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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Esse artigo analisa uma questão que tem agitado os historiadores de arquitetura. Como foi a cabana inicial? Como hipótese coloca-se a ideia de que a cabana primitiva tal como a entende Corbusier tenta criar um passado simétrico à sua escala de valores.

english
This article analyzes a question that has agitated architecture historicists. What was the primitive hut like? As a hypothesis we put forward the idea that the early cabin proposed by Corbusier tries to create a past symmetrical to his scale of values.

español
Este artículo analiza una cuestión que ha agitado a los historiadores de la arquitectura. ¿Cómo era la cabaña original? La hipótesis es que la cabaña primitiva propuesta por Corbusier intenta crear un pasado simétrico a su escala de valores.


how to quote

SEBA, Luiz Fernando de Biazi. As fabulações de Corbusier para um mundo simétrico. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 280.01, Vitruvius, set. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.280/8917>.

Charles Eisen, Frontispício do tratado de Laugier [Wikimedia Commons]

Até o fim do paleolítico, cerca de 10.000 a.C., os primeiros hominídeos eram nômades, caçadores e coletores, viviam caminhando pela terra em um movimento instintivo em busca de sobrevivência. Habitavam locais onde poderiam se esconder das intempéries e das feras que os ameaçavam. Viviam em cavernas e clareiras, nas florestas, savanas e pradarias onde criavam primitivos habitáculos. Os nômades comiam as frutas e vegetais que encontravam pelo caminho, caçavam animais que os proviam de proteína por alguns dias ou semanas, antes que a carne estragasse. Viviam próximos aos locais onde encontravam água doce. Os seres humanos primitivos depositavam sua atenção no aqui e agora, nas necessidades imediatas de seus corpos, sem desenvolver pensamentos de futuro ou planejar seus próximos atos. Nesse momento da história, as vidas seguiam os instintos que funcionavam como elementos calibradores das necessidades.

Segundo Harari em Sapiens, por incontáveis gerações, os humanos pré-históricos “eram animais insignificantes, cujo impacto sobre o ambiente não era maior que o de gorilas, vagalumes ou águas-vivas” (1). Isso nos coloca a pensar: quais processos levaram o Homo sapiens arcaico à evolução e os demais homo à extinção? Quais processos consolidaram o Homo sapiens moderno?

Robert K. Logan nos aponta que a passagem do Homo sapiens arcaico ao Homo sapiens sapiens se dá em decorrência de uma abundância de fatores (2). Logan coloca a linguagem como a condicionante principal, mas não exclui demais influências como a sedentarização e o domínio do fogo, que complexifica e acaba por tornar-se condição de sobrevivência e condicionante para a mudança dos modos de vida dos humanos, até então primitiva e ligada ao instinto. Vale elucidar que se entende como linguagem o suporte conceitual e abstrato que diferencia os humanos dos outros animais. Suporte que permite uma troca de informação estruturada primeiro na mente e que possibilita o rompimento com o aqui e agora do instinto. Entende-se como linguagem não apenas o verbal, mas também o não verbal, as tentativas de desenhos nas cavernas, o tato e contato permitido, no neolítico, pelo convívio em grupos, assim como as primeiras vocalizações e os primeiros balbuciares que levaram ao início da cultura. Diferentemente do que Logan propõe, que parece se ater ao verbal, entende-se como, e de aqui em diante, remete-se a linguagem como esse conjunto amplo de manifestações.

É preciso notar que entre o processo evolutivo do Homo sapiens arcaico ao Homo sapiens sapiens ocorre um longo processo que depende de vários fatores: a habilidade de produzir artefatos que diminuem o gasto de energia do corpo e atuam como uma espécie de extensão do corpo; o convívio social; o advento da linguagem; a sedentarização e o domínio sobre o fogo.

Merlin Donald coloca em evidência que o convívio em grupo é um dos fatores que condiciona essa evolução, como podemos notar quando o autor comenta a obra de Robin Dunbar:

“Dunbar [1990] propôs recentemente que a encefalização foi impulsionada não pelas demandas cognitivas da fabricação de ferramentas ou o mapeamento espacial do ambiente, mas pelo crescimento dos grupos sociais. Em outras palavras, não foi a inteligência instrumental que impulsionou a expansão do cérebro, mas sim a inteligência social. Sociedades complexas exigem muito da memória: um grande número de relacionamentos deve ser analisado, compreendido, armazenado e mantido regularmente para sustentar uma grande organização de grupo. Com certas exceções, os primatas mais avançados agrupam-se em grupos sociais cada vez maiores, culminando na capacidade humana de organizar e sustentar grupos muito grandes. Pode ser que as habilidades intelectuais necessárias para sustentar grandes grupos sejam idênticas às que permitem a invenção cultural. As primeiras adaptações na linha dos hominídeos podem ter sido impulsionadas pelas demandas do agrupamento social, e a invenção cultural pode ter sido seu subproduto” (3).

Pouco a pouco, o Homo sapiens arcaico passaria a viver em um sistema comunal e, como decorrência do domínio dos modos de plantio e da pecuária de subsistência, tornar-se sedentário. Ocorrendo a passagem do paleolítico para o neolítico, o Homo sapiens começava sua tentativa de domar a natureza. Do domínio da natureza passa para o domínio dos seres humanos e isso nos mostra importante alteração da coordenação ser humano-natureza-cultura.

Até o final do paleolítico, antes de serem Homo sapiens, usavam a natureza como ela lhes aparecia. Habitavam do modo como seus pequenos cérebros, até então pouco desenvolvidos, lhes permitiam. Habitavam o ambiente e produziam adequações:

“Uma caverna existe independentemente da conveniência para seus habitantes; permanece indiferente. Ao entrar em uma caverna, a humanidade se adaptou através da assimilação das várias dicas de côncavo-convexo e da escala das superfícies” (4).

Segundo o arquiteto Sou Fujimoto, ao adentrar o espaço frio e escuro da caverna, o ser humano primitivo via pedras de diferentes tamanhos e formatos, côncavos e convexos. O homem explorava a possível utilização desses formatos, hora para deitar, hora para encostar e, em outros momentos, sentar-se; deixando uma fogueira acesa para aquecê-lo e trazer luz ao local, o fogo atraia alguns animais e repelia outros. Entretanto, esse arranjo técnico-espacial era resultado de um processo instintivo e, por vezes, bastante simples e imediato, do tipo “tenho frio” — “preciso de calor”.

Apropriar-se da caverna dá ao ser que ali habitava uma possibilidade, mesmo que temporária, de construir um lugar onde depositar os objetos que prendiam sua atenção e no qual se poderia sentir seguro das imprevisíveis ameaças do mundo exterior. Uma pequena, mas já presente tentativa de domínio do indivíduo sobre o espaço.

O arquiteto Sou Fujimoto, ao falar sobre o uso da caverna, refere-se ao modo como os primeiros humanos se instalavam nesses locais, colocando em discussão o que entendemos como arquitetura. A arquitetura é apenas ambiente construído? Ou ocupar o espaço também é fazer arquitetura?

No modo como Fujimoto propõe seu argumento, nota-se que sua resposta seria negativa para a primeira pergunta, porque os modos como habitamos deveriam também ser pensados como objeto de estudo da arquitetura, posto que influenciam a construção da cultura e assim ressoam na produção da própria arquitetura. Por outro lado, se procurarmos na história a resposta para a segunda pergunta veremos poucos momentos em que a ocupação do espaço foi chamada ou associada à arquitetura.

Até a atualidade, nos prendemos à metade de uma ciência que, hoje, parece ter alcançado outro grau de maturidade. Um grau que, face ao mundo conectado, aponta para a possibilidade de perguntar pelo seu próprio motivo de ser, por seus modos de fazer e quais objetos de estudo que, talvez em campo ampliado, deveriam ser incluídos. Essa parte, que supõe considerar o espaço interno da arquitetura e os modos como o usamos, parece ainda estar em estágio inicial de seu desenvolvimento.

Fujimoto, um dos autores que postulam essa questão, questiona a necessidade de entender a arquitetura como uma construção em sua fisicalidade e considera ainda, dentro do campo da arquitetura, o modo de viver o espaço no cotidiano: “Poderiam as expressões da arquitetura sustentar a complexidade das vidas diárias ao invés de se conformar com as regras do funcionalismo?” (5).

Merlin Donald, dissertando sobre as ideias do famoso naturalista Charles Darwin, aponta:

“Darwin distinguiu entre ‘instintos’ estereotipados, que eram inatos, e comportamentos adquiridos ou aprendidos de caráter altamente variáveis, que envolviam o uso da experiência e, portanto, implicavam a presença da inteligência. Em sua opinião, os animais, principalmente os mamíferos, possuíam a maior parte das faculdades superiores atribuídas aos humanos. Portanto, emoções e atividades eram tão complexas e variáveis que não podiam ser atribuídos a programas inatos simples” (6).

Interessa-nos apontar a diferença entre uma ordem natural e orgânica e uma ordem programada pela hegemonia cultural que estabelece a funcionalização como um modo de vida. A diferença entre aquilo que é instintivo e o que passa por uma elaboração conceitual e é comunicado através das linguagens, é o cerne dessa pesquisa. Enquanto o instinto é resultado inato, o funcionalismo é um discurso que brota entre as fissuras de nosso tecido social e toma conta daquilo que chamamos de cultura, dando-lhe forma. A própria linguagem é uma funcionalização.

“Darwin reconheceu que os primatas e outros animais de grande porte, como os elefantes, usam ferramentas. Os macacos usam pedras para quebrar nozes de palmeira; os orangotangos usam paus como alavancas para atingir a comida sob objetos pesados ​​e como escudos contra pedras e projéteis lançados por orangotangos inimigos; os elefantes usam gravetos para afugentar as moscas; babuínos rolam pedras pelas encostas das montanhas para afastar os inimigos. As evidências de Darwin foram coletadas de maneira mais informal do que as observações cuidadosas de etologistas modernos e comportamentalistas animais, mas suas conclusões foram essencialmente parecidas” (7).

Como nos aponta Merlin Donald, outros animais têm a habilidade de usar artefatos em favor das funções que querem desempenhar, o que nos expõe o caráter processual desse evento que, no longo prazo, foi sendo agregado aos Homo sapiens, tanto nos processos de sua cultura, quanto no desenvolvimento dos corpos.

Próximo ao período em que os humanos dominam o fogo, os pensamentos passam a um nível de complexidade inédito. Para Robert K. Logan em Que é informação? essa passagem decorre do advento da linguagem, não somente a verbal, que constitui suporte conceitual e abstrato, que aparece para se juntar ao cérebro, o suporte orgânico. Isto significa que a linguagem aparece como suporte onde se solidifica a cultura, os modos de vida e os modos como pensamos. Essa complexidade não era compatível com o cérebro humano primitivo antes da alteração biológica que chamamos de encefalização. O cérebro desenvolvido pós encefalização dá suporte a grande número de coordenações permitidas pelo contato social que auxilia o desempenho do suporte orgânico.

Com isso nasce a mente, uma complexa rede interna onde se desenvolvem vontades, desejos, afetos e pela qual se diferenciam os seres humanos uns dos outros e a própria espécie. Para Logan, a mente decorre da somatória do cérebro com a linguagem. Tem-se a equação: mente = cérebro + linguagem. Os humanos podem assim, sair do aqui e agora, para planejar seu futuro. Harari concorda com a proposição de Logan em:

“O surgimento de novas formas de pensar e se comunicar, entre 70 mil anos atrás a 30 mil anos atrás, constitui a Revolução Cognitiva. O que a causou? Não sabemos ao certo. A teoria mais aceita afirma que mutações genéticas acidentais mudaram as conexões internas do cérebro dos sapiens, possibilitando que pensassem de uma maneira sem precedentes e se comunicassem usando um tipo de linguagem totalmente novo” (8).

Portanto, vimos que o nômade primitivo, que vivia à procura de comida e água para sobreviver, se tornou sedentário, passando a produzir seu próprio alimento através do plantio e da pecuária de subsistência; desenvolveu a mente que permitiu planejar o futuro, crer nas divindades, desejar comer algo que gostava ou sentir os cheiros que amava, o que também possibilitou funcionalizar os artefatos, a partir de processos mentais que poupam energia; e começar a morar em um sistema comunal. Cumpre lembrar que comunal vem do latim communalis que significa “de uso comum; público”.

Nesse ponto do processo evolutivo, vê-se um dos primeiros momentos em que aparece a figura da pessoa pública e concomitantemente do espaço público. Atribui-se funções aos espaços e cria-se padrões sociais de comportamento e escalas de valores que funcionam como diretrizes que regem determinado local. O local comum é onde as diferenças entre os seres são postas aos olhos de todos. Em sincronia, surge a noção do espaço e da vida privada. Em uma visão cartesiana, seria possível supor que o dentro aparece como polo oposto ao fora. A esse respeito, Vilém Flusser, em Comunicologia nos diz que: “Surge um espaço externo πόλις (pólis), república, e um espaço interno, οικία (oikía) res privata” (9). Portanto, res publica versus res privata. Enquanto a coisa (res) pública corresponde às necessidades expostas no desenho dos espaços, a coisa (res) privada corresponde àquilo que são as necessidades individuais dos sujeitos. Vemos, a partir do modo como se pensa o conceito de espaço, o começo do espaço construído como reflexo da cultura que, funcionalizada, tem o objetivo de poupar energia dos corpos.

Ainda em Comunicologia, Flusser diz que, ao se tornarem sedentárias, as pessoas constroem casas. Para o autor, é claro que todas as casas, como todas as mediações, têm uma dialética interna. Criamos a porta, o buraco na parede que nos permite sair do privado e entrar no público e vice-versa. A janela é outro buraco necessário para que seja possível observar o público sem muito engajamento, como uma espécie de voyeur. Com o tempo, as portas ganham fechaduras para que seja possível codificar o espaço interno. A fechadura e a porta aparecem como uma divisão entre o eu e o outro. O outro é aquilo ou aquele que difere do eu. Com isso é possível separar o discurso público, do privado que, na arquitetura, ganha popularmente o nome de “dentro e fora”; temáticas discutidas desde os tempos imemoriais, até a atualidade.

A sobrevivência interfere diretamente na característica funcional da arquitetura, porque o espaço passa a ser reflexo de necessidades primordiais à manutenção da vida. Não mais regidos pelo instinto que traria o fogo para aquecer o corpo frio, mas como a fogueira programada para não deixar que o frio chegue ao corpo. A vida nesses tempos longínquos era pautada pela tentativa de criar hábitos e se adaptar a uma natureza regida por leis próprias e pelo acaso. Com o tempo, os demais hominídeos foram sendo extintos por uma questão de adaptação (10), restando apenas o Homo sapiens sapiens (11). É possível afirmar que, nesse período, ele já estava espalhado por toda a Terra, pois os agrupamentos se dividiam e era necessário habitar novos territórios, em busca de sobrevivência.

A arquitetura acontecia junto com os agrupamentos humanos. Aqueles que habitavam as regiões mais próximas ao equador não precisavam revestir suas cabanas com peles, para assegurar suas próprias temperaturas corporais. Os que viviam mais longe do equador desenvolveram novas maneiras de conservar sua temperatura corporal, para além do uso de peles de animais nas cabanas.

“Mas então, a partir de 70 mil anos atrás, o Homo sapiens começou a fazer coisas muito especiais. Nessa época, bandos de sapiens deixaram a África pela segunda vez. Dessa vez, eles expulsaram os neandertais e todas as outras espécies humanas não só do Oriente Médio como também da face da Terra. Em um período incrivelmente curto, os sapiens chegaram à Europa e ao leste da Ásia. Há aproximadamente 45 mil anos, conseguiram atravessar o mar aberto e chegaram à Austrália — um continente até então intocado por humanos. O período de 70 mil anos atrás testemunhou a invenção de barcos, lâmpadas a óleo, arcos e flechas e agulhas (essenciais para costurar roupas quentes)” (12).

A arquitetura corre pelo mundo nas memórias e culturas, oralmente difundidas pelos antigos viajantes. Cada povo desenvolve seus próprios modos de construir e habitar, que sofrem influências do meio (temperatura, pluviosidade, velocidade dos ventos), da política de cada local, das crenças e dos deuses que aparecem para dar sentido à vida e justificar as crenças.

Cada arquitetura imprime em sua forma: crenças; facilidade, dificuldade e disponibilidade de uso dos materiais da região; demais influências do meio e intencionalidades dos sujeitos ao longo dos séculos. A arquitetura aparece como reflexo do modo como os povos vivem. Imprime, na forma, os pensamentos e a cultura de um povo e constitui uma dimensão da sua linguagem, como extensão daquilo que somos e acreditamos.

Dois polos concorrentes aparecem nos estudos historiográficos acerca do espaço da habitação, um defende que as cabanas primitivas eram baseadas em projetantes retas e medidas contadas com o máximo de precisão possível, o outro defende que as construções apareciam de maneira espontânea e se faziam disformes, segundo a vontade dos habitantes. Confrontam-se duas vertentes epistemológicas, uma da natureza do fixo, outra do fluxo. Uma lógica construída ao longo do tempo, outra, transmitida no calor de seu tempo.

Uma questão epistemológica

Coloca-se a questão: pensar que há uma cabana original é crer que a necessidade de moradia gera imediatamente a necessidade de um espaço que seja conformado para tal funcionalidade. Por outro lado, acreditar que a cabana original é apenas a ocupação de um espaço já dado, como a caverna, indica uma modificação no que se entende como arquitetura, ou seja, indica que o habitar é tão necessário e elementar como o construir. Isso desloca o que se entende como objeto de estudo dessa ciência, que por séculos tem se voltado em grande maioria ao construir e deixado o habitar como simples análise que pretende averiguar se os efeitos programados foram atingidos. É um “habitar” somente daquilo que foi previamente construído. Confrontam-se duas possibilidades epistemológicas uma ligada ao fixo, aquela que acredita que o construir é o objeto primário da arquitetura e outra ao fluxo, que inclui o habitar.

Duas vertentes: fixo e fluxo

Viollet-le-Duc, defende que as casas primitivas eram construídas com galhos, folhas e peles de animais que os primeiros humanos encontravam em seu caminho, como apresenta Joseph Rykwert, em seu livro A casa de Adão no paraíso para apontar uma relação mimética entre o modo como são construídos os ninhos das cobras e dos primeiros humanos.

Cabana Primitiva para Viollet-le-Duc
Joseph Rykwert, A casa de Adão no paraíso [Perspectiva, 2003, p. 35]

“Viollet-le-Duc compara esse refúgio tão primitivo a um ninho de cobras[…] [a casa primitiva era] produzido dos dois arbustos unidos pelo topo que dá aos primeiros homens o impulso essencial, donde se originam todos os edifícios: sua primeira construção, galhos de árvore presos ao solo com barro sob os quais eles se abrigavam da tempestade, é notoriamente uma construção inferior à maioria das habitações animais” (13).

Ao citar Violet-le-Duc, Rykwert nos mostra que o modo como se construía correspondia às necessidades que os corpos requisitavam no momento presente. Desta forma, as estruturas e suas funções estavam entregues ao fluxo de seu uso, alteravam-se quando necessário.

De um lado, temos Le-Duc e Fujimoto com a ideia de que as habitações primitivas estão, no âmbito de estruturas em fluxo, entregues ao seu próprio devir. De outro lado, vemos a ideia de Corbusier que coloca a arquitetura como um fixo, em contraposição à ideia de Le-Duc sobre a forma da cabana primitiva e, também, à ideia de Fujimoto sobre os primeiros modos de habitar. A escolha de Corbusier nessa pesquisa se funda em sua vertente funcionalista. Acredita-se que essa foi a essencial formadora do movimento moderno. Opta-se ainda por analisar sua visão porque Corbusier, com vida socialmente ativa e com muitas viagens pelo mundo, caracterizou-se como grande divulgador científico e promotor de suas próprias ideias.

“Não há homem primitivo; há meios primitivos. Potencialmente, a ideia é constante desde o começo.
Notem que essas plantas são regidas por uma matemática primária. Há medidas. Para construir bem, para bem repartir os esforços, para a solidez e a utilidade da obra, as medidas condicionam o todo. O construtor tomou como medida o que ele era mais fácil, o mais constante, o instrumento que podia perder menos: seu passo, seu pé, seu cotovelo, seu dedo.
Para construir bem e para repartir seus esforços, para a solidez e a utilidade da obra, ele tomou medidas, admitiu um módulo, regulou seu trabalho, introduziu a ordem. Porque, em torno dele, a floresta está em desordem com suas lianas, seus espinhos, seus troncos que o atrapalham e paralisam seus esforços.
Medindo, ele estabeleceu a ordem. Para medir, tomou seu passo, seu pé, seu cotovelo ou seu dedo. Impondo a ordem com seu pé ou com seu braço, criou um módulo que regula toda a obra; e esta obra está em sua escala, em sua conveniência, em seu bem-estar, em sua medida. Está na escala humana. Ele se harmoniza com ela; isso é o principal” (14).

Primeiro, a citação de Corbusier nos aponta uma ideia de que os meios são primitivos no sentido de pouco desenvolvidos, toscos ou pouco elaborados e não os seres humanos. A referência aos seres humanos empregado por Corbusier é um ato bastante antropocêntrico, justificável se considerarmos as origens de seu contexto, fundadas com base no Renascimento e, antes, nas antiguidades grega e romana. Nesse ponto de seu texto, podemos notar um claro entendimento do meio como extensão de nossas capacidades como nos aponta McLuhan (15), anos depois da proposição de Corbusier. Em outras palavras, nos períodos paleolítico e neolítico, os seres humanos não haviam desenvolvido os aparatos que os caracterizaram e os distinguiram, na Revolução Industrial do século 19. Essa mudança foi decorrência de inumeráveis acontecimentos ao longo dos séculos no devir-histórico-arquitetônico.

Esse contexto industrial é aquele em que se apoiaram as propostas de Le Corbusier e a partir do qual o arquiteto ideou sua arquitetura. Como homem de seu tempo, Corbusier criou sua arquitetura agarrada às ideias de um mundo que se racionalizava a cada dia, com a produção expandida como decorrência da grande mecânica industrial.

É possível notar uma semelhança entre o modo como Corbusier fala sobre a vida desses primeiros humanos e o modo como as máquinas das primeiras fábricas operavam. Há uma espécie de comparação entre a linha de montagem e a estrutura do discurso de Corbusier. Aqui lançamos outra hipótese: o discurso de Corbusier sugere uma possibilidade de cabana primitiva simétrica ao seu modo de ver o mundo.

O arquiteto diz: “regulou seu trabalho”, “paralisam seus esforços”, ou ainda, a modulação “que regula toda a obra”. Nessas frases notam-se lógicas lineares de causa e consequência que remetem a um mundo mecanizado que foi palco da vida e do trabalho de Corbusier. Entretanto, também aponta o corpo como um componente da arquitetura. Porém, Corbusier não está se referindo ao corpo como sujeito, em seus desejos e afetos, o arquiteto se refere a um volume do corpo como dispositivo de escala. Esse corpo como Corbusier o propõe é da natureza de seu Modulor, ele é concebido preso ao plano bidimensional do desenho, do projeto, mas incompatível com o mundo real, porque, para isso, seria necessário que o espaço real fosse simétrico à escala de valores do corpo proposto pelo Modulor. Ou seja, propriamente o corpo dos projetos de Corbusier, corpo-modular, corpo-escala só pode habitar o plano do desenho, porque é representação genérica e homogeneizante de qualquer outro corpo.

Em sua descrição sobre as habitações dos povos primitivos, Le Corbusier aponta que eram o “mais retilíneas possível”. O que nos mostra sementes genealógicas do que um dia viria a ser a base da Revolução mecânica-industrial que propunha máquinas ordenadas que visavam a maior quantidade possível de produção, apoiada em ideias de ordenação e aplicação das lógicas taylorista e fordista como aparatos técnicos que trariam uma linearidade que era, não apenas física, mas se mostrava no traço do projeto e na também conceitual escala de valores.

A funcionalidade que se vê na Revolução Industrial é um estágio avançado da ideia de função que, segundo Le Corbusier, se atribuía a cada forma. O arquiteto certamente se funda nas proposições de seus antepassados como Vitrúvio e Alberti e no uso da geometria euclidiana que, no período do renascimento, fortalece a condição ordenadora da arquitetura através do dispositivo: perspectiva. Muitos estudos destoam da ideia de Corbusier de que as formas dos objetos e dos espaços correspondem a uma função fixa.

Rybczynski, analisando a ideia de função, aponta que, no período medieval, a ideia era diferente de nossa concepção atual que expõe a inconsistência de pensar o passado com os olhos de hoje. Ou seja, se no período medieval, tais concepções já destoavam das que hoje observamos, certamente as anteriores a elas seriam, da mesma forma, diferentes das atuais. Não é possível supor que os conceitos e modos de ver o mundo não se alteram com o tempo.

“[As pessoas] pensavam de maneira diferente sobre o tópico função, principalmente quando ela se referia a seu ambiente doméstico. Para nós, a função de alguma coisa está ligada à sua utilidade (a função de uma cadeira é servir de assento, por exemplo) e distinguimos este de outros atributos, como a beleza, a idade ou o estilo; na vida medieval não se faziam tais distinções. Cada objeto tinha um significado e um lugar na vida que era tão parte de sua função como a sua utilidade imediata, e estes dois aspectos eram inseparáveis” (16).

Estudando a casa medieval, milênios após o período primitivo que estamos abordando (paleolítico e neolítico), Rybczynski aponta que os objetos tinham funções que extrapolavam o simples uso e englobavam significados ritualísticos na vida cotidiana. Cadeiras, por exemplo, dependendo de sua forma e acolchoamento foram utilizadas como modo de demonstração de poder como apontou o próprio Rybczynski (17). Parte dessa diferença de concepções se dá porque não existia, até o século 18, a ideia de conforto como a conhecemos hoje, tampouco a ideia de função como hoje a propomos.

Como já apontamos, inumeráveis estudos destoam da proposição de Corbusier e procuram entender as ideias de forma e função nas antigas habitações. Cada autor defende uma forma da cabana primitiva, que corresponde a um modo de ver o mundo, como se observa na leitura de A casa de Adão no paraíso. Aqueles que defendem uma arquitetura que nasce a partir da ocupação do espaço pelo corpo, apontam formas mais orgânicas e dadas ao devir, outros defendem que, já as primeiras cabanas, eram projetadas, primeiro mentalmente, depois, construídas, essas construções, por conseguinte, tinham características retilíneas e ordenadas.

Laugier, lança possíveis ideias de como se compunham as antigas habitações:

“O homem deseja uma moradia que o abrigue sem enterrá-lo. Alguns galhos quebrados da floresta serão o material para seu propósito. Ele escolhe os quatro mais fortes, erguendo-os perpendicularmente ao chão e formando um quadrado. Sobre esses quatro, ele apoia quatro outros, dispostos através e, acima desses, outros ainda, inclinados para ambos os lados e que se encontram num ponto no centro. Esse tipo de telhado é coberto com folhas espessas o suficiente para proteger tanto do sol como da chuva: e assim o homem se encontra alojado” (18).

O autor propõe uma cabana com pilares perpendiculares ao chão, com ângulos retos que, vistos de cima, formam um quadrado. É possível perceber que Laugier considera a experiência corporal como o estímulo que leva o ser humano ao desejo da habitação que o proteja. Nesse sentido, a afirmação se aproxima tanto com as de Le-Duc e Fujimoto, quanto com as de Corbusier. No entanto, parece que o discurso de Laugier se aproxima mais das ideias de Corbusier, por tratar de uma linearidade que, supostamente, existia nas construções do neolítico e as funcionalizava. Pode-se averiguar tal linearidade pelo frontispício do tratado de Laugier onde uma mulher se apoia sobre as ruínas de uma coluna jônica e aponta para uma cabana de madeira, vale lembrar que tal frontispício é figura alegórica da cabana primitiva proposta por Vitrúvio.

Essas teorias que, de um lado, se aproximam das afirmações de Corbusier quando tratam de questões racionalistas e funcionalistas, do outro, diferem e, desse modo, se aproximam de questões referentes ao fazer cotidiano do habitar e não à programação do espaço. Isso nos mostra diferentes ideias de funcionalização e da própria concepção de espaço: funcionalizava-se valores e usos dos objetos.

A crença nas possíveis formas que Le Corbusier propõe, no Período Moderno, sobre um templo primitivo que, segundo ele, se aproximaria da configuração de uma habitação, consistia em uma tenda central envolta por piquetes de madeira usados para fixar a cobertura ao chão e em seu entorno, um cercado feito de estacas. Não havia janelas e as portas das tendas, simples aberturas como uma espécie de portal, ficavam alinhadas à abertura do cercado.

Templo primitivo para Le Corbusier
Le Corbusier, Por uma arquitetura [Perspectiva, 2014, p. 46]

Em sua época, Corbusier não teria ideia de como seus pensamentos influenciariam gerações posteriores à dele. Com sua influência no cenário do período modernista da arquitetura e com o desenvolvimento de suas análises sobre o passado, o arquiteto desenvolve, em seus textos e desenhos, uma espécie de fabulação que cria uma crença de que é real a forma que propõe para a cabana original. Entendendo aqui fabulação como a criação de uma potencialidade, como uma realidade possível, ou ainda, real enquanto imaginação, mas fictícia enquanto realidade. O processo de projetar é permeado pela ideia fabulatória, mas parece que Corbusier tenta projetar até mesmo a história. Parece que Corbusier tenta fabulá-la.

Com o modernismo e as ideias de Corbusier para o planejamento do espaço privado e público, a arquitetura nos aparece como dispositivo, através do qual a hegemonia das ideias maquínicas e da reprodução do capital se reafirmam cotidianamente, através do modo e do lugar onde e como vivemos.

Isso mostra como a crença, ou aquilo em que se quer acreditar, é diversas vezes repetida. Os vários livros, palestras e, em geral, a vida para Le Corbusier tornam-se dispositivos que ajudam a compor e garantir a hegemonia de suas ideias e das de seu tempo e contexto. É um ato de volta ao passado, ou seja, o arquiteto cria uma imagem do passado longínquo e começa a repeti-la, induzindo o público àquela crença. O fato se evidencia quando Corbusier diz “a ideia é constante desde o começo” (19), que implicaria uma não modificação das ideias através do tempo. Certamente Corbusier bebeu de fonte Vitruviana indicando-o como uma raiz de sua característica funcional.

O arquiteto cria a possibilidade de um passado fabulado à sua maneira, funcionalista e racionalista. Se, no presente de Corbusier, a forma segue a função e a ideia é constante desde o começo, isso, por associação, nos leva a um primitivo também funcionalista e racionalista. Seriam necessárias outras fabulações de modos de vida para uma outra epistemologia? Seria a caverna um lugar que a arquitetura ainda pouco explorou como possível morada?

notas

1
HARARI, Yuval Noah. Sapiens. Uma breve história da humanidade. Porto Alegre, L&PM, 2018.

2
LOGAN, Robert. Que é informação? A propagação da organização na biosfera, na simbolosfera, na tecnosfera e na econosfera. Rio de Janeiro, Contraponto/PUC Rio, 2012.

3
Do original: “Dunbar [1990] has recently proposed that encephalization was driven not by the cognitive demands of toolmaking or spatial mapping of the environment but by growth in the size of social groups. In other words, it was not instrumental intelligence that drove brain expansion but rather social intelligence. Complex societies make great demands on memory: large numbers of relationships have to be analyzed, understood, stored and serviced regularly in order to sustain a large group organization. With certain exceptions, the more advanced primates cluster together into larger and larger social groups, culminating in the human capacity for organizing and sustaining very large groups. It could well be the case that the intellectual abilities needed to sustain large groups are identical to those that enable cultural invention. The first adaptations in the hominid line might have been driven by the demands of social grouping, and cultural invention might have been its by-product”. DONALD, Merlin. Origins of the Modern Mind. Three Stages in the Evolution of Culture & Cognition. Cambridge, Harvard University Press, 1993, p. 18. Tradução do autor.

4
Do original: “A cave exists regardless of convenience or otherwise to its inhabitants; it remains indifferent. Upon entering a cave, humanity adeptly assimilated to the landscape by interpreting the various hints of convexo-concave surfaces and scales”. FUJIMOTO, Sou. Primitive Future. 11ª edição. Tóquio, LIXIL Publishing, 2018, p. 24. Tradução do autor.

5
Do original: “Can architectural expressions uphold the intricacies of daily-lives instead of conforming to the rules of functionalism?”. Idem, ibidem, p. 49. Tradução do autor.

6
Do original: “Darwin distinguished between stereotyped ‘instincts’, which were inborn, and highly variable acquired or learned behaviors, which involved the use of experience and thus implied the presence of intelligence. In his view, animals, particularly mammals, possessed most of the higher faculties attributed to humans. Thus, their emotions and drives were so complex and variable that they could not be attributed to simple inborn programs”. DONALD, Merlin. Op. cit., p. 35. Tradução do autor.

7
Do original: “Darwin recognized that apes and other higher animals, like elephants, employ tools. Monkeys use stones to shatter palm nuts; orangutans use sticks as levers to get at food under heavy objects and as shields against stones and projectiles thrown by enemy orangs; elephants use sticks to drive away flies; baboons roll stones down mountainsides to drive away rivals. Darwin’s evidence was gathered more informally than the careful observations of modern ethologists and animal behaviorists, but his conclusions were essentially similar”. Idem, ibidem, p. 38. Tradução do autor.

8
HARARI, Yuval Noah. Op. cit.

9
FLUSSER, Vilém. Comunicologia: reflexões sobre o futuro. São Paulo, Martins Fontes, 2014, p. 77.

10
Seleção natural para Charles Darwin.

11
A saber, existem teorias envolvendo genocídio onde os Homo sapiens sapiens acabam com inteiras legiões de Homo neanderthalensis, e teorias que falam sobre a miscigenação entre as espécies como apontado em HARARI, Yuval Noah. Op. cit.

12
HARARI, Yuval Noah. Op. cit.

13
RYKWERT, Joseph. A casa de Adão no paraíso. Uma ideia da cabana primitiva na história da arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 36.

14
LE CORBUSIER. Por uma arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 2014, p. 43.

15
MCLUHAN, Marshall; MCLUHAN, Eric. Laws of media: The New Science. Toronto, University of Toronto Press, 1988.

16
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma ideia. Rio de Janeiro, Record, 1996, p. 47.

17
Idem, ibidem, p. 39.

18
RYKWERT, Joseph. Op. cit., p. 40.

19
LE CORBUSIER. Op. cit., p. 43.

sobre o autor

Luiz Fernando de Biazi Seba é arquiteto e urbanista (Unifev), mestre (COS PUC SP) e doutorando (FAU USP). Participa do grupo de pesquisa Espaço-Visualidade-Comunicação-Cultura — Espacc, da PUC SP. Estuda a coordenação corpo-arquitetura-espacialidade-temporalidade. Sua área de pesquisa é a arquitetura, seu campo ampliado e as ressonâncias de outras áreas do conhecimento.

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