A conversa sobre tempos anacrônicos demanda que sua dinâmica no tempo se mantenha ancorada no raciocínio da complexidade, cujo autor base de referência é Edgar Morin (1). Entendida a "diacronia como um pensamento que se pratica na diferença" (2), a interlocução, neste artigo, entre Walter Benjamin, Federico Fellini, Paulo Mendes da Rocha, abre a possibilidade de evocar relações transversais. Dentre o poético e o político, olha para “uma composição texto-imagem que não encontra morada somente na arte, quando se refere a uma estética ‘erudita’, mas também a uma ‘estética do cotidiano’” (3), na qual, aqueles a quem se aprecia compartilham, em sua maneira de se moverem no mundo, a forma como são afetados, como influenciam seu tempo histórico e neles nos enreda.
Sem afinidades por profissão, meio cultural, nacionalidade, em suas ações e obras, para estes criadores, em seus indispensáveis agenciamentos da realidade, o tempo se faz contínuo e poeticamente original e contemporâneo. Observadores do que se faz imperativo no cotidiano, do que creem autêntico, em seu movimento o olhar interroga, “não deriva sobre uma superfície plana, mas escava […] mirando as frestas deste mundo instável […] que instiga e provoca a cada instante sua empresa de inspeção e interrogação” (4).
Na perspectiva de um olhar inquiridor, que se atualiza e se posiciona de maneira crítica, as artes, a arquitetura, qualquer texto de diversas vozes são discursos, narrativas, escrituras. Linguagem dentro de linguagens. E, sob esta afinidade que "explora zonas opacas, interroga lacunas e se abre à indeterminação do tempo" (5), o texto não é aquele da lógica discursiva, senão subversiva. Aquele em cuja sombra transparece o sujeito que tem como demanda a "subversão da ideologia" (6) e que se coloca como sujeito da experiência, cujo saber "se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana" e cuja obra se vislumbra “por sua receptividade, por sua disponibilidade, por sua abertura” (7) impulsionada a potentes e transdiciplinares poéticas — operativas enquanto programas de arte (8).
Como obra aberta (9), por valor, configuração, duração, a conversa com essas obras e linguagens se abre à leitura de suas consonâncias. A partir de fragmentos, a narrativa, que amálgama interfaces entre elas, convida a penetrar na fecundidade de alguns dos espectros, traços, rastros e estruturas particularmente relevantes com que cada uma se declara em sua mediação sensível.
Na explicitude de cada instância, aberta à conversa entre o texto e o pensamento visual, o objetivo é “contribuir com a cultura de projeto e aliar-se ao entendimento de que o projeto, em seu processo de criação, gera um saber próprio (10) que se engendra na prática e se expressa em forma e imagem” (11).
Na “relação que faz conversar a ação de busca do projeto, como exercício poético de uma narrativa, que propõe questões, e a práxis artística, a partir da lógica do campo ampliado” (12), a ideia é:
“Compreendê-las como um todo complexo em que as linguagens interagem e contribuem para a criação de um senso de unidade. Mesmo que a unidade, não domesticada, se apresente em episódios singulares e seja a somatória de fragmentos, ao invés de uma hierarquia e uma ordem globais” (13).
Memória e experiência sensorial: contra as classificações
obra | Contra la interpretación
autoria | Susan Sontag
descrição | a obra de arte e sua interpretação, 1964
No viés da memória da década de 1960, anos de efervescência cultural, artística e intelectual em Paris e Nova York, a ensaísta norte americana Susan Sontag escreve, entre outros manifestos, o texto “Contra la interpretación” (14).
Admiradora do mundo transgressor, a autora recusa as hierarquias de classificação da crítica e reflexões da produção artística e intelectual — que se movem entre conteúdo/forma, intelecto/sentimento, dando maior valor ao primeiro termo do binômio (15). A teoria da arte, até então, havia defendido a máxima de que a obra de arte é seu conteúdo. E é contra este estigma da tradição, que alimenta a tese da interpretação como tradução ou revelação da obra, que Susan Sontag afirma que “la idea de contenido es […] sobre todo un obstáculo, un fastidio […], un desprecio declarado por las apariencias” (16).
A redução da obra de arte ao seu conteúdo domestica a obra. Para Sontag, aquela obra de arte, “cuya superficie sea tan unificada y límpida, […] que la obra pueda ser… lo que es” (17), evade a divisão entre conteúdo e forma e os intérpretes que nela se apoiam. Ao crítico, portanto, deve ser relevante se abrir à experiência sensorial, à forma, evitar a interpretação.
Para a autora, a vitalidade de uma obra, "cuja mensagem seja direta", é qualidade das obras transparentes, que desobrigam o intelecto da “ansiedad por interpretar” (18), se ilumina em testemunhos desta condição de autonomia de seus autores, e suas ações éticas e estéticas singulares e dignas de menção.
Memória e crítica: os resíduos do colecionador
obra | Sobre o conceito de história
autoria | Walter Benjamin
descrição | literatura, filosofia e história, 1940
Em Hombres en tiempos de oscuridad (19) Hannah Arendt menciona que Walter Benjamin “pensaba en forma poética, mas no era ni poeta ni filósofo” (20), “sentía pasión por las cosas pequeñas, incluso diminutas” (21), e que a maior delas era colecionar. Sua particular coleção de citações, enquanto “fragmentos de pensamiento” (22), ilumina seus textos e teses.
Escrever através de citações é preservar a recordação e agenciar a ação no tempo presente. Um apelo para que o texto oculto possa, pela citação, mostrar seu valor e legado, reivindicar o passado para o tempo presente, atualizando-o.
Segundo o filósofo alemão,
“Articular historicamente o passado não significa conhecê-lo tal qual ele efetivamente foi, mas apoderar-se de uma reminiscência tal qual ela cintila no instante de um perigo […]. O perigo ameaça tanto a existência da tradição quanto os que a recebem […]. O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é privilégio exclusivo do historiador convencido de que, se o inimigo vencer, nem os mortos estarão em segurança” (23).
Em Benjamin, a escrita por evocação de citações não é argumentação, mas idioma — modo particular que solicita o raciocínio e o desvelamento de sua arte. Forma de expressão e impressão. Inteligência e método, como esclarece o autor:
“Método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar. Não surrupiarei coisas valiosas, nem me apropriarei de formulações espirituosas. Porém, os farrapos, os resíduos: não quero inventariá-los, e sim fazer-lhes justiça da única maneira possível: utilizando-os” (24).
A técnica de subversão da lógica do historicismo, tratado na justiça que se faz aos farrapos e resíduos, às ruínas vividas, aos oprimidos, incorporados nas referências e na escrita de forma alegórica, constrói um discurso que reconsidera o modelo que a tudo classifica e ordena, pois, para Benjamin, “em cada época, é preciso arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela” (25).
A tônica distintiva do discurso científico, em Walter Benjamin, faz referência ao mundo real, apela a valores e emoções pela expressividade e inusitado juízo sobre os temas tratados. Ou seja, forma e conteúdo estão juntos: o que se diz e a maneira como está dito constituem uma unidade orgânica na imagem dialética que, através da linguagem, realiza o "despertar histórico" que se libera do “‘mausoléu da história’, do peso de um sentido único e objetivo, isto é, irreversível” (26).
Influenciado pelo surrealismo, em Walter Benjamin "lidar com a fortuna é negar-lhe a contingência, tornando-a necessária, fazendo-a causa sua" (27). “En otras palabras, aquello que fascinó profundamente a Benjamin desde un principio nunca fue una idea, sino siempre un fenómeno” (28). Sua paixão intelectual e observação emotiva devem decifrar o signo plural das coisas e se estruturam, na linguagem, através de imagens. Para o autor,
“A imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal e contínua, a relação do ocorrido com o agora é dialética — não é uma progressão, e sim uma imagem, que salta. — Somente as imagens dialéticas são imagens autênticas (isto é: não-arcaicas), e o lugar onde as encontramos é a linguagem. Despertar” (29).
A coleção de citações em Benjamin é um modo de discurso ligado à percepção do mundo e, “em sentido próximo, […] é repetição sem ser coincidência, é refúgio na dimensão do mesmo e apelo de um outro”, segundo Olgária Matos (30). Um outro que as imagens dialéticas resgatam também no que se ignora da história oficial.
Esta sincronia no discurso do colecionador, que opõe o critério de legitimidade à tradição e que afasta o materialismo histórico do historicismo, está iluminada pelo “pensamento genuíno” (31). Ou ainda, pela qualidade dos fatos, dos objetos, dos sentidos e atmosferas que fundam a lembrança e a consciência que devem iluminar o amanhã, porque o materialista dialético está convicto que “tudo que ela, [a memória], constrói é futuro” (32), mas, principalmente, porque alimenta o “que piensa en el presente” (33).
1. O cinema na era de sua reprodutibilidade técnica
É sobre os escombros da tradição da autenticidade da obra de arte que Walter Benjamin escreve o clássico texto “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” (1936/1955), com o intuito de apontar as qualidades das novas artes após a incorporação da reprodução técnica, conquistando, principalmente com a fotografia, o cinema e a arquitetura, “um lugar próprio entre os procedimentos artísticos” (34).
A reprodutibilidade técnica, para Benjamin, tem no cinema seu agente mais poderoso, uma vez que atualiza o objeto reproduzido e permite à reprodução vir ao encontro do novo espectador massificado. A técnica multiplica um original, “substitui sua existência única por uma existência serial” (35) e liquida o “valor tradicional do patrimônio da cultura” (36). Esta perda da autenticidade, que se atesta na tradição, e a ausência de uma materialidade que testemunhe a autoridade de um original, atrofia a aura da obra de arte como aparição única, emancipa a obra do ritual secularizado que a inseria no contexto da herança do passado, alterando a função social da arte, inserindo-a na práxis política (37).
Benjamin observa que a autenticidade que escapa à reprodutibilidade técnica e a consequente destruição da aura da obra de arte modificam a faculdade perceptiva condicionada de forma natural e histórica. A recepção das imagens, no cinema, torna-se coletiva, pois “mais que em qualquer outra arte, as reações do indivíduo, cuja soma constitui a reação coletiva do público, são condicionadas, desde o início, pelo caráter coletivo dessa reação” (38).
O cinema é, portanto, para Benjamin, a arte que “corresponde a metamorfoses profundas do aparelho perceptivo, como as que experimenta o passante, numa escala individual, quando enfrenta o tráfico, e como as experimenta, numa escala histórica, todo aquele que combate a ordem social vigente” (39).
Memória e cinema: o recordar em estado de duração
obra | Amarcord
autoria | Federico Fellini
descrição | produção franco-italiana, 1973 (40)
Fellini teria realizado o que para Benjamin era o verdadeiro sentido e as verdadeiras possibilidades do cinema, ou seja: “sua faculdade característica de exprimir, por meios naturais e com uma incomparável força de persuasão, a dimensão do fantástico, do miraculoso e do sobrenatural” (41). Lembramos Amarcord. Uma referência à expressão “io me ricordo” (eu me lembro), oriunda da região da Emilia-Romana, onde Federico Fellini nasceu, e ao filme que registra um ano de acontecimentos na terra natal do diretor, a pequena cidade de Rimini, no litoral leste da Itália. O período é a década de 1930, durante a ascensão do fascismo.
A película resgata a memória da banal e conflituosa vida cotidiana, fechada em seus próprios hábitos e crenças, distante do centro dos acontecimentos, fadada a desaparecer, exceto na memória dos que nela vivem (42). Como pátria de gente simples, heróis anônimos e marginais, o argumento crítico olha para a tolerância com a cadência e o autoritarismo do catolicismo e a realidade opressiva da cultura totalitária do fascismo.
Para alguns críticos, Amarcord é autobiográfico; é registro emotivo e nostálgico, mas este não é o foco da narrativa. A aparentemente prosaica história é interpelada pela sequência abrupta da tessitura da rememoração e de um mundo imaginativo e surpreendente que se abre à contemplação, descortina fatos e coleção de imagens. Também questiona a vida ordinária nos personagens que saturam a expressividade da atuação e cujas vozes entoam textos emocionados, através de uma técnica filmográfica que fragmenta, dissocia, e que só se manifesta, em um ciclo temporal, pelo suceder das estações do ano em Rimini.
Amarcord é um manifesto de expressões de afeto e desafeto que as imagens explicitam no corpo e na palavra — dançar, rir, comer, esconjurar, desejar. No cinema, imagem e palavra são indissociáveis, exige intelecção e o vocabulário das formas é direto, explícito e agudo. Em Fellini, não propriamente os fatos, mas o arranjo e a sensação advinda da polissemia das imagens que nascem a partir dos fatos é a questão de sua arte. “Não os fatos como eles efetivamente existiram, mas talvez como foram fantasiados na memória, numa realidade delirada, corrigida, criticada, reinventada pela imaginação” (43), que sugere que “a imagem é mais uma reflexão do que um reflexo” (44).
As trivialidades do cotidiano se mostram em imagens arbitrárias, construídas. Que se expressam, por exemplo, de forma arrebatadora, na aspiração e no êxtase diante da beleza e monumentalidade da máquina, cuja imagem é o fantástico transatlântico que navega em um oceano de plástico (45).
Não há neutralidade emocional no encadeamento que se experimenta entre a ficção e os dramas. Na filmografia felliniana a forma evidencia e não analisa e, em vários momentos, não se necessitam palavras, tal a insistência e intensidade das imagens. O filme impera, em último termo, por expressões imagéticas que se sucedem instigando e confundindo os sentidos. O tema, cujo substrato de abordagem, afastado de uma concepção culta da cultura, exige uma sensibilidade de cáustica afeição.
É o excesso, em Amarcord, que envolve a participação na experiência sensorial. Por acordo e desacordo das emoções, pacto e negação da sensação, o espetáculo exercita novas percepções, reações, enervações e realiza a tarefa histórica “que dá ao cinema seu verdadeiro sentido” (46).
Como cinegrafista Fellini “penetra profundamente as vísceras [da] realidade” (47). O erotismo, explora a beleza e o grotesco das formas, atrai para os detalhes, acumula intensidade. Em Amarcord a configuração estabelece uma relação de aproximação e distanciamento, suscita empatia e vertigem, provoca estranhamento, nos inquieta na duplicidade entre o sério e o grotesco; embaça o intelecto, que se recusa à interpretação, e a emoção oscila entre deslumbre e depreciação.
Fellini brinca com a impregnação das imagens e sua intelecção no tempo. Há nas imagens um contenido manifiesto (48) ao qual, no tempo, se faz descoberto como contenido latente (49). Amarcord burla a nossa inteligência e desperta sensações que perduram e irão se re-apresentar, ao intelecto, em situações futuras.
Em Amarcord, Fellini realiza um cinema político aparentemente apolítico, burlesco e não didático, ou seja, sem filiação partidária. Sua extravagância e blasfêmia celebram a vida através da sátira e criticam duramente a “tolerância repressiva” através da ironia que subverte o totalitarismo.
Mais crítica que a cinematografia de cunho ideológico, que orienta e disciplina, há um claro fundo crítico na representação aparentemente anárquica e polissêmica das imagens (50), porque elas não implicam em ordens, regras; fogem ao sistema; é um jogo próprio da experiência estética (51) que o autor antecipa no "modo" de narrar uma história: “Definitivamente, não quero dizer, com meus filmes, nada a não ser que, com maior ou menor obstinação, deve haver uma maneira de melhorar as relações entre os homens […] o que mais me interessa é a liberdade do homem” (52).
2. A arquitetura na era de sua reprodutibilidade técnica
Para Walter Benjamin, a recepção coletiva e a percepção distraída são inerentes ao cinema, mas também à arquitetura. Na arte que jamais deixou de existir, a recepção da arquitetura sempre se deu de forma coletiva, segundo o critério da dispersão e, para o autor, “é importante ter presente a sua influência em qualquer tentativa de compreender a relação histórica entre as massas e a obra de arte” (53).
A arquitetura comporta uma dupla forma de recepção:
“Pelo uso e pela percepção. Em outras palavras: por meios táteis e óticos. […] A recepção tátil se efetua menos pela atenção que pelo hábito. No que diz respeito à arquitetura, o hábito determina em grande medida a própria recepção ótica” (54).
“E aqui, onde a coletividade procura distração, não falta de modo algum a dominante tátil, que rege a reestruturação do sistema perceptivo. É na arquitetura que ela está em seu elemento, de forma mais originária” (55).
Memória e museu: a experiência de espaço
obra | Reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo
autoria | Paulo Mendes da Rocha, Eduardo Colonelli e Weliton Ricoy Torres
descrição | uma nova espacialidade, 1993–1997/1998 (56)
A arquitetura é, portanto, para Walter Benjamin, paradigma da relação estética na era da reprodutibilidade técnica. O “arquétipo da arte de massa”, segundo Otília Arantes (57). E é justamente “o triunfo da ‘dominância tátil’ na cultura da sociedade atual, uma cultura saturada de imagens e dígitos” (58), que “as leis da recepção […] extremamente instrutivas” (59) propostas na Pinacoteca do Estado de São Paulo, fazem perceber uma atitude nova com relação à obra de arquitetura precedente (60).
Uma arquitetura neoclássica, erigida por opção de estilo, não encontra eco na postura de Mendes da Rocha, um moderno por excelência. Que, entre outros entendimentos comunga o projeto de modernidade como aquele que faz dialogar tradição e invenção e, no qual, o sentido emancipador no Brasil, que caracteriza a resistência anticolonial e o princípio provocador de autonomia é, em realidade, uma proposta cultural e política que propõe reinventar o passado desprezado pelos conquistadores (61).
O projeto atualiza o edifício precedente, reinventando-o. A virtude está em propor o florescimento de uma nova concepção arquitetônica para o edifício construído na passagem do século 19 para o século 20, ao inverter sua implantação com respeito à cidade e dotar de liberdade, imprevisibilidade e dinamismo ao propor um espaço fluido que se justapõe à rígida formalização da clássica planta original.
Considerar a arquitetura como materialização de um discurso implica, de forma necessária, a busca de sua qualidade estética, que é a que sustenta seu valor afetivo e cultural. No projeto da Pinacoteca do Estado, o intento deliberado para manter um estado de equilíbrio tenso entre o antigo e o novo buscou uma amplitude espacial e construtiva que definisse e fizesse coincidir memória, abstração e aspiração artística.
Por uma poética que rejeita a dualidade, o projeto da Pinacoteca se propões como o lugar onde discurso e obra compartilham um envolvimento recíproco, rompe com a neutralidade do cubo branco e com o excesso da saturação de imagens.
A indagação que o novo desenho tece sobre as possibilidades do construir é um projeto maior, no qual a arquitetura, enquanto estrutura imprescindível do viver, é uma reflexão permanentemente aberta sobre a necessidade de humanizar o espaço habitável, ou seja,
“Uma arquitetura de vontades e desejos; uma arquitetura que é um relato sobre aquilo que imaginamos seja a realidade. Ou seja, o que é a realidade? Um instrumento de transformação. Nada que se cristalize para ficar… A arquitetura como discurso” (62).
Construir este discurso é engendrar uma obra que guarde a indivisibilidade entre a forma e o sentido, entre idealidade e realidade.
Uma nova espacialidade, disposição na qual mantem-se a percepção sutil da obra clássica na transparência de uma arquitetura que obra poética, é um campo de possibilidades de fruição e movimento (63). O espaço de exposição se converte em um território de encontro e lugar de interação entre arquitetura, obra de arte e participadores (64). Em recintos e estruturas, agora substantivados por ações individuais e coletivas, subjetividades são acolhidas, corpos ganham protagonismo e a imprevisibilidade ocorre desvinculada da ideia de exceção e espetáculo.
Desde esta perspectiva, o desenho busca, ao propor os fundamentos de sua transformação, tanto ser reconhecido como renovar; tanto ser inteligível como provocar surpresa; tanto potencializar hábitos urbanos como abrir um espaço à mutabilidade.
Seja no diálogo que se estabelece entre a tradição (fundo da memória) e o contemporâneo (circunstância), seja na relação de interdependência, necessária e transitiva, entre edifício e organismo urbano. O que inspira o projeto do objeto arquitetônico é
“A cidade. Esse ‘desenho no ar’, esse desenho para que se faça, considerando a história e a experiência, [que] é a motivação, digamos assim, a inspiração, qualquer coisa que pudesse receber essa nomeação, essa objetivação para a arquitetura, na minha opinião” (65).
A ideia de que o ambiente humano é uma totalidade e o edifício isolado forma parte de uma concepção arquitetônica superada define um projeto comprometido com os hábitos de uma vida simples e de vocação plena a uma constante modernização. Que é, por fim, a arquitetura que tem como única possibilidade prevista um desenho inaugural, que é uma imagem poética evocada e desejada, antiga e sempre renovada.
3. O prazer do texto: o terceiro termo de Roland Barthes(66)
Na atenção a enunciados e visibilidades contemporâneas, muito do que se elege como cultura decorre de um espaço/tempo de aparências e se sustenta por um discurso que rebaixa as experiências fundamentais da época, banaliza e neutraliza a percepção sensível.
Neste contexto, uma coletânea de escrituras, um filme, uma arquitetura atraem a atenção. Em nenhuma das obras há uma declaração, afirmação ou resposta a uma pergunta. Elas dialogam com nosso desejo, imaginação e atitude, mas, ecoam em nossa percepção e sugerem questões. Para desenhar o desapego ao enquadramento da ideologia, lembrar, por exemplo, Federico Fellini. Para ilustrar o desinteresse ao sucesso e a atenção à história, evocar Walter Benjamin. Para documentar o produtivo, não sedentário e alienante, apontar Paulo Mendes da Rocha. Por exemplo.
Sujeitos históricos, todos os três dirigem um olhar de resgate para o passado para reinventá-lo de forma crítica. A obra é parte criação — o novo que determina a mudança na história —, parte repertório — o aprendizado com a realidade e a criação de outros —, parte memória revisitada — uma memória vivida enquanto afetos, desafetos, representações, ausências, penumbras, conhecimento adquirido. O que envolve tanto o inaudito como vozes silenciadas e identidades nela manifestada.
Sujeitos que sem serem poetas, pensam ou pensavam poeticamente, e tinham ou têm amor à mundaneidade, à vida simples, à reflexão elaborada a partir da ação inventiva e do saber da experiência.
E nestes tempos em que a experiência ainda busca seu lugar no mundo da ciência e que "os sujeitos são fabricados e manipulados pelos aparatos da informação e da opinião e assim incapacitados para a experiência" (67), é lícito dizer que estes, são ou foram homens capazes de se maravilhar com o estranhamento e o enigma da vida e cujo “olhar não descansa […]. E se a realidade os entrelaça, é porque o mundo visível […] se dá mais […] como o contorno de um campo em que o sentido ora se adensa e se aglutina, ora se difunde e dilui numa existência rarefeita, sempre vazado de lacunas e indeterminação” (68). São, portanto, criadores cuja categorização se torna inútil, uma vez que sua atividade laboriosa não pertence a uma ordem classificável, mas a um arranjo particular.
A qualidade liberadora das obras transparentes, da qual fala Susan Sontag (69), é testemunho singular da condição de autonomia de seus autores: Walter Benjamin; Federico Fellini; Paulo Mendes da Rocha. Políticos peculiares, cultos sem serem necessariamente eruditos, intérpretes dos processos históricos, não professaram o continuum da história, mas atualizaram sentidos. Vivem ou viveram sem seres úteis, mas originais e indispensáveis, porque estão ou estiveram em sutil posição subversiva. Esta, tal qual anunciou Roland Barthes:
“Entiendo por subversión sutil aquella que no se interesa directamente en la destrucción, esquiva el paradigma y busca otro término: un tercer término que sin embargo no sea un término de síntesis sino un término excéntrico, inaudito” (70).
notas
NE — Texto escrito para a disciplina "Texto e imagem", ministrada pelo professor doutor Geraldo Souza Dias, no Departamento de Artes Visuais da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo — ECA USP, no primeiro semestre de 2018. Acrescida de novas questões, a partir da conferência "Museu, memória e crítica" | Semana Nacional de Museus | Fundação Pierre Chalita/FAU UFAL, Maceió, apresentada em maio de 2011.
1
MORIN, Edgar [1990]. Introducción al pensamiento complejo. Barcelona, Gedisa, 1995.
2
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Rio de Janeiro, Editora 34, 2006.
3
VILLAC, Maria Isabel. Pensar um campo ampliado para a arquitetura: enunciados em texto e imagem. Projeto de pesquisa apresentado ao Departamento de Artes Plásticas da ECA USP, desenvolvido como pesquisadora colaboradora, sob a supervisão do Professor Doutor Geraldo de Souza Dias, 2018–2/2019–2, p. 6.
4
CARDOSO, Sergio. O olhar do viajante (do etnólogo). In NOVAES, Adauto. O olhar. Rio de Janeiro, Funarte, 1988, p. 349.
5
Idem, ibidem.
6
BARTHES, Roland [1978]. El placer del texto. 11ª edição. Madrid, Siglo XXI, 1995, p. 53.
7
BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, jan./abr. 2002, p. 26 <https://bit.ly/46UD2zD>.
8
PAREYSON, Luigi [1988]. Estética e poéticas. In Estética: teoria da formatividade. Petrópolis, Vozes, 1993.
9
ECO, Umberto [1958]. A poética da obra aberta. In Obra aberta. São Paulo, Perspectiva, 1976.
10
BOUTINET, Jean-Pierre. Antropologia do projeto. Porto Alegre, Artmed, 2002.
11
VILLAC, Maria Isabel. Op. cit., 2018-2/2019-2, p. 3.
12
KRAUSS, Rosalind. A escultura no campo ampliado. (1979). Revista Gávea, n. 1, Curso de Especialização em História da Arte e Arquitetura no Brasil, da PUC-Riox, 1984.
13
VILLAC, Maria Isabel. Pensar um campo ampliado para a arquitetura: enunciados em texto e imagem (op. cit.). p. 5.
14
SONTAG, Susan [1964]. Contra la interpretación. Madri, Santillana, 1996. Vale lembrar que teóricos da percepção, no que se destaca Maurice Merleau-Ponty, afirmam que não existe outra realidade para além do fenômeno e que a essência das coisas se manifesta, para a percepção, na aparência.
15
A autora se refere, principalmente, a Clement Greenberg.
16
SONTAG, Susan. Op. cit., p. 27; 29. Vale lembrar que teóricos da percepção, no que se destaca Maurice Merleau-Ponty, afirmam que não existe outra realidade para além do fenômeno e que a essência das coisas se manifesta, para a percepção, na aparência.
17
Idem, ibidem, p. 35.
18
Idem, ibidem, p. 36.
19
ARENDT, Hannah [1955]. Walter Benjamin. In Hombres en tiempos de oscuridad. Barcelona, Gedisa, 1992.
20
Idem, ibidem, p. 142.
21
Idem, ibidem, p. 149.
22
Idem, ibidem, p. 179.
23
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 224.
24
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte/São Paulo, Editora UFMG/ Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 502. Apud BUSSOLETTI, Denise Marcos. Fisiognomias: Walter Benjamin e a escrita da história através de imagens. Estudios Historicos — CDHRP, año II, n. 5, Uruguay, nov. 2010, p. 5.
25
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História (op. cit.), p. 224.
26
MATOS, Olgária Chain Feres [1995]. Amor e cidade, amor na cidade: Walter Benjamin. In História viajante — Notações filosóficas de Olgária Matos, São Paulo, Studio Nobel, 1997, p. 136.
27
BENJAMIN, Walter [1971], p. 58. Apud MATOS, Olgária Chain Feres. Op. cit., p. 146.
28
ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 150.
29
BENJAMIN, Walter. Passagens (op. cit.), p. 504. Apud BUSSOLETTI, Denise Marcos. Op. cit., p. 4.
30
MATOS, Olgária Chain Feres. Walter Benjamin: a citação como esperança. Revista Semear, n. 6, Cátedra Padre Antônio Vieira de Estudos Portugueses, 2002, p. 5 <https://bit.ly/4879ZKj>.
31
Scriffen, Benjamin II, p. 314. Apud ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 185.
32
RIBEIRO, Renato Janine. Imaginação e memória em Stendhal. Revista Tempo Brasileiro, Horizontes da Memória, n. 153, Rio de Janeiro, abr./jun. 2003, p. 87.
33
HEIDEGGER, 196. Apud ARENDT, Hannah. Op. cit., p. 186.
34
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7ª edição. São Paulo, Brasiliense, 1994, p. 167.
35
Idem, ibidem, p. 168.
36
Idem, ibidem, p. 169.
37
Idem, ibidem, p. 171–172.
38
Idem, ibidem, p. 188.
39
Idem, ibidem, p. 192.
40
Ver Amarcord. Direção Federico Fellini. França/Itália, 1973, 2h 7m <https://bit.ly/3GzZqnp>; <https://bit.ly/46P5wLd>.
41
WERFEL; Franz, 1935. Apud BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 177.
42
Italian Quattro Fogli Poster, Giuliano Geleng (1973). Posteritati, Nova York <https://bit.ly/47LCpKg>.
43
AVELLAR, José Carlos. Sonhadores do mundo todo, uni-vos. Cinema IMS RJ — Folheto, Rio de Janeiro, Instituto Moreira Salles, mar. 2012, p. 14 <https://bit.ly/3t57PMz>.
44
Idem, ibidem.
45
Cena do Transatlântico. Ver Amarcord (op. cit.), de 1h22’53” a 1h29’54 <https://bit.ly/3GzZqnp>.
46
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (op. cit.), p. 174.
47
Idem, ibidem, p. 187.
48
SONTAG, Susan. Op. cit., p. 29.
49
Idem, ibidem, p. 30.
50
DELOCHE, Bernard. El museo virtual. Colección Biblioteconomia y Administración Cultural. Gijón, Ediciones Trea, 2002, p. 81. Apud LARA FILHO, Durval de. Museu: de espelho do mundo a espaço relacional. Dissertação de mestrado. São Paulo, ECA USP, 2006, p. 79.
51
GADAMER, Hans-Georg [1975]. Verdad y método. Salamanca, Sígueme, 1977.
52
FELLINI, Federico. Fellini por Fellini. Porto Alegre, LP&M, 1983, p. 131. Apud KURTZ, Adriana Schryver; DORST, Aline Mascarello. A Memória do Fascismo em “Amarcord”, de Fellini (Notas sobre a política na obra de um grande mentiroso). 33º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, Caxias do Sul, Intercom, 2–6 set. 2010, p. 4 <https://bit.ly/482AnF2>.
53
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (op. cit.), p. 193.
54
Idem, ibidem, p. 193.
55
Idem, ibidem, p. 194.
56
Texto revisto em julho de 2012. Texto original de agosto de 2002. Apresentado no 7º Seminário Docomomo Brasil e III Projetar, Porto Alegre, 24–26 out. 2007.
57
ARANTES, Otília Beatriz Fiori. O lugar da arquitetura depois dos modernos. São Paulo, Studio Nobel/Edusp, 1993, p. 20.
58
Idem, ibidem, p. 28.
59
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (op. cit.), p. 193.
60
Projeto de restauro, reforma e adaptação do Edifício da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Arquitetos Paulo Mendes da Rocha, Eduardo Colonelli e Weliton Ricoy Torres. Projeto original do arquiteto Ramos de Azevedo, projetado e construído entre 1896 e 1900, para ser o Liceu de Artes e Ofícios.
61
VILLAC, Maria Isabel. La construcción de la mirada. Naturaleza, Discurso y ciudad en la arquitectura de Paulo Archias Mendes da Rocha. Tese de doutorado. Barcelona, Etsab UPC, 2002, p. 24.
62
MENDES DA ROCHA, Paulo. Depoimento a Maria Isabel Villac, mai. 1995 e jun. 2007. In VILLAC, Maria Isabel (org.). América, natureza e cidade. São Paulo, Estação Liberdade, 2012, p. 34.
63
ECO, Umberto [1958]. Op. cit.
64
OITICICA, Hélio. "Situação da Vanguarda no Brasil (propostas 66)". PHO 0248/66, nov. 1966. Arquivo digital disponibilizado pelo: Programa HO. LAGNADO Lisette (org.). Itaú Cultural, Projeto HO, São Paulo/Rio de Janeiro, 2002 <https://bit.ly/487emoH>.
65
MENDES DA ROCHA, Paulo. Op. cit., p. 44–45.
66
BARTHES, Roland. El placer del texto. 11ª edição. Madri, Siglo XXI, 1995. Publicação original: BARTHES, Roland.Le plaisir du texte. Paris, Éditions du Seuil, 1973.
67
BONDÍA, Jorge Larrosa. Op. cit., p. 22.
68
CARDOSO, Sergio. Op. cit., p. 249.
69
SONTAG, Susan. Op. cit.
70
BARTHES, Roland. Op. cit., p. 89. Grifo da autora.
sobre a autora
Maria Isabel Villac é arquiteta e doutora em Teoria e História da Arquitetura pela Universidade Politécnica da Catalunya. Professora na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie e líder do grupo de pesquisa Investigação Teoria-Projeto: Cultura-Sociedade.