O Mural da Santíssima Trindade em Botucatu. Scortecci, São Paulo, 2022, p. 25-27.

3
Cid Guelli acabou convidado a lecionar no cursinho Anglo da rua Tamandaré, em São Paulo, e se tornou professor símbolo da instituição.

4
BUENO, Roberto Franco. Vila Fermosa de Nossa Senhora do Destêrro de Jundiaí. Jundiaí, In House, 2010, p. 73; 102; 252.

5
SAGMACS: Sociedade de Análises Grafo Mecânicas Aplicadas a Complexos Sociais foi um escritório de planejamento urbano vinculado ao movimento Economia e Humanismo, liderado pelo Padre Lebret e desenvolvido na França e no Brasil. Desenvolveram estudos e planos territoriais de variadas escalas em várias regiões do Brasil.

6
Depoimento de Eugênio Monteferrante colhido em 15 de março de 2006.

7
MOMBEIG, Pierre. Pioneiros e fazendeiros de São Paulo. São Paulo, Hucitec/Polis, 1984.

8
PIZA, João Fernando Blasi de Toledo. A formação de povoados na região de Botucatu. Orientador Antonio Claudio Moreira Lima e Moreira.Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2007.

9
Jornal Folha de Botucatu, 19 jan. 1957, acervo CCB.

10
Depoimento de Eugênio Monteferrante colhido em 15 de março de 2006.

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Depoimento de Eugênio Monteferrante colhido em 15 de março de 2006.

12
Depoimento de Eugênio Monteferrante colhido em 15 de março de 2006.

13
Sobre Gama Monteiro ver também: PACHECO, Paulo Cesar Braga. A arquitetura do grupo do Paraná 1957-1980. Orientador Claudio Calovi Pereira. Tese de doutorado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2010, p. 33; 53.

14
GUERRA, Abilio; ESPALLARGAS GIMENES, Luis; SERAPI˜AO, Fernando (Org.). João Kon, arquiteto. São Paulo, Romano Guerra, 2016, p. 61.

15
VEIGA, Ricardo Antonio de Arruda Veiga; CANDEIAS, José Eduardo Soares. FCA 50 anos: reminiscências. FEPAF, Botucatu, 2015. p. 125-135; 343-356; 372-378; 407.

16
Depoimento de Eugênio Monteferrante colhido em 15 de março de 2006.

17
LUCCHESE, Maria Cecília. Em defesa do planejamento urbano. São Paulo, Alameda, 2014.

sobre o autor

João Fernando Blasi de Toledo Piza é arquiteto e urbanista (2002), mestre (2007) e doutor (2015) pela FAU USP. É docente do curso de Arquitetura e Urbanismo do Instituto Federal de São Paulo e atua como consultor em projetos de arquitetura e urbanismo.

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