As pesquisas de Murillo Marx no campo da história da urbanização no Brasil foram responsáveis por duas descobertas: a importância da Igreja Católica na formação das cidades brasileiras até o século 19 e dimensão fundiária do processo de urbanização. Professor do curso de arquitetura e urbanismo da Universidade de São Paulo desde 1972, Murillo conseguiu, a partir da década de 1980, publicar uma série de trabalhos excepcionais que se tornaram marcos da literatura acadêmica sobre esses temas. Iniciou com o ensaio “Cidade brasileira”, publicado em 1980, ainda bastante abrangente e focado nos significados da estrutura urbana típica das cidades no Brasil. Na década de 1990, publicou dois ensaios, sendo o primeiro focado nas transformações e na importância da dimensão fundiária para as cidades brasileiras e o segundo no léxico que envolveu esse processo de transformação. Em 2004, publicou sua tese de livre docência Nosso chão: do sagrado ao profano, texto dedicado às transformações de conceito, uso, âmbito e trato do espaço público urbano no Brasil (1).
As escolhas do autor, seus temas de pesquisa e principais conclusões são traços de um percurso intelectual particular. Murillo deu menos atenção às polêmicas em torno do suposto desleixo português, tema relevante no período em que escrevia, e tratou disso apenas de forma secundária em seus trabalhos. Como investigador, foi um ensaísta dos temas que considerava ausentes na literatura. De sua escrita, depreende-se o ímpeto de inaugurar o problema de pesquisa e a vontade de informar ao leitor que algo importante não vem sendo tratado. Assim inicia, por exemplo, o livro Cidade no Brasil, terra de quem:
“Permaneceu esquecido, ou bastante desconsiderado, o fato de que entre nós, até um século atrás, a Igreja esteve ligada ao Estado. Em consequência, os reflexos dessa realidade institucional não têm sido devidamente relacionados com a organização inicial, com a expansão ao longo de mais de quatrocentos anos e com a consolidação de nossa rede de cidades” (2).
Essa postura, aliada à preferência por um formato ensaístico e com estilo barroco, de períodos longos, fez de Murillo um autor que aparenta estar sempre abrindo o problema de pesquisa, lançando novas questões mais do que oferecendo respostas. Seus textos são relativamente curtos e seguem estruturas próprias de organização. É como se buscassem realizar uma reapresentação contínua e cíclica das principais questões, conclusões e problemas de pesquisa dentro de uma estrutura narrativa definida pelo autor, levando a um nível de repetição que serve para reforçar aquilo que parece ser essencial para a argumentação.
Nos livros publicados a partir de 1991, Murillo entrelaça suas duas descobertas e foca ora mais em uma, como nos ensaios dos anos 1990, ora em outra, caso da sua tese de livre-docência. Buscarei aqui explorar os significados e desdobramentos da descoberta do autor sobre a dimensão fundiária da história da urbanização, tendo em mente uma das partes centrais dessa dimensão — a formação e dissolução do patrimônio fundiário municipal — com vistas às diferentes formas e significados que apresentou ao longo do tempo. Falar de um “pioneirismo” (3) de Murillo sobre esse tema não se trata de ignorar que a questão já era mencionada e que, especialmente para o âmbito rural, já existiam trabalhos substanciais sobre a terra no Brasil, a exemplo dos textos seminais de Ruy Cirne Lima (4) e José de Souza Martins (5). Em relação ao espaço urbano, o trabalho de Francisco de Paula Dias de Andrade (6), bastante citado por Murillo, já evidenciava a importância do patrimônio fundiário municipal para as ordenações portuguesas e, de modo geral, para o costume português de criação de vilas e cidades. Também em Nestor Goulart Reis Filho (7) já estão presentes elementos e descrições sobre a dimensão fundiária da urbanização colonial. Ainda assim, a descoberta foi, ao meu ver, a da especificidade da história fundiária urbana em relação àquela das sesmarias e do latifúndio monocultor. Com ela, o patrimônio fundiário municipal tomou um lugar próprio, que pode ser desdobrado nos trabalhos de outros pesquisadores importantes, alguns inclusive orientados pelo próprio Murillo, constituindo hoje algo como um subcampo da história da urbanização, dedicado a compreender as facetas da propriedade imobiliária urbana no Brasil.
As palavras e os significados do chão público
O patrimônio fundiário municipal nas cidades do período colonial tinha significados sensivelmente diferentes dos atuais. O público, visto hoje em grande medida como propriedade privada do Estado, tinha um sentido mais amplo: significava tanto aquilo que era de propriedade e utilização da Câmara, quanto as terras que deveriam servir de uso comum e aquelas a serem concedidas para o benefício dos moradores. Existia, nesse sentido, uma ambiguidade entre o público como Estatal e o público como propriedade comum ou coletiva sobre a terra.
As vilas e cidades coloniais em muitos casos foram instituídas sobre arraiais já dotados de paróquia, ou seja, já contemplados com um patrimônio eclesiástico que cumpria funções características do patrimônio público: servia como logradouro, para fruição e uso comum, e poderia ser concedido aos fregueses. Quando as posses não se estabeleciam pelo simples acordo verbal ou na mais absoluta irregularidade, a formalização jurídica das concessões se dava através de uma cadeia de aforamentos e subaforamentos, contratos geralmente perpétuos, condicionados e submetidos as taxas de foro e laudêmio.
Com a ereção da vila, usualmente posterior à criação de uma freguesia, instituía-se uma câmara, formada por um conselho eleito entre os vizinhos, sobre a qual dizia respeito um termo, território administrativo, e um patrimônio fundiário. Patrimônio da câmara, bens do conselho, sesmaria do conselho, rossio ou logradouro público: tais eram os termos de que se lançava mão para dizer ora a mesma coisa, ora coisas diferentes. Conforme consta nas Ordenações Filipinas, cabia aos vereadores fazer bem aproveitados esses bens e fiscalizar se parte das terras não andava amealhada, recorrendo aos juízes, locais ou de fora, para retomá-las para ao Patrimônio da Câmara. Essa tradição medieval, o rossio, possuía em geral meia légua quadrada (8), área de pouco mais de mil hectares, e servia para três funções principais: distribuição aos moradores, campos de uso comum ou logradouros públicos, e incremento das rendas municipais (9).
A distribuição aos moradores era feita através de dadas ou datas de terra, na forma de aforamentos gratuitos ou onerosos. As datas seguiam forma parecida com o sistema de sesmarias, podendo exigir foro e tendo a utilização como condição, apesar de serem bem menores e concedidas pelos agentes locais (10). Além disso, se diferenciavam por serem parcelas cujo valor estava no tamanho da testada, pouco importando a profundidade do terreno. Também, segundo Maurício de Almeida Abreu (11), ao contrário das sesmarias, as datas não estavam sujeitas ao dízimo. Como tratado, a instituição desse patrimônio poderia ocorrer sobre áreas já ocupadas e já aforadas a partir de um patrimônio eclesiástico, o que demandava uma regularização das posses.
Os campos de uso comum ou logradouros públicos representavam propriedades diferentes e não necessariamente vinculadas ao patrimônio fundiário municipal. Relacionavam-se ao costume uso comum ou coletivo do espaço característico também de outras culturas, além da portuguesa, e com origens que remontam ao Império Romano (12). A rua e as praças, exemplos típicos de espaço comum e logradouro público, não pressupõe a existência de uma propriedade ou tutela de algum poder local. Da mesma forma, os campos de uso comum, terras utilizadas para complementação do trabalho na agricultura, principalmente para a pastagem e coleta de lenha ou frutos, podiam se constituir sem que houvesse a existência de tutela ou de propriedade pertencente ao Estado. Nas vilas e cidades, a instituição do rossio tinha como premissa que parte das terras poderia ser utilizada pelos moradores como campos comuns. Esses logradouros eram reconhecidos pela vereação e considerados como imprescindíveis para o sustento da população mais pobre. Tanto é assim que foram preservados pela Lei de Terras de 1850. Os logradouros públicos ou campos comuns, mesmo não vinculadas à meia légua quadrada doada para patrimônio do conselho, eram considerados sob a administração camarária, sendo parte do patrimônio fundiário municipal. Cabia aos vereadores preservar essas terras, garantir sua utilização, ou ainda, concedê-los diante da constatação, nem sempre verídica, de que o uso coletivo não mais se realizava.
Como última função, o incremento das rendas municipais vinha a partir dos foros e laudêmios cobrados sobre as terras concedidas. Principalmente nos três primeiros séculos da colonização, as câmaras eram instituições de pouquíssimos recursos, considerável autonomia e responsabilidades crescentes. Seus agentes, se dividiam entre funções como a de vereador, procurador, alcaide, juiz, em um número pequeno de funcionários (13). A cobrança de impostos sobre atividades econômicas não possuía tanto peso quanto teria nos séculos mais recentes, fazendo com que a receita sobre o patrimônio tivesse peso significativo para os cofres do poder local.
Além de possuir todas essas funções, carregava o patrimônio público um significado também moral, cuja essência estava no texto das Ordenações e na reforma agrária proposta pelo sistema de sesmarias à época de sua criação, em 1375 (14). O zelo exigido dos vereadores e os procedimentos descritos para a autorização das concessões indicam que esse costume em Portugal esteve ligado à um instituto moralizador, relacionado à necessidade distribuir a terra para aqueles que, de fato, a fossem utilizar para moradia, produção ou para seu próprio sustento. Apesar disso, Murillo Marx (15) enfatiza que as concessões do patrimônio fundiário municipal no Brasil eram alvos de abusos e apropriações indevidas, e se relacionavam à interesses particulares das elites regionais, sempre presentes na política local.
Processos de modernização
A partir de meados do século 19, a Coroa Portuguesa e o Império Brasileiro imprimiram mudanças na forma de administrar os núcleos urbanos. Foram intervenções que apontaram para uma política urbanizadora (16) onde a implantação de novas vilas, cidades e freguesias, e a consolidação dos núcleos existentes, eram uma forma de estabelecer controle político sobre o interior, sobre a população indígena e como política de fronteira, tomando controle de áreas estratégicas para a consolidação do território nacional. Além disso, a influência de um certo iluminismo sobre as práticas administrativas contribuiu para a modernização dos sistemas de venda e concessão, além de estabelecer limites mais claros entre o espaço público e o privado.
Nesse contexto, o sistema sesmarial foi reformado, em fins do século 18, com regras mais rígidas para a autorização das concessões, demarcação e formalização das cartas de sesmarias (17). Nas vilas e cidades, cobrava-se pela medição e demarcação do rossio, além da regularização das posses existentes. Esse foi o caso da Vila de Nossa Senhora do Desterro, cujo Patrimônio medido em 1823 só foi demarcado por conta de um alvará de 1766, que também solicitava o cadastramento e a regularização dos contratos de aforamento de todos os ocupantes. Da mesma forma, o registro de medição e demarcação do rossio da vila de São Paulo é datado da segunda metade do século 18 (18). No caso do Rio de Janeiro, o trabalho de Fridman (19) esclarece que, apesar de existirem solicitações de medição e tombamento do rossio desde o século 17, elas só foram levadas a cabo em 1745. Nesses três casos, apesar do esforço da vereação, as posses sobre o patrimônio da câmara continuaram por muito tempo irregulares, implicando em prejuízo para os cofres públicos e para o princípio de se fazer utilizar as terras do patrimônio, não podendo os contratos caírem em comisso e as terras retornarem para o controle municipal.
Além da demarcação do rossio, o esforço de limitação entre público e o privado também passou pela criação de termos de alinhamento e arrumação, realizados sobre as datas após a formalização dos contratos de aforamento. Segundo Paula Vanessa Luz de Abreu, José Julio Ferreira Lima e Luly Rodrigues da Cunha Ficher (20), o alinhamento consistia na “definição das fronteiras entre o terreno e a via, distinguindo limites público-privados”, enquanto a arrumação garantia “a espacialização das medidas atestadas nos documentos de aforamento e estabelecendo limites com terrenos confinantes”.
Procedimentos como esses tornaram-se mais comuns no decorrer do século 19, período em que os governos provinciais e imperial passaram a controlar mais diretamente as vilas e cidades, destituindo o poder local da autonomia dos primeiros séculos. Marco dessa política foi a lei das Câmaras Municipais de 1828, que as definiu como órgãos “meramente administrativos” e criou condições mais rígidas para o aforamento, venda ou troca das terras municipais. Os aforamentos, realizados muitas vezes com precários registros, deveriam passar por autorização do “Presidente da Província em Conselho” e serem acompanhados de justificativa e descrição topográfica. Medida similar já havia aparecido em alvará de 1766 (21), o qual, visando fazer “cessarem os abusos”, determinava que os requerimentos de aforamentos fossem dirigidos à Mesa do Desembargo do Paço e proibia as câmaras municipais de os expedirem.
Os procedimentos de medição e demarcação só se tornaram possíveis pelo maior acesso, ao longo do século 19, à profissionais qualificados e técnicas precisas e universais de mensuração. Até esse período, não só as técnicas eram muito demoradas e custosas, mas as próprias medidas não eram padronizadas e tinham correspondência antropomórfica, a exemplo do palmo e da braça, comumente usados na medição de terrenos urbanos (22). Com a necessidade de estabelecer com precisão os limites fundiários para justamente facilitar o mercado de terras, que se insinua mais claramente a partir da lei de 1850, passou-se a adotar o sistema métrico-decimal, já em fim dos oitocentos, e a exigir dos processos administrativos a apresentação de plantas que discriminavam não só a testada, mas todas as distâncias dos terrenos.
A modernização dos procedimentos relativos ao patrimônio fundiário municipal passou também pela criação dos cadastros, dos registros fundiários e do lote de terras, mercadoria básica do loteamento. A demanda por conhecer os proprietários das terras urbanas, com vistas à criação de cadastros imobiliários que auxiliassem a cobrança dos impostos, a execução das desapropriações, e a fiscalização dos contratos de aforamento, levou a tentativas cada vez mais elaboradas de identificar os imóveis sobre toda a cidade. Exemplo disso é o cadastro da décima urbana, analisado de forma pioneira por Raquel Glezer (23) e utilizado para pesquisas sobre o surgimento do mercado imobiliário e sobre a tessitura urbana (24). A instituição dos cartórios de registro de imóveis e a da transcrição como forma de registro da propriedade só foram ocorrer com o primeiro código civil de 1916 (25). Até esse momento, o os principais registros de propriedade sobre terras urbanas eram os contratos de aforamento, que indicavam a existência de domínio direto e útil, e as escrituras de venda fixa, elaboradas pelos tabelionatos de notas.
Sobre os lotes e os loteamentos, vale lembrar que surgiram nas cidades brasileiras, de modo geral, a partir do último quartel do século 21. Como mostra Murillo, a palavra “lote” não era utilizada para tratar das parcelas de terras urbanas ou rurais, servindo para designar uma quantia fixa de algum produto ou uma parte de algo a ser sorteada em loteria ou vendida em leilão (26). Na medida em que as terras urbanas ou rurais puderam ser parceladas para a venda, o lote passou a representar a mercadoria fundiária por excelência, cuja propriedade se dava através do direito absoluto sobre a coisa. O agrupamento de lotes, unidades espaciais precisamente determinadas, associado à implantação de um novo sistema viário destinado a organizar as parcelas, prover uma infraestrutura mínima para circulação e saneamento, e evitar a servidão como forma de acesso aos terrenos, deu origem a figura do loteamento enquanto produto imobiliário e projeto de expansão urbana. Assim, tanto iniciativa privada quanto poder público implantaram loteamentos no lugar das antigas chácaras e promoveram a criação de “cidades novas”, onde o desenho do sistema viário e das parcelas inaugura uma estrutura fundiária completamente diferente da existente com as concessões de datas de chão.
Isso implicou na “perda de exclusividade do governo municipal em gerir e traçar a forma da cidade” (27). Enquanto nasce o lote de terras, morre o patrimônio fundiário municipal tal como existia até o século 19, sendo desincorporadas as concessões e respectivas condições existentes. O controle estatal sobre a produção do espaço urbano através de loteamentos só volta a se fortalecer no Brasil de forma tardia com a lei de parcelamento 6766 de 1979. Até esse momento, apenas o Decreto-lei n. 58/1937 disciplinava essa questão a nível federal, focando apenas na segurança jurídica entre loteadores e compradores de lotes.
Velhas e novas perguntas
Murillo Marx nos ajuda a pensar o papel do patrimônio fundiário para a história da urbanização no Brasil na longa duração, e sugere desdobramentos para pesquisas sobre outros temas, como a Câmara Municipal, a propriedade fundiária urbana e o mercado imobiliário. Como podemos ver em suas obras, ainda que explore outras chaves de interpretação, as atenções de Murillo estavam voltadas para a relação entre o Estado e a Igreja e a laicização do espaço público urbano no Brasil (28). Importavam para o autor os significados sagrados dos locais pios, a influência do direito canônico para a conformação das cidades e as manifestações religiosas que animavam o uso dos espaços comuns.
Outros pesquisadores, inspirados por Murillo, buscaram descortinar outros elementos dessa história, especialmente relativos ao papel da municipalidade com relação às propriedades urbanas e ao patrimônio público. Fania Fridman, autora que mais se aproximou de uma história fundiária da cidade brasileira, tratou em detalhes sobre as propriedades públicas da cidade do Rio de Janeiro, evidenciando a confusão entre as parcelas que formavam a sesmaria do Conselho, as propriedades das ordens religiosas e as terras de marinha. Tratou, ainda, da evolução das receitas de foros e laudêmios e da apropriação privada das terras públicas, través de aforamentos ou da venda direta para companhias privadas, elementos que, segundo a autora, caracterizaram um processo mais amplo de acumulação primitiva (29).
No livro seminal de Claudia Damasceno Fonseca sobre a urbanização mineira no século 18 (30), também encontramos um enfoque específico para o patrimônio fundiário municipal. A autora investigou os processos de confirmação e medição dessas terras, além das deficiências e irregularidades na gestão por parte da câmara, dando destaque para o procedimento de demarcação, para os registros de aforamento e para o tombamento das terras, que consistia numa catalogação dos proprietários.
Raquel Glezer explorou para o caso de São Paulo as demarcações e definições da terra urbana a partir da décima urbana, imposto que esteve relacionado com a delimitação do que deveria ser registrado a partir da Lei de Terras no chamado registro paroquial (31). A décima figurou, neste sentido, como uma primeira forma do que conhecemos atualmente como IPTU e, na prática, determinou o perímetro urbano, limite que define legalmente o que já é ou poderá ser urbanizado.
Também vinculado ao estudo da décima urbana, o trabalho de Beatriz Piccolotto Siqueira Bueno tomou partido das descrições contidas nos cadastros para investigar o “processo de produção do urbano na escala do edifício” e o surgimento do mercado imobiliário. Bueno trabalhou com a espacialização dos dados da décima sobre os mapas topográficos existentes para São Paulo no século 19. Com isso, a autora conseguiu destacar a importância do mercado de aluguel desde o início o do século 19 até a década de 1940, o nível de concentração fundiária entre os diferentes atores e a distribuição do uso e ocupação do solo da cidade para o século 19. Não só permitiu discutir interpretações existentes sobre a história da cidade como a consolidação de um método de investigação que associa cadastros e cartografia história como fontes para a história da urbanização (32).
O trabalho dessas autoras ajuda a elucidar também um ponto ainda mal resolvido na literatura sobre o tema: o impacto da Lei de Terras de 1850 sobre as terras urbanas. Apesar de existirem efeitos na longa duração, especialmente por marcar um processo de transformação da terra em mercadoria, a Lei de 1850 não teve por objeto as terras urbanas, permitindo que as mesmas ainda fossem concedidas gratuitamente ao longo da segunda metade do século 19 e início do século 20, além de não as incluir dentro da exigência de registro (33). Ademais, a referida lei manteve o costume de reserva de terras devolutas para a fundação de povoações e determinou a conservação dos campos de uso comum.
Se fica claro que a Lei de 1850 não instaurou automaticamente a propriedade privada sobre as terras urbanas, cabe a pergunta sobre em que marcos se deu essa transição. Em certo sentido, vale destacar, já existia um mercado de terras mesmo sob o sistema de aforamentos, uma vez que era possível vender a terra concedida mediante o pagamento do laudêmio à Câmara Municipal e escrituração no tabelionato de notas. Além disso, trabalhos como os de Gabriela Fernandes Siqueira (34) e de Paula Vanessa Luz de Abreu, José Julio Ferreira Lima e Luly Rodrigues da Cunha Ficher (35) enfatizam o papel do aforamento para urbanização do patrimônio fundiário municipal até as primeiras décadas do século 20. Partindo da ideia de que propriedade é também mentalidade (36), nota-se como, conforme Paula Vanessa Luz de Abreu, José Julio Ferreira Lima e Luly Rodrigues da Cunha Ficher (37), a privatização da propriedade urbana pode ter ocorrido justamente por dentro do sistema de aforamentos, e não como um resultado “automático” da lei de 1850.
Observa-se, nesse sentido, que a enfiteuse, por conferir direitos sobre a terra muito similares aos direitos do proprietário absoluto, dava ao enfiteuta liberdade para desmembrar, parcelar e remembrar a terra, tornando-o agente de participação significativa na estruturação morfológica da cidade. Assim, o conceito de propriedade privada absoluta parece ter permeado a concepção de domínio da terra mesmo no sistema enfitêutico, de modo que questões como venda de terrenos (nesse caso, traspasse do domínio útil), iniciativa de parcelamento do solo e divisão da terra em lotes são incorporadas aos processos fundiários não à margem do sistema enfitêutico, mas dentro dele (38).
Outro ponto interessante sobre essa transição são os pedidos de resgate de aforamentos apontados por Luana Nunes Bandeira, Luly Rodrigues da Cunha Fischer e Maria Claudia Bentes Albuquerque (39), regidos no Código Civil de 1916 e com efeitos para as terras urbanas em Belém até hoje. Cabe investigar, para outras cidades, em que medida esses pedidos foram utilizados para a transformação do patrimônio municipal em propriedade privada absoluta. As legislações de autorização de venda das terras públicas, seja pelas Províncias ou Estados, seja pelas Câmaras ou Superintendências Municipais, também figuram como fonte importante para explicar o processo de transição e a formação do patrimônio privado urbano no Brasil.
Como último conjunto de perguntas sobre o patrimônio fundiário municipal está o debate em torno das concessões de datas no período colonial e ao longo do século 19. Em que pese a escassez de fontes para diversas cidades, as pesquisas sobre a cidade de São Paulo evidenciam um ponto importante de discussão: em que medida a categoria do patrimonialismo nos ajuda a explicar as concessões feitas pelas Câmaras Municipais ou, em outros termos, quais valores orientavam a ação da vereação nessas concessões? Raquel Glezer (40) aponta sobre as concessões serem feiras em função da necessidade e para o uso, conforme consta nas Ordenações. Fernando Victor Aguiar Ribeiro (41), por outro lado, analisa as Cartas de Datas de Terra de São Paulo entre 1560 e 1765 e concluí pela relação direta entre os beneficiários das concessões e os ocupantes de cargos entre a vereação. Já Elisangela Maria da Silva, ao investigar as mesmas cartas de datas no período entre 1850 e 1890, conclui que as concessões feitas no período eram para membros dos “mais variados segmentos sociais” (42) e não configuraram glebas para futuros loteamentos.
Novas pesquisas sobre os aforamentos urbanos tratando de outras cidades brasileiras podem complexificar ainda mais a questão de como as câmaras e superintendências municipais atuaram na constituição do patrimônio privado e dissolução do patrimônio fundiário municipal. Além dos elementos já trazidos pelos autores, considero pertinente a discussão sobre a relação entre o urbanismo de melhoramento e a venda das terras públicas no início do século 20. Afinal, se o período da primeira república foi marcado por intervenções urbanas pontuais e de caráter higienista, qual a relação entre essas intervenções, a dissolução do patrimônio municipal e a consolidação da propriedade privada absoluta?
Patrimônio fundiário municipal pra quê?
No contexto atual, em que a agenda neoliberal prega a venda das terras públicas, sob os auspícios de que sua utilização por agentes privados promoverá um uso mais eficiente e benéfico a todos, investigar o papel do patrimônio público na história da urbanização é tratar sobre sua importância na formação do patrimônio privado e sobre como a alienação não planejada desse patrimônio desperdiça a possibilidade de um desenvolvimento urbano mais justo. Vale lembrar, por exemplo, como os projetos urbanísticos realizados por Ernst May em Frankfurt foram possíveis apenas por conta das propriedades públicas adquiridas pela administração municipal (43). Ademais, a municipalização dos imóveis urbanos através do direito de preempção, que pode ser instituído sobre determinados terrenos, é instituto presente no regime urbanístico brasileiro e reforçado pelo Estatuto da Cidade.
Outrossim, é importante investigar como as propriedades municipais em seu sentido moderno guardam uma diferença significativa em relação às formas de tradição medieval, como o rossio. No direito civil, que se desdobra a partir do Código Napoleônico, a propriedade pública tem caráter transitório e excepcional. Em outras palavras, todas as propriedades são privadas, a não ser que sejam públicas por interesse público, utilização pelo Estado ou claro uso enquanto bem comum, caso das ruas e praças. Essas propriedades também adquirem um caráter de propriedade privada do Estado, o qual passa a ter personalidade jurídica, não sendo mais mero administrador dos bens necessários à coletividade (44).
Outro aspecto que denota uma mudança significativa é como a criação da propriedade pública através da desapropriação torna-se, contemporaneamente, um processo mais custoso para o próprio Estado. No Brasil, a constituição de 1988, após afirmar que a propriedade deverá cumprir sua função social, estabelece que a desapropriação por necessidade, utilidade pública ou interesse social ocorrerá apenas mediante indenização prévia, justa, e em dinheiro. Com as limitações ao gasto público e a agenda de responsabilidade fiscal, a inviabilidade da desapropriação vai ao encontro da vantagem em se desfazer do patrimônio fundiário remanescente.
E deve-se considerar, ainda, a dificuldade dos municípios conhecerem os limites do próprio patrimônio e da estrutura fundiária de modo geral. Efeito do sistema atual de registro de imóveis no Brasil, como apontam Abreu e Carvalho Junior (45), que por estar situado na esfera do poder judiciário, entre outros fatores, não possibilita a transparência dos direitos de propriedade fundiária e contribui pouco para a utilização dessas informações no planejamento do território.
Em relação ao parcelamento do solo urbano, assunto fundamental para Murillo Marx, a legislação que tardiamente passou a exigir um mínimo de áreas públicas no caso de loteamentos, a Lei Federal n. 6766 de 1979, estabeleceu incialmente 35% de área para sistema viário e equipamentos comunitários. Posteriormente, essa porcentagem foi substituída por uma definição genérica, para que as porcentagens mínimas fossem definidas pelos Municípios. Fato notório em relação ao patrimônio municipal produzido através dos loteamentos é que sua gestão por parte do poder público é bastante negligente, sendo comum encontrarmos áreas como essa ocupadas, não transferidas ao município, ou alocadas em áreas impróprias para utilização.
Essas problemáticas sobre o patrimônio fundiário reforçam sua importância dentro do campo da história urbana brasileira. Murillo Marx teve o mérito de descobrir e construir esse objeto de pesquisa a partir de um trabalho voltado principalmente para as relações entre Estado e Igreja. Aqueles inspirados por suas investigações já apontaram novos caminhos e abordagens, além de terem construído pesquisas robustas para algumas cidades. Cabe às novas pesquisas expandir esse horizonte de compreensão da cidade brasileira e avançar numa compreensão de conjunto.
notas
NE — Este artigo foi originalmente apresentado no evento XVII Simpósio Nacional de Geografia Urbana 2022.
1
CYMBALISTA, Renato. Murillo Marx (1945–2011). Pós, v. 18, n. 29. São Paulo, 2011 <https://bit.ly/47QqZnV>; ARAGÃO, Solange de. O Céu de Franz Post. Pós, v. 18, n. 30. São Paulo, 2011 <https://bit.ly/3RgEnMF>.
2
MARX, Murillo. Cidade no Brasil: terra de quem? São Paulo, Nobel/Edusp, 1991, p. 17.
3
BUENO, Beatriz Picolotto Siqueira. Dossiê Caminhos da História da Urbanização no Brasil Colônia. Anais do Museu Paulista, v. 20, n. 1, São Paulo, jan./jun. 2012 <https://bit.ly/46ASlxr>.
4
LIMA, Ruy Cirne. Pequena história territorial do Brasil: sesmarias e terras devolutas. Goiânia, Editora UFG, 2002.
5
MARTINS, José de Souza. O cativeiro da terra. São Paulo, Contexto, 2010.
6
ANDRADE, Francisco de Paula Dias de. Subsídios para o estudo da influência da legislação na ordenação e na arquitetura das cidades brasileiras. Tese para o concurso de cátedra. São Paulo, Epusp, 1966.
7
REIS FILHO, Nestor Goulart. Contribuição ao estudo da evolução urbana no Brasil: 1500–1720. São Paulo, Livraria Pioneira, 1968.
8
Poderiam ter áreas maiores, ou serem concedidas áreas adicionais, como foi o caso de Belém.
9
SILVA, Elisangela Maria da. Práticas de apropriação e produção do espaço em São Paulo: a concessão de terras municipais através das cartas de datas (1850–1890). Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2012.
10
GLEZER, Raquel. Chão de terra e outros ensaios sobre São Paulo. São Paulo, Alameda, 2006.
11
ABREU, Maurício de Almeida. Apropriação do território no Brasil Colonial. In FRIEDMAN, Fania, HAESBAERT, Rogério (org.). Escritos sobre espaço e História. 3ª edição. Rio de Janeiro, Garamond, 2017.
12
CAMPOS, Nazareno José de. Terras comunais na ilha de Santa Catarina. Florianópolis, FCC Edições, 1991.
13
Marx, Murillo. Cidade no Brasil: em que termos? São Paulo, Nobel, 1999.
14
Idem, ibidem.
15
Idem, ibidem.
16
REIS FILHO, Nestor Goulart. Op. cit.
17
MOTTA, Marcia Maria Menendes. Direito à terra no Brasil: a gestação do conflito: 1795–1824. São Paulo, Alameda, 2012.
18
GLEZER, Raquel. Op. cit.
19
SIQUEIRA, Gabriela Fernandes. Dessacralizando as propriedades: um estudo sobre o aforamento urbano e a mentalidade proprietária do início do século 20 em Natal RN. Urbana, v. 6, n. 9, 2014 <https://bit.ly/3QVaeRW>.
20
ABREU, Paula Vanessa Luz de; LIMA, José Julio Ferreira; FICHER, Luly Rodrigues da Cunha. Aforar, arrumar e alinhar: a atuação da Câmara Municipal de Belém na configuração urbano-fundiária da cidade durante o século XIX. Anais do Museu Paulista, vol. 26, São Paulo, Nova Série, 2018 <https://bit.ly/3N2NX38>.
21
BRASIL apud ARARIPE, Tristão de Alencar [1885]. Código Civil Brasileiro ou as leis civis do Brasil. Rio de Janeiro, H. Laemmert & Cia., 1885. Biblioteca Digital do Supremo Tribunal Federal <https://bit.ly/49W0eR2>.
22
MARX, Murillo. Op. cit.
23
GLEZER, Raquel. Op. cit.
24
BUENO, Beatriz Picolloto Siqueira. Op. cit.
25
VARELA, Laura Beck. Das sesmarias à propriedade moderna: um estudo de história do direito brasileiro. Rio de Janeiro, Renovar, 2005.
26
Marx, Murillo. Op. cit.
27
Marx, Murillo. Cidade no Brasil: em que termos? (op. cit.), p. 71.
28
MARX, Murillo. Nosso chão: do sagrado ao profano. São Paulo, Edusp, 2003.
29
FRIDMAN, Fania. As propriedades públicas no Rio de Janeiro. In Donos do Rio em nome do rei: uma história fundiária da cidade do Rio de Janeiro. 3ª edição. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2017.
30
FONSECA, Cláudia Damasceno. Arraiais e vilas d’el rei: espaço e poder nas Minas setecentistas. Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2011.
31
GLEZER, Raquel. Op. cit.
32
BUENO, Beatriz Picolloto Siqueira. Op. cit.
33
GLEZER, Raquel. Op. cit.
34
SIQUEIRA, Gabriela Fernandes. Op. cit.
35
ABREU, Paula Vanessa Luz de; LIMA, José Julio Ferreira; FICHER, Luly Rodrigues da Cunha. Op. cit.
36
GROSSI, Paolo. A propriedade e as propriedades na oficina do historiador. In GROSSI, Paolo. A história da propriedade e outros ensaios. Rio de Janeiro, Renovar, 2006.
37
ABREU, Paula Vanessa Luz de; LIMA, José Julio Ferreira; FICHER, Luly Rodrigues da Cunha. Op. cit.
38
Idem, ibidem, p. 44–45.
39
BANDEIRA, Luana Nunes; FISCHER, Luly Rodrigues da Cunha; ALBUQUERQUE, Maria Claudia Bentes. Gestão do regime enfitêutivo dos patrimônios municipais na Amazônia: estudo de caso da gestão de terras de Belém PA. RFD — Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 34, Rio de Janeiro, 2018.
40
GLEZER, Raquel. Op. cit.
41
RIBEIRO, Fernando Victor Aguiar. Os direitos de propriedade da terra urbana na América portuguesa. História, v. 36, São Paulo, 2017 <https://bit.ly/47OdYLG>.
42
SILVA, Elisangela Maria da. Op. cit., p. 254.
43
HALL, Peter. Cidades do amanhã. São Paulo, Perspectiva, 2016.
44
MARÉS, Carlos. A função social da terra. Curitiba, Arte e Letra, 2021.
45
ABREU, Maria Aparecida Azevedo; CARVALHO JUNIOR, Carlos Henrique. Administração pública da propriedade imóvel urbana no Brasil: registro público da propriedade urbana e suas implicações federativas. In FRIDMAN, Fania (org.). Quem planeja o território? Rio de Janeiro, Letra Capital, 2022.
sobre o autor
Gustavo Rodrigo Faccin Araujo de Souza é mestrando na Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional do IPPUR UFRJ. Arquiteto e urbanista pela UFSC (2021).