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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Este artigo apresenta os resultados do projeto “A arquitetura neocolonial em Santa Catarina: do erudito ao popular — etapa Região Serrana”, contemplado pelo Prêmio Elisabete Anderle de 2020, edital de incentivo à cultura do estado de Santa Catarina.

english
This article presents the results of the project "Neocolonial architecture in Santa Catarina: from the erudite to the popular — Mountain Region stage", awarded by the Elisabete Anderle Prize of 2020, edict of incentive the state’s culture.

español
Este artículo presenta los resultados del proyecto "Arquitectura neocolonial en Santa Catarina: de lo erudito a lo popular — Etapa de la Región de la Montaña", premiado por el Premio Elisabete Anderle de 2020, un edicto de incentivo cultural del estado.


how to quote

SANTOS, Lilian Louise Fabre; MORAES, Lia Cristina; PACHECO, Tatiana Leonor; SANTOS, Bruna Elise Chaves. Identificar para proteger. Inventário da arquitetura neocolonial na Serra Catarinense. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 280.04, Vitruvius, set. 2023 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.280/8916>.

O presente artigo deriva dos resultados obtidos na experiência de pesquisa do projeto cultural “A arquitetura neocolonial em Santa Catarina: do erudito ao popular — etapa Região Serrana” (1), contemplado pelo Prêmio Elisabete Anderle de 2020, edital de incentivo à cultura do estado de Santa Catarina. Esse projeto durou doze meses e teve como objetivo principal o desenvolvimento de um material técnico que possibilitasse o aprofundamento sobre a produção da arquitetura neocolonial e seus impactos na construção da identidade da mesorregião serrana de Santa Catarina, englobando os municípios de Lages, Anita Garibaldi, Curitibanos e Bom Retiro.

Nas cidades supracitadas, constatamos a iminente desaparição das construções residenciais neocoloniais, dado seu caráter mais modesto. O problema dessa desvalorização também está relacionado com a crescente pressão imobiliária e escassez de políticas públicas de preservação do patrimônio edificado, as quais normalmente se restringem aos exemplares de arquitetura monumental e excepcional. Tanto que, na área em estudo, nenhuma edificação neocolonial está tombada ou ao menos tinha sido anteriormente inventariada. Ademais, esse tema, ainda que importante para a memória social e para a historiografia do período moderno brasileiro, continua sendo acadêmico e institucionalmente pouco estudado, já que grande parte dos estudos sobre o patrimônio do século 20 focalizam o movimento modernista brasileiro.

Dito isso, elaboramos um inventário da arquitetura neocolonial buscando contribuir para a proteção do expressivo número de exemplares que ainda conservam as memórias do século 20, em especial aquelas relativas às décadas de 1940 e 1960, período de exploração da madeira araucária, grande crescimento urbano e popularização da linguagem neocolonial na Serra Catarinense. Sendo assim, justificamos nossa pesquisa pelo seu potencial para a valorização de bens culturais imóveis modernos que apresentam valores históricos, arquitetônicos e afetivos, e que se encontram ainda preservados, mas sem nenhuma forma de proteção legal.

Nesse sentido, os objetivos específicos da pesquisa incluíram: compreender o quadro geral técnico e socioeconômico do contexto da construção da arquitetura neocolonial no Brasil e no contexto catarinense; refletir sobre os valores históricos, tecnológicos, funcionais, estéticos e afetivos do estilo; promover a disseminação de conhecimento para a academia e sociedade civil; fornecer material técnico para os órgãos de preservação do patrimônio cultural do estado e municípios; promover um inventário e mapeamento das edificações.

Para o cumprimento dos objetivos, adotamos os seguintes procedimentos metodológicos: pesquisa bibliográfica e iconográfica sobre a produção do estilo neocolonial desde a escala continental até o contexto das cidades estudadas; pesquisa documental no arquivo histórico do Museu Thiago de Castro em Lages e acervos pessoais; mapeamento de edificações através do Google Street View; levantamento de campo e fichamento para a realização de inventário de varredura com base na metodologia criada pelo projeto piloto; e por fim a divulgação do conhecimento nas redes sociais e em eventos acadêmicos.

Além disso, compreendemos que a sensibilização da comunidade através das memórias também serve como ferramentas de conscientização para a preservação do patrimônio cultural. Assim, utilizamos a comunicação social online para promover diversas ações de divulgação e educação patrimonial com a comunidade local e público especializado, possibilitando sua participação mais ativa no desenvolvimento da pesquisa e na construção de um senso de responsabilidade compartilhada acerca da proteção da nossa herança tangível e intangível. Um exemplo dessas iniciativas foi a coleta de relatos sobre a memória afetiva dos proprietários das edificações inventariadas, para valorizar não somente os aspectos técnicos e arquitetônicos reconhecidos por profissionais especializados, mas principalmente os aspectos subjetivos e as relações afetivas que as dão sentido como patrimônio cultural. Daí o nome das redes sociais que resultaram na criação do nosso coletivo: Memórias que habitamos.

A produção da arquitetura neocolonial no Brasil

O século 16 marca o início da história colonial do Brasil. No território brasileiro, os colonizadores vindos de Portugal passaram a estabelecer vilas seguindo suas próprias tradições urbanísticas, criando paisagens urbanas uniformes, com casas no alinhamento das vias ocupando todos os limites do lote e uso de técnicas construtivas primitivas. Com isso, a uniformidade de partido arquitetônico era mantida, sendo inclusa nas Cartas Régias e posturas municipais para garantir uma aparência portuguesa à colônia brasileira (2).

Esse cenário perdurou até o início do século 19, quando o Brasil foi inserido no mercado internacional mediante a abertura de portos e importação de novos materiais e equipamentos, os quais possibilitaram soluções construtivas mais eficazes que, com a construção de ferrovias, difundiram-se pelo território. Apesar disso, as cidades brasileiras continuaram a ser pensadas segundo influências estrangeiras. Partindo da premissa de que os brasileiros não possuíam tradições artísticas de qualidade, muitas edificações ecléticas foram construídas combinando elementos nobres de diferentes períodos da história da arquitetura europeia para embelezar as fachadas.

Entretanto, com o avanço da Primeira Guerra Mundial, no século 20, as importações de materiais e equipamentos foram interrompidas, dando início a um período de incertezas. Outrossim, com o extermínio da família imperial em 1917, inúmeras greves e lutas se espalharam pelo mundo, tornando a burguesia brasileira vulnerável. Resulta disso o declínio do estilo eclético como expressão de poder e o fortalecimento de discussões sobre a necessidade de uma nova identidade nacional livre da estética europeia (3).

Assim, surge o estilo neocolonial com o princípio de reviver estilos tradicionalistas. No Brasil, isto configurou uma nova arquitetura prática e versátil que resgatou elementos do estilo colonial luso-brasileiro. O cerne da fundamentação dessa nova arquitetura nacional foi a conferência realizada em São Paulo no ano de 1914, a qual contou com a participação de Ricardo Severo. Em 1916, o engenheiro publicou um texto sobre o evento reconhecendo no estilo colonial a qualidade das tradições artísticas brasileiras e incentivando o abandono do ecletismo. Severo recebeu o apoio da burguesia, a principal interessada na construção de uma nova identidade nacional. Mas foi o médico, mecenas, historiador e defensor do estilo nacional, José Mariano Filho, o responsável pela difusão das discussões para além da burguesia, consolidando a arquitetura tradicionalista no meio acadêmico e em associações, sociedades e entidades de classe ligadas à construção civil, sobretudo através de projetos para o público popular feitos entre 1930 e 1950, período de maior adesão ao modelo. Isso se explica pela divulgação através das mídias modernas, pela facilidade de compreensão linguística, praticidade, beleza e acessibilidade da casa neocolonial e pela resistência à emergente arquitetura modernista (4).

Além das guerras e revoluções, o século 20 foi marcado pelo crescimento dos centros urbanos brasileiros e de sua população de modo desproporcional à infraestrutura urbana disponível. Por conseguinte, os valores dos aluguéis em bairros centrais se elevaram, resultando na criação de medidas do poder público para favorecer a isenção de impostos e a instauração de códigos e leis para regulamentar a construção civil. Com isso, a arquitetura neocolonial se popularizou ainda mais entre a pequena burguesia, atendendo às novas regulamentações urbanas impostas, como o afastamento das edificações em relação aos limites dos lotes.

Com efeito, as casas neocoloniais expressam a modernidade e os novos hábitos urbanos da época, pois são mais compactas, higiênicas e econômicas. Abandonando os grandes corredores dos estilos precedentes, essas residências se organizam em três setores. O acesso principal da casa se situa na varanda, ligando o jardim ao setor social (salas de estar e jantar). O setor íntimo (dormitórios) é disposto na frente ou nas laterais, privilegiando a iluminação e a ventilação natural, ao contrário do que acontecia nas alcovas. O neocolonial rompe também com a separação entre o volume principal da edificação e as áreas molhadas (cozinha, banheiro e área de serviço), incorporando-as ao interior da casa, geralmente nos fundos e próximas entre si para reduzir os gastos com encanamentos (5).

Casa térrea
Elaboração das autoras, 2022

Esse esquema se repete nas residências de dois pavimentos, com a diferença de que no pavimento superior estão situados os dormitórios e outra varanda. Além disso, nas casas mais abastadas pode existir um “quarto de banho” junto à área íntima.

Casa de dois pavimentos
Elaboração das autoras, 2022

Quanto à composição volumétrica, as tipologias mais comuns da arquitetura neocolonial são as casas de três volumes, formadas por frontão, varanda e corpo principal, ou as casas de dois volumes, formadas pelo corpo principal e um segundo volume saliente que resulta da fusão entre a empena frontal e a varanda. Aliás, as varandas ou alpendres são importantes elementos identificadores do estilo neocolonial, aparecendo com diferentes tipos de arco, composições geométricas e colunas (6).

Outros elementos capazes de identificar o estilo neocolonial são os telhados em várias águas com beirais, telhas cerâmicas e chaminés, seguindo o exemplo da arquitetura colonial. Essa alusão ao estilo luso-brasileiro aparece também na aplicação de reboco com texturas irregulares remetendo à rusticidade das casas de taipa-de-pilão e pau-a-pique. Além disso, os frontões podem apresentar nichos cegos ou vazados de vários formatos, com ou sem gradis, remetendo aos óculos das igrejas coloniais. Os gradis também podem ser encontrados em portões e aberturas, com as esquadrias em madeira, e às vezes com veneziana (7).

Tais características estéticas e funcionais também aparecem na arquitetura neocolonial da Serra Catarinense, mesmo que condicionadas a distintas questões culturais, climáticas, políticas, tecnológicas, sociais e econômicas.

A produção da arquitetura neocolonial na Serra Catarinense

Durante os dois primeiros séculos da história colonial da Serra Catarinense (séculos 18 e 19), a principal atividade econômica foi o transporte de gado e mulas entre Viamão RS, onde os animais eram criados, e Sorocaba SP, onde eram vendidos. Assim, conformou-se a estrada Viamão/Sorocaba ou o Caminho das Tropas, cujo trajeto passava pela Coxilha Rica, no interior de Lages. Posteriormente, novas estradas foram abertas visando ampliar os negócios dos tropeiros e consolidar o poder da Coroa Portuguesa em áreas até então devolutas, o que de fato aconteceu com a fundação de novos povoados.

“Resultando de uma ação oficial, a exemplo de Lages, que teve traçado urbano planejado, ou decorrentes da evolução de ‘pousos’ de tropeiros, mesmo caso de Campos Novos e de Curitibanos, esses núcleos surgiram e se desenvolveram às margens dos caminhos, cercados por fazendas de criação de gado, estando, portanto, diretamente relacionados ao ciclo da pecuária, à atividade tropeira e ao tipo de sociedade que produziram” (8).

O primeiro núcleo foi Lages, cidade que até hoje exerce forte influência socioeconômica, política e cultural sobre a região. Fundada em 1766, foi elevada à categoria de Vila em 1771. Já em 1820 teve seu território e jurisdição transferidos para a Capitania de Santa Catarina e, em 1860, foi elevada à categoria de cidade. Durante esse período, Lages contou com o crescimento da atividade pecuária e da sua população, resultando na criação de distritos como Anita Garibaldi, Curitibanos e Bom Retiro. Com exceção de Curitibanos, emancipada em 1869, os demais povoados foram elevados à categoria de município somente no século 20: Bom Retiro em 1923 e Anita Garibaldi em 1961.

Mapa dos principais caminhos de tropas. Adaptado pelas autoras a partir de A casa do Planalto Catarinense: arquitetura rural e urbana nos campos de Lages, séculos 18 e 19, p. 63 [Fazer Gestão Cultural, 2020]

De fato, o período de emancipação das cidades da Serra Catarinense coincidiu com o fim do tropeirismo e o despontar do ciclo econômico da madeira no século 20. Com a instalação das madeireiras, novas atividades surgiram nos centros urbanos, tornando-os polos atrativos para grupos em busca de trabalho. Assim, o tímido crescimento populacional e urbano dos séculos anteriores tomou proporções significativas.

Nesse ínterim, a elite difundiu um discurso de urbanização que buscou romper com a imagem rural da região e substituí-la por uma imagem de modernidade. Na prática, investiu-se em remodelações urbanas e na construção de casas e edifícios públicos com novos estilos arquitetônicos. Além do Art Déco, muito adotado em cinemas e teatros, foram edificadas várias residências em estilo neocolonial, principalmente entre as 1940 e 1950, no auge da exploração da madeira araucária. Cada vez mais, a arquitetura neocolonial encontrou espaço para se consolidar, adequando-se às políticas públicas moldadas pelo discurso higienista da época (9). Tais aspectos podem ser melhor compreendidos através dos resultados da pesquisa sintetizados a seguir.

Inventário da arquitetura neocolonial na Serra Catarinense

Considerando que o projeto aconteceu durante a pandemia do Covid-19, nós efetuamos um levantamento de varredura e mapeamento prévio das edificações neocoloniais das cidades estudadas através do Google Street View e do QGis, criando roteiros de visitas a campo. Estas aconteceram respeitando o afastamento pessoal, o que dificultou o acesso ao interior das casas, mas não impediu a coleta das informações básicas para as fichas de inventário (10) como o estado de conservação, a relação da arquitetura com o lote e os espaços abertos, a composição volumétrica e os elementos estilísticos adotados nas fachadas.

Exemplo de aplicação da ficha de inventário elaborado pela equipe do projeto piloto
Elaboração das autoras, 2021

A arquitetura neocolonial em Lages

Mapeamento das edificações neocoloniais em Lages
Elaboração das autoras, 2021

Em Lages, embora a maior concentração de edificações neocoloniais esteja no Centro, nenhuma se situa dentro do núcleo fundacional, onde os lotes são estreitos e as construções não têm recuos. É no perímetro desse núcleo que os exemplares do estilo mais aparecem, demonstrando que o crescimento urbano foi radiocêntrico. Sendo assim, o segundo bairro com a maior presença do estilo é o bairro da Brusque, criado por pessoas anteriormente escravizadas. A maioria desses exemplares é uma simplificação estilística, com volumetrias em corpo único, varanda frontal e poucos elementos decorativos. Isso sinaliza que um dos primeiros eixos de expansão da cidade ocorreu no sentido sudoeste partindo do Centro.

Outros bairros nos arredores do núcleo fundacional foram o Guadalupe e o Copacabana, criados com a extensão do bairro Morro do Posto na década de 1960, período em que o tráfego de veículos entre Lages, o Oeste do estado e o Rio Grande do Sul foi desviado do perímetro urbano, valorizando os terrenos e impulsionando a formação de novos bairros (11). Hoje, esses bairros abrigam, principalmente, edificações residenciais que pertenceram a famílias operárias, incluindo exemplares do estilo neocolonial.

Além do Centro, em 1948 consolidou-se uma segunda centralidade, o bairro Coral, criando o eixo de expansão leste partindo do Centro, ao longo do qual foram construídas as casas neocoloniais mais suntuosas. Isso revela o início da configuração socioespacial lageana, onde as classes médias e altas estão no eixo Centro-Coral.

A arquitetura neocolonial em Anita Garibaldi

Mapeamento das edificações neocoloniais em Anita Garibaldi
Elaboração das autoras, 2021

Em contrapartida, Anita Garibaldi possui apenas uma casa neocolonial, a qual foi construída pela família Granzotto, em 1950, ao lado da praça Paulino Granzotto, nome que homenageia o patriarca dessa família de grande destaque econômico e político na cidade. Situado na área central, onde os Granzotto tiveram uma madeireira e o principal ponto comercial do município, o primeiro e único exemplar neocolonial de Anita Garibaldi demonstra que a busca pela modernidade esteve presente também em cidades menores. Em uma paisagem urbana onde predominaram as edificações de madeira, a casa neocolonial feita em alvenaria foi um importante marco do período moderno no município, representando o forte poder aquisitivo de uma família que conseguiu buscar em grandes centros materiais que normalmente não chegariam até Anita Garibaldi.

Curitibanos

Mapeamento das edificações neocoloniais em Curitibanos
Elaboração das autoras, 2021

No século 20, após um período de estagnação em seu desenvolvimento, Curitibanos se recuperou e melhorou as suas condições econômicas e de acesso, principalmente entre 1930 e 1960, com o fortalecimento do ciclo econômico da madeira. Nessa época, surgiram indústrias metalúrgicas, de papelão, celulose, esquadrias, móveis e, principalmente, as serrarias. Várias estradas foram construídas, como a rodovia estadual, a rodovia municipal e a BR-116, possibilitando o transporte de produtos para os grandes centros urbanos do país (12).

Nesse contexto, surgem os primeiros registros da arquitetura neocolonial em Curitibanos, incluindo exemplares residenciais e institucionais como o Hospital Frei Rogério (hoje Asilo Frei Rogério) e a Casa Santo Antônio, o primeiro descaracterizado e o último demolido. A grande maioria dessas edificações foi erguida no núcleo fundacional da cidade ou ao longo dos caminhos oriundos do ciclo do tropeirismo. Hoje, é possível encontrar catorze exemplares do estilo, todos bem distintos entre si e com grande diversidade de elementos, tornando a arquitetura neocolonial de Curitibanos bastante singular. Quanto mais afastadas do Centro, mais as edificações deixam de lado os detalhes decorativos imponentes para dar lugar a uma arquitetura simples e sem muitos adornos, revelando que as classes médias e altas se encontram nas áreas mais centrais.

Bom Retiro

Bom Retiro origina-se no século 18 com a abertura da Estrada Geral incumbida ao Alferes Antônio Marques de Arzão em 1787 com o objetivo de ligar Florianópolis a Lages. Apesar de ter sido um importante ponto de parada e trocas comerciais para os tropeiros no século 19, o seu povoamento foi lento, aspecto reforçado pelo abandono da referida estrada, a qual só foi reaberta e reformulada muitos anos depois, configurando a atual BR-282.

Do mesmo modo que as outras cidades da mesorregião serrana, foi somente no século 20 que Bom Retiro atingiu o auge de seu desenvolvimento com a exploração da madeira. Na década de 1950, muitas edificações neocoloniais foram construídas adjacentes à antiga Estrada Geral. Hoje, há oito exemplares neocoloniais que, em sua maioria, situam-se afastados do Centro, em uma área de menor densidade, compondo a paisagem rural do entorno com seus grandes jardins e quintais vegetados.

Mapeamento das edificações neocoloniais em Bom Retiro
Elaboração das autoras, 2021

Análise tipológica

As duas tipologias principais do neocolonial são as edificações institucionais e as edificações residenciais. As últimas subdividem-se em residências de classes abastadas e médias ou residências populares. Cada subgrupo apresenta outras categorias baseadas na quantidade de pavimentos e volumetria, conforme abordado a seguir.

Na mesorregião serrana não há um número significativo de edificações neocoloniais institucionais, pois o estilo prioritariamente escolhido para representar o poder do Estado no século 20 foi o Art Déco, sendo possível constatar apenas três exemplos neocoloniais dessa tipologia: o portal da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina —Epagri, o Hospital Infantil Seara do Bem de Lages e o já desativado Hospital Frei Rogério de Curitibanos.

Já no contexto residencial, uma notável quantidade de edificações foi inventariada: setenta em Lages, seis em Bom Retiro, seis em Curitibanos e um em Anita Garibaldi. Esses dados comprovam que a arquitetura neocolonial na mesorregião serrana se manifesta, predominantemente, através da tipologia residencial. As diferenças basilares entre os exemplares se referem à composição volumétrica e à organização interna.

Nas cidades pesquisadas, as residências das classes abastadas e médias são representadas por exemplares de dois pavimentos situados nos bairros centrais, não descartando a existência de casas térreas. Por outro lado, todas as residências populares são térreas, diferenciando-se através do corpo principal e do número de volumes projetados.

As casas de dois pavimentos das classes abastadas e médias subdividem-se em duas tipologias: volumes complexos e partição bilateral. A primeira corresponde às edificações com movimentos volumétricos nas fachadas, varandas com vergas em arcos simples ou múltiplos e telhados em vários panos. Tal tipologia é atualmente encontrada apenas em Curitibanos. A segunda, por sua vez, está presente também em Lages, apresentando dois volumes que se destacam na fachada através de um eixo vertical.

Residências de classes abastadas e médias de dois pavimentos: volumes complexos. Localização: rua Santa Catarina, Curitibanos [Acervo das autoras, 2021]

Residências de classes abastadas e médias de dois pavimentos: partição bilateral. Localização: rua Aristiliano Ramos, Lages [Acervo das autoras, 2021]

Já as casas térreas das classes abastadas e médias são encontradas em Bom Retiro, Curitibanos e Lages, sendo categorizadas em três tipos. Enquanto os exemplares com torreões e frontões enquadram-se na tipologia da complexidade de volumes, aqueles formados por volumes compostos configuram o tipo bangalô com vários panos de telhado. As edificações que não apresentam essas características e que simultaneamente não se enquadram em residências de classes populares compõem a tipologia “outros volumes”. Todos esses exemplos dispõem de varandas que marcam o acesso principal.

Residências de classes abastadas e médias térreas: complexidade de volumes. Localização: rua Henrique Almeida, Curitibanos [Acervo das autoras, 2021]

Residências de classes abastadas e médias térreas: bangalôs. Localização: Estrada Geral, Bom Retiro [Acervo das autoras, 2021]

Residências de classes abastadas e médias térreas: outros volumes. Localização: avenida Marechal Floriano, Lages [Acervo das autoras, 2021]

As residências térreas populares são identificadas pela sua simplificação, conformando a maior porcentagem tipológica na mesorregião serrana. Estas são classificadas em construções de três volumes, dois volumes ou volume único, de modo que cada uma possui várias ramificações. Em geral, as casas de três volumes distinguem-se mediante a presença de um corpo principal, um volume frontal projetado e uma varanda frontal ou em “L” também projetada coberta por telhado ou laje plana. Em contrapartida, as residências de dois volumes comumente possuem um corpo principal com um volume frontal projetado, o qual pode ser exclusivo para a varanda projetada ou, em outros casos, unificado a esta. Do mesmo modo, tal tipologia pode contar com uma varanda embutida no corpo principal e outro volume frontal projetado. Por fim, todas as casas de volume único são formadas apenas pelo corpo principal com varandas laterais ou frontais embutidas. Este volume é coroado por um telhado único que pode ser utilizado junto ao acréscimo de outra água na fachada para demarcar as varandas.

Residências populares térreas: três volumes. Corpo principal, volume projetado e varanda frontal com laje plana. Localização: rua Otacilio Granzotto, Anita Garibaldi [Acervo das autoras, 2021]

Residências populares térreas: três volumes. Corpo principal, volume projetado e varanda em “L” com telhado. Localização: Estrada Geral, Bom Retiro [Acervo das autoras, 2021]

Residências populares térreas: dois volumes. Corpo principal e varanda projetada. Localização: rua Frei Gabriel, Lajes [Acervo das autoras, 2021]

Residências populares térreas: dois volumes. Corpo principal e varanda unificada ao volume projetado. Localização: rua Honorato Ramos, Lajes [Acervo das autoras, 2021]

Residências populares térreas: dois volumes. Corpo principal, varanda embutida e volume projetado. Localização: rua General Nepomuceno, Lajes [Acervo das autoras, 2021]

No que diz respeito à organização interna, as casas neocoloniais são normalmente divididas em três áreas: social, íntima e de serviço ou áreas molhadas. Em todos os exemplares, o acesso se dá pela varanda que liga o jardim ao setor social. O setor íntimo é disposto na frente ou nas laterais da casa, com janelas para iluminação e ventilação natural. Já as áreas molhadas ficam normalmente nos fundos.

Ainda que esse esquema de organização se repita em todas as tipologias, a presença de um quarto de banho junto à área íntima nas casas térreas é capaz de diferenciar as residências populares e as residências das classes abastadas e médias. Tal ambiente também pode aparecer nas casas de dois pavimentos, as quais, normalmente, apresentam dormitórios e uma segunda varanda no pavimento superior, reforçando a distinção entre classes já introduzida com a volumetria.

Análise de linguagem

A arquitetura neocolonial sofreu diversas influências, resultado da busca da identidade nacional através das raízes do período colonial. Nesse processo de resgate do passado, houve uma seleção de características capazes de atender às pretensões historicistas do estilo tradicionalista. Entretanto, o movimento também incorporou elementos estrangeiros, criando diferentes linguagens dentro do estilo neocolonial. Nas cidades pesquisadas, as linguagens encontradas foram: Luso-Brasileiro, Mission Style, Normando, Popularizado e Popularizado Simplificado.

A primeira linguagem é a Luso-Brasileira, identificada por: telhados com beiral e telha capa e canal, varandas, casas desprendidas dos lotes, garagens separadas do volume da casa remetendo às antigas cocheiras, reboco rústico e distribuição de pedras na fachada. A linguagem também incorporou a azulejaria herdada do barroco e do rococó, bem como os óculos e colunas que remetem à arquitetura religiosa.

Em seguida, introduzimos a linguagem Mission Style ou “missões”, uma das primeiras demonstrações do neocolonial no mundo. Sua origem remonta às décadas de 1870 (Colômbia) e 1880 (Cuba, Estados Unidos e México), quando foram construídos pavilhões e sedes universitárias inspirados na cultura hispânica com o objetivo de representar as identidades nacionais. Essa variação se popularizou através de revistas e outras mídias modernas, especialmente pelo cinema. Desse modo, a linguagem missões foi incorporada até mesmo em casas mais modestas e populares, sendo possível encontrar os seguintes elementos: torreões circulares, varandas arqueadas ou com aberturas em “tríforas”, colunas salomônicas, chanfradas ou com outros ornamentos, arcos com pedras incrustadas, paredes texturizadas, pequenos nichos cegos, azulejaria, telhas capa-e-canal, beirais largos, pérgulas no jardim, entre outros elementos assimilados e reinterpretados pela arquitetura neocolonial brasileira.

Casa que representa o mission style em Curitibanos, aprox. 1960 [Acervo das autoras, 2021]

Casa que representa o mission style em Curitibanos, aprox. 1960 [Acervo das autoras, 2021]

Outra linguagem identificada na mesorregião serrana foi a Normanda, inspirada na arquitetura românica e romanesca desenvolvida na Normandia e na Inglaterra por volta dos séculos 11 e 12. Esta também foi popularizada no Brasil através das revistas e demais mídias. Porém, ao contrário de outras linguagens, o Normando não reflete as vertentes abrasileiradas, e sim uma arquitetura mais erudita e europeizada marcada por telhados muito inclinados, madeira aparente como falsa estrutura, tijolos aparentes, porta principal em arco e às vezes frisos imitando pedras.

Casa que representa a linguagem normanda em Lages [Acervo das autoras, 2021]

Casa que representa a linguagem normanda em Lages [Acervo das autoras, 2021]

Ainda que as linguagens neocoloniais da mesorregião serrana sejam variadas e heterogêneas, raros são os exemplares com uma linguagem mais pura, elaborada e erudita, pois o neocolonial na área não estava tão relacionado com o discurso da brasilidade, mas com uma intenção de modernidade e melhores padrões de higiene e conforto. Por esse motivo, as linguagens mais recorrentes nos municípios pesquisados foi a Popularizada e a Popularizada simplificada.

Os elementos que identificam a linguagem Popularizada são: a divisão em frontão, varanda e corpo da casa, os afastamentos frontal e laterais, o jardim frontal, o quintal, o muro em pedra com ou sem serralheria decorativa, a varanda frontal ou lateral, o telhado em várias águas com telhas cerâmicas e beirais, o frontão simples, o óculo aberto ou fechado, e, por fim, a varanda frontal com arco ou com pequena laje.

Casa que representa a linguagem popularizada em Lages [Acervo das autoras, 2021]

Casa que representa a linguagem popularizada em Lages [Acervo das autoras, 2021]

A linguagem Popularizada Simplificada, por sua vez, caracteriza-se pela redução dos elementos compositivos ao mínimo, mas mantendo-os identificáveis: varanda frontal com escadaria de acesso, telhado com telhas cerâmicas e beirais e utilização de materiais como pedras aparentes.

Casa que representa a linguagem popularizada simplificada em Lages [Acervo das autoras, 2021]

Casa que representa a linguagem popularizada simplificada em Lages [Acervo das autoras, 2021]

Perspectivas e desafios

Ainda que preserve testemunhos de diversos períodos históricos e linguagens arquitetônicas, a Mesorregião Planalto Serrano conta com um número inexpressivo de bens protegidos nas três instâncias. Se, linguagens com valor usualmente reconhecido estão sem proteção, muito pior é o caso das edificações neocoloniais.

Em Lages, esse desafio é visível principalmente na área central, visto que o Plano Diretor vigente não delimita nenhuma zona de proteção do Centro Histórico, tampouco limita o número de pavimentos das novas construções. Por essa razão, diversas edificações neocoloniais vêm sendo demolidas ou descaracterizadas, principalmente aquelas que são adaptadas para o uso comercial.

Edificações neocoloniais demolidas [Acervo das autoras, 2021]

Por outro lado, na maioria dos casos em que o uso residencial é mantido, as edificações permanecem em bom estado de conservação e preservação. Os próprios moradores, ao serem questionados sobre a experiência do morar, compartilham relatos positivos, especialmente quando as casas são herdadas da família, já que permeiam no discurso as questões afetivas além das funcionais.

Por essa razão, enquanto os exemplares mais alterados de Lages estão no Centro, onde a maioria destes é alugado, os exemplares mais preservados se encontram nos demais bairros, onde são normalmente uma herança de família. Em Curitibanos encontramos os exemplares mais alterados, muitos também em função das mudanças de uso de residencial para comercial. No município de Anita Garibaldi, o único exemplar existente está bem preservado, ainda que não seja habitado, pois um vizinho faz a manutenção com muito orgulho por se tratar da edificação que simboliza o moderno no local. Em Bom Retiro, as edificações são bem cuidadas por serem herança de uma mesma família, mas algumas casas foram vendidas para empresas de leite para servir de moradia aos funcionários.

Ante o exposto, alteramos nossa abordagem inicial para valorizar os valores afetivos, além dos históricos e arquitetônicos. Coletamos, então, as memórias dos proprietários através de perguntas abertas e, com sua autorização verbal, transformamos seus relatos em textos curtos e coloquiais para as redes sociais.

Exemplo de publicação das redes sociais [Acervo das autoras, 2021]

Exemplo de publicação das redes sociais [Acervo das autoras, 2021]

Isso demonstra a pertinência de incluir nas pesquisas de arquitetura não só os aspectos técnicos, mas especialmente as memórias e sentimentos que constroem a nossa identidade individual e coletiva.

notas

1
Sua elaboração é uma continuidade do projeto piloto realizado no distrito sede da capital de Santa Catarina — Florianópolis, intitulado “A arquitetura neocolonial em Santa Catarina: do erudito ao popular”, contemplado pelo Prêmio Elisabete Anderle de 2019 e coordenado por Vanessa Pereira, Anna Pimentel e Luiz Eduardo Fontoura Teixeira. Ação amparada não somente na consultoria da equipe do inventário piloto, mas também na licença para o uso do material produzido e adaptação dos procedimentos metodológicos à realidade local.

2
REIS FILHO, Nestor Goulart. Quadro da arquitetura no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 1970.

3
Idem, ibidem.

4
BRANDÃO, Ramón. Arquitetura neocolonial: arquitetura da felicidade. Juiz de Fora, Funalfa, 2013.

5
Idem, ibidem.

6
Idem, ibidem.

7
Idem, ibidem.

8
SANTOS, Fabiano Teixeira dos. A casa do Planalto Catarinense: arquitetura rural e urbana nos campos de Lages, séculos 18 e 19. 2ª edição. Lages, Fazer Gestão Cultural, 2020.

9
PEIXER, Zilma Isabel. A cidade e seus tempos: o processo de constituição do espaço urbano em Lages. Lages, Uniplac, 2002.

10
O modelo utilizado foi feito pela equipe do projeto piloto Arquitetura neocolonial em Santa Catarina: do erudito ao popular, que aplicou as mesmas fichas na cidade de Florianópolis.

11
Os bairros de Lages: Morro do Posto. Jornal Correio Lageano, Lages, 14 dez. 1997, p. 1–4.

12
LEMOS, Zélia de Andrade. Curitibanos na história do Contestado. 2ª edição. Curitibanos, Impressora Frei Rogério, 1977.

sobre as autoras

Lilian Louise Fabre Santos é doutoranda (Pós-Arq UFSC), mestre em Preservação do Patrimônio Cultural (Iphan, 2014) e graduada em Arquitetura e Urbanismo (UFSC, 2012). Faz parte do coletivo Memórias que Habitamos, que desenvolve projetos culturais relacionados com a preservação do patrimônio cultural da região serrana de Santa Catarina.

Lia Cristina Moraes é arquiteta e urbanista formada com mérito acadêmico (Udesc, 2022). Durante a graduação, participou de ações de pesquisa no Laboratório de Arquitetura Teoria, Memórias e Histórias — Artemis e foi contemplada com bolsa de mobilidade estudantil internacional da Udesc (Prome) para estudar na Itália (Unife, 2019). Atualmente trabalha no Coletivo Memórias que Habitamos.

Tatiana Leonor Pacheco é graduanda em Arquitetura e Urbanismo da Udesc. Fez parte do Laboratório de Preservação do Patrimônio — Labppat, desenvolvendo iniciativas de educação patrimonial. Foi bolsista de monitoria em Técnicas Retrospectivas: Teoria e Projetos e Projeto de Restauração do Patrimônio Arquitetônico e desde 2021 integra o coletivo Memórias que Habitamos.

Bruna Elise Chaves Santos é arquiteta e urbanista (Uniplac, 2021) e tecnóloga em Design de Interiores (Uniplac, 2013). Foi vice-presidente do CAAU Uniplac (2020–2021). Desde 2021 integra o coletivo Memórias que Habitamos.

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