Esta pesquisa busca refletir sobre um caminho pedagógico na arquitetura que valorize seu processo de conhecimento mediante diálogos corpóreos, poéticos, mobilizados no campo ampliado da arte e da arquitetura. Ao entender que o efeito de formação advém das associações entre a proposição de experiências e o que se constrói a partir delas, buscamos junto aos estudantes encontrar caminhos que despertem suas potencialidades criativas e críticas reconhecendo a corporeidade como fonte de saberes.
Neste sentido, como parte do trabalho de dissertação de mestrado “Encontro poético entre corpo e arquitetura: reflexões (ensaios) em busca da experiência” (1) — que tem desdobramentos em pesquisa doutoral em curso — ensaiamos uma abordagem de aproximação entre arquitetura e corpo, orientada a partir da potência da experimentação de pensamentos e processos entre arte e arquitetura (2). São enfatizadas conexões entre teóricos da arquitetura contemporânea e experimentos artísticos que investigam a possibilidade de construir um campo de estudo através da vivência do corpo e suas possibilidades de ação, problematizando a relação com os sentidos de espaço. Assim, entendendo a experiência enquanto um fenômeno relacional, buscamos no campo ampliado da arte e da arquitetura caminhos exploratórios, a partir da dança,que vão além dos limites tradicionais das disciplinas isoladas.
Neste artigo, apresentamos uma das práticas investigativas da pesquisa: a oficina “O que pode o corpo?” realizada em Inhotim MG com estudantes da graduação e pós-graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Rio de Janeiro — FAU UFRJ. O programa das ações foi concebido propondo quatro momentos: o encontro, o olhar que tateia, estrutura-ação e ação por nós; em nós. Cada etapa foi desenvolvida associando os conteúdos relacionados ao corpo a partir de bases fenomenológicas, com ênfase na crítica à hegemonia do sentido da visão em arquitetura e de bases da performance, entendo o corpo como agente criativo que participa e compõe a obra no presente.
O encontro
Com um grupo de dez participantes, iniciamos a oficina apresentando a intenção e finalidade, desmistificando a atividade corporal do virtuosismo comumente atrelado à dança, e a explorando enquanto um caminho de autoconhecimento, onde o participante é o agente principal da relação entre um corpo que, ao dançar, afeta e é afetado, produzindo uma narrativa própria e autônoma, independente de suas habilidades físicas. Sobre essa questão, o filósofo austríaco Arno Boehler em seu texto “What a body can do?” (3) escreve sobre como seria pensar através do movimento e não apenas na intencionalidade das ações. Para ele, um caminho para tentar responder essa pergunta seria pensar no movimento, no ato da ação, nos “microgestos” dando ênfase à “expressão da diferença” e permitindo entender o corpo ativado em suas relações de mudança e transformação. Ao entender que todas as ações situam-se no espaço e tempo, Boehler afirma que um corpo é capaz de mudar e transformar-se em relação às condições espaciais e temporais nas quais está inserido, porém a escolha para o momento de “fazer a diferença” deve ser individual e autônoma. Ou seja, solicitar que os participantes se colocassem à disposição do movimento, em um fluxo contínuo, teve o objetivo de acolher a mudança enquanto principal capacidade do corpo e meio para alcançar e descobrir novos limites. Estar em movimento constante, transitar entre pulsações e intensidades é nos conectar em vida.
Partindo deste incentivo, iniciamos uma experiência de ativação do corpo ao redor da obra Sem título (2000–2005) do artista plástico Edgar Souza. As três esculturas de bronze, locadas em uma base elíptica, representam figuras humanas em escala real que, num primeiro momento, provoca um estranhamento em relação a suas posições retorcidas. Ao observá-las, questionamos a verticalidade da postura humana, o padrão de corpo ereto, estável e em pé. Entretanto, um contato mais prolongado com a obra permitiu que, quase em uma relação mimética os participantes a apreendessem além da visão, entendendo que, embora a posição fosse semelhante a uma quebra, o movimento permanecia existindo; a obra acontecia no trânsito entre as posições. Desse modo, fazia-se necessário aceitar a mudança e a transição enquanto verbo inerente ao corpo.
Sobre a interação corpo e arquitetura, o arquiteto Juhani Pallasmaa afirma que:
“Durante o processo de projeto, o arquiteto gradualmente internaliza a paisagem, todo o contexto e os requisitos funcionais, além da edificação que ele concebeu: movimento, equilíbrio e escala são sentidos de modo inconsciente por todo o corpo, como tensões no sistema muscular e nas posições do esqueleto e dos outros órgãos. À medida que a obra interage com o corpo do observador, a experiência reflete nas sensações corporais do projetista. Consequentemente, a arquitetura é a comunicação do corpo do arquiteto diretamente com o corpo da pessoa que encontra a obra, talvez séculos depois” (4).
Iniciar por esta obra teve a intenção de explorar as potencialidades do próprio corpo, desconstruindo posturas naturalizadas e ativando-o para uma experiência relacional com a plasticidade arquitetônica e espacial — questionando também a força da forma e proposição de espaços rígidos; arquitetura e corpo — o corpo é capaz de se transformar e transformar a arquitetura.
Vale ressaltar que, no início do processo, dispor-se em círculo foi uma escolha importante para desenvolver as dinâmicas, uma vez que ao dançar compartilhamos nosso movimento com o espaço e com o outro, sendo preciso ter noção da amplitude espacial em que estamos inseridos e dos outros corpos que também constroem o espaço. Essa disposição espacial permite que questionemos posições hierárquicas, nos colocando, corporalmente, abertos ao diálogo e a trocas democráticas construtivas. Neste momento, foi relevante apresentar-se enquanto participante (também docente-participante), indivíduo capaz de compartilhar experiências através do olhar, da fala, do toque das mãos dadas, do movimento. Assim, o círculo agrega, distribui e permite que o movimento de expansão aconteça em raios, individualmente e como coletivo.
O arquiteto americano György Dóczi, quando relaciona os padrões harmônicos da natureza aos padrões da cultura e do comportamento humano através de forças que tecem a vida, explica que os padrões de compartilhar estão ligados à comunicação, seja através da fala ou do movimento. Para ele, “partilhar não é apenas uma arte ou um processo básico de formar padrões; é também uma condição de vida. Em cada respiração, em cada gole de água ou bocado de alimento, compartilhamos as riquezas da Terra” (5). Essa breve reflexão faz-se importante para se entender que os corpos abrigam relações diversas que, muitas vezes desconhecidas, se compartilham de modo “involuntário” através das experiências, das ações. Isso nos leva a perceber que, constantemente, nos encontramos em processo de troca com o outro através de movimentos partilhados, seja numa dança, seja numa respiração; somos relação.
Ainda durante este primeiro momento, foi preciso interromper a atividade devido à chuva e o grupo foi conduzido à galeria dedicada à obra True Rouge do artista Tunga, porém, ausente naquela ocasião. Relatar o acontecimento deste encontro não programado é interessante, pois a situação de encontrar abrigo na estrutura coberta e aberta de uma arquitetura com características modernas demonstrou sua capacidade de acolher corpos ativos enquanto obra artística. O espaço se tornou palco de ações que subverteram o contexto objetivo da contemplação de objetos e da priorização da visão.
Nesse sentido, vale aproximar o pensamento do arquiteto Bernard Tschumi quando apresenta a arquitetura reconhecendo “o valor do espaço vivenciado e da experiência na relação “de prazer” com a dimensão abstrata da arquitetura — espaço mental, conceitual” mas tendo “o corpo como juiz” , além de “canal da experiência”, corpo agente e desejante que constrói espaços através do movimento, que explora “a interação dos espaços com os eventos”, tal como um teatro compreendido como uma “sequência de eventos que podem se dar em um mesmo espaço” (6).
Portanto, a ocupação deste espaço foi uma oportunidade para se enfrentar, corporalmente, questões acerca da predominância da visão na arquitetura e seus limites e a possibilidade de reinvenção do próprio espaço a partir das ações dos participantes.
O olhar que tateia
Diante dessa compreensão, a oficina prosseguiu nas bordas da Galeria True Rouge buscando explorar um olhar que tateia e a apreensão do espaço de maneira multissensorial, ampliando o campo da experiência arquitetônica. Conectados através do olhar, das mãos dadas e do toque dos ombros instaurou-se um princípio ativo de troca, confiança e cumplicidade para as atividades que seriam desenvolvidas a partir daquele momento. Na sequência, foram realizadas apresentações por cada participante, em uma dinâmica usando-se o nome acompanhado de um gestual, trazendo ao círculo uma característica específica de cada participante, não enquanto código, mas como um traço corporal singular de ação no mundo. Essa ativação permitiu que fosse iniciado um diálogo entre fatores de semelhança e diferença, despertando pequenas atitudes no mundo interno de cada participante, capaz de ir além da apresentação habitual; era preciso se manifestar. Em seguida, ainda mantendo os olhares conectados, nos afastamos do toque físico e caminhamos calmamente pelo espaço, entrando em outra dinâmica de movimento e permanecendo com o olhar conectado e atento. Gradualmente, aumentamos a velocidade da caminhada expandindo o olhar para além do campo da visão acionando um corpo atento ao desvio, aos cruzamentos, aos encontros instaurados pelo movimento ágil e veloz. A intenção de trabalhar as velocidades foi estimular e provocar os participantes a saírem da disposição do conhecimento racional e entrarem na organicidade do acontecimento intensivo, sem ambição do controle do todo e focando na potencialidade da ação e da diferença. Uma curiosidade deste momento foi a linha criada no chão da galeria pela queda da chuva projetando o limite da platibanda. Seria a cobertura um limite? Seria a chuva — a água — outro limite? E a água do lago que demarcava o terreno da galeria? Onde encontramos nossos limites? Até onde estamos dispostos a enfrentá-los?
Nesta atividade, também se compreendeu, na percepção da tridimensionalidade espacial, que um percurso no espaço implica em desenhar pontos, linhas e suas infinitas combinações, tal como o coreógrafo Rudolph Laban (7) demonstrou em suas investigações no icosaedro e nos fatores de movimento. Para investigar as possibilidades de planos, velocidades, intensidades, direções ou peso, incitamos algumas perguntas: Como seria caminhar com os cotovelos ou com o calcanhar? Com quais partes do corpo podemos conduzir o movimento? Como transito entre posições? O que crio espacialmente através do meu corpo? Os mais variados estímulos devem ser compreendidos enquanto um processo de construção que implica na amplitude dos limites corporais que abrem possibilidades de interpretação e percepção do lugar. Não sabemos do que somos capazes!
Assim, durante a caminhada, que neste momento já se tornara corrida, foram propostas algumas pausas repentinas permitindo que os participantes percebessem sensorialmente o que estava reverberando: a pulsação, a temperatura, a respiração, o movimento dos participantes entre tantas outras relações que estavam articulando e criando aquele espaço arquitetônico de maneira autônoma e propositiva. Nesses encontros, nos quais os corpos exerciam liberdade de criação, a busca por um resultado específico não existia enquanto expectativa, e sim, enquanto uma tomada de consciência que coloca a presença e a manifestação da experiência e das intensidades do momento em primeiro plano. Partindo do princípio de que estávamos nos lançando no desconhecido, questionamos o que seria explorar um olhar que percorresse por toda extensão do corpo encontrando espaços, volumes, texturas, memórias ou afetos. A intenção era aguçar os sentidos para explorar o corpo através do olho que tateia e em diferentes escalas [micro: poros da pele; média: membros; macro: projeções], ou segundo Pallasmaa, pelos “olhos da pele”. Para o autor:
“A visão revela o que o tato já sabe. Poderíamos considerar o tato como o sentido inconsciente da visão. Nossos olhos acariciam superfícies, curvas e bordas distantes; é a sensação tátil inconsciente que determina se uma experiência é prazerosa ou desagradável” (8).
Assim, os participantes investigaram os detalhes da pele, sua porosidade e os espaços que não conseguimos visualizar, tal como as costas, através do toque com o pilar, parede ou chão, entre outros. Em seguida, foi proposto que esse mesmo olhar tateasse o corpo através das extremidades — membros inferiores e superiores; logo, o movimento ganhava expansão em diferentes vetores. Por fim, para alcançar a escala macro era preciso olhar para o espaço — encontrá-lo — em projeção. O olhar projetava-se para além dos limites físicos corporais e deparava-se com o espaço através do próprio corpo em movimento; o espaço era [minha] extensão, projeção.
Neste movimento de expansão, propusemos que os participantes, a partir do encontro espontâneo, se dividissem em dois grupos e juntos buscassem uma unidade corpórea. Neste momento foi interessante expressar através de palavras (e sonoridade das vozes) as imagens que suscitaram durante a experiência. Assim, cada participante sussurraria uma palavra e em grupo, de modo orgânico, escolheriam a que ressoasse com maior força expressiva sobre aquele momento. Foram elas: “intenso” e “ternura”. Segundo a artista Fabiana Monsalú:
“Todas as imagens geradas durante o percurso devem estar contidas no corpo e despejadas nos sussurros das frases [palavras] escolhidas. Partindo do princípio de que o corpo é imagem e memória, quando as palavras chegam à boca, o corpo todo já as deve tê-las dito. Elas são ditas por uma necessidade. É como aprender a falar novamente” (9).
Na tentativa de não afastar os acontecimentos instaurados, o silêncio em relação aos experimentos era imprescindível, pois comentários durante as atividades nos distanciam da condição de “presentidade” da experiência espacial, conforme conceito artista Robert Morris (10), e da potencialidade do acaso e indeterminação. Portanto, após o uso da palavra — que foi singularizado para ser valorizado — solicitamos que os participantes desfizessem os grupos, mantivessem o silêncio num estado de observação sobre os corpos que tinham sido construídos durante as dinâmicas. Quais relações foram criadas em relação ao espaço arquitetônico que vivenciamos? Os limites permaneceram os mesmos desde o início? Do que meu corpo é capaz? Após suscitar essas questões que nos auxiliaram na continuidade da oficina, fomos em direção da obra Invenção da cor do artista Hélio Oiticica.
Estrutura-ação
Nesta etapa da oficina, o nosso guia para a construção do corpo é o próprio trabalho de Hélio Oiticica. Escolher Oiticica não se dá pela legitimidade do seu trabalho, mas sim pelas possibilidades de experimentação. O trabalho A invenção da cor é compreendida como um elemento vivo que se manifesta em cores pulsantes agindo por camadas e atingindo o campo do sensível. Ao dispor superfícies planares em cores variadas pelo ambiente, o artista ressalta a emancipação de cada “cor-ativa” que se encerra em si e se recusa a pertencer a uma estrutura física. O “corpo da cor” é para Hélio o núcleo central da pintura, pois perpassa a representação e a estrutura retangular do muro, tornando-se temporal e criando em si sua própria estrutura em “duração silenciosa” [branco], em “pulsações ópticas”, em expansão [amarelo] ou em abertura da luminosidade pura [vermelho]. A obra sai do campo da contemplação e passa a ser a própria estrutura-cor no espaço e tempo (11).
Desse modo, o artista propõe romper com o limite do suporte estrutural defendendo a cor enquanto a razão de ser da obra. Para ele, os planos são dimensões além do limite, pois se organizam em tensões internas físicas e se completam ao encontrar as dimensões propostas por quem vivencia. Oiticica argumenta que uma obra de arte compreendida em sua dimensão temporal — movimento — transforma-se em eterno, fazendo com que o homem conecte-se ao mundo através do seu próprio tempo, transmitindo essa temporalidade à obra, e não apenas conciliando o tempo e o cotidiano (12). Em outras palavras, Oiticica assume que a estrutura é estática, mas o que lhe importa são as relações.
Ao pensar no movimento enquanto fator criativo, Oiticica integra a relação espaço e tempo no princípio ativo da obra, concebendo-a como um não-objeto e articulando um espaço tridimensional. Logo, as estruturas propostas pelo artista acontecem além da superfície em uma relação vital entre artista, espectador e obra; Oiticica constrói estruturas-ação que acontecem por corpos-em-vida, em luz, vibração e presença. Cor, estrutura, tempo e espaço são as quatro dimensões que se fundem em seu trabalho.
Desse modo, as dinâmicas propostas para estudantes de arquitetura na oportunidade da experiência da obra Invenção da cor tiveram a intenção de investigá-la a partir de ações, testemunhando o agora e criando núcleos provisórios a partir da relação entre corpos e espaços. Em meio ao labirinto de paredes, propusemos que os participantes explorassem brechas, camadas, texturas, sons, planos, cores, entre outros. A disposição labiríntica proposta por Oiticica incita que os visitantes a apreendam traçando caminhos diversos, às vezes desequilibrados, repetidos ou perdidos de vista, aproximando-os de uma dança que ainda mais ativa e transforma o espaço. Para conhecer um labirinto é preciso que nos lancemos à imprevisibilidade do porvir, acolhendo o acontecimento enquanto oportunidade de encontros e não necessariamente enquanto ato de perder-se, mas sim de vagar. Assim, os estudantes, impedidos de tocar na obra devido às restrições institucionais, lançaram-se na descoberta da expansão da cor através de possibilidades tangíveis instaurando um toque que atravessou a pele e criou novas tensões entre o corpo e a obra.
Em seguida, propusemos que criassem outros planos além dos propostos por Oiticica, com o intuito de ativar o corpo em relação ao espaço de maneira dinâmica e investigar outras possibilidades de ocupação. Notamos que, já inseridos no contexto da obra, eles desenvolveram planos que não apenas prolongavam os existentes, mas que se intersectavam e expandiam-se em movimento. Ou seja, a ideia da experiência espacial e temporal do labirinto independente dos planos pré-estabelecidos propostos por Oiticica ficou evidente nessa atividade, quando os participantes responderam aos estímulos enquanto proponentes e autores da própria obra/ação. O sentido de criação para Hélio estava na na criação de uma relação de afecto entre as pessoas e o mundo. E somos indivíduos interligados corporalmente. Nada é estável; somos diferentes e em constante mudança; em obra; em vida. Hélio nos lembra de que “de todos os re, não confundir reviver com retomar. O experimental pode retomar nunca reviver” (13).
Dada tal apreensão sobre a condição da experiência criativa enquanto vida, e proposição de vivências, um véu foi apresentado aos participantes como elemento possível para ampliar o seu campo de ação, tornando-o uma extensão — projeção — do movimento em um “corpo vivo”, tal como Oiticica comenta sobre a “estrutura-ação” dos Parangolés, uma “incorporação do corpo na obra e da obra no corpo” (14). O primeiro contato com o véu aconteceu em grupo e em círculo, percebendo de maneira tátil sua textura e transparência.
Neste momento, solicitamos que os participantes movimentassem o véu em ritmos diferentes, compreendendo o tempo do véu que paira de acordo com a força aplicada e desenha o rastro por onde passa. O encontro com o movimento, o gesto, era parte da exigência estruturante do véu trazendo flexibilidade, apoio, vento e acaso para os corpos. Explorar a obra através do véu foi um dos principais momentos da oficina onde os participantes expandiram-se em sensações de liberdade, potência, alegria, arrepios [palavras ditas pelos próprios] após repousarem o véu sobre o chão e refletirem sobre a corporificação do tecido que então, após intensa ativação a partir de gestos-dança, passou a descansar. Neste momento, os participantes sentiram-se à vontade para intitular-se enquanto artistas capazes de criar através do movimento, e assim fizeram: “Nós somos os artistas!”.
Ação por “nós”, em “nós”
Após a experiência na Invenção da Cor, a percepção corporal dos participantes em relação ao ambiente encontrava-se expandida e aberta para o encontro com a obra Cosmococa em seus “blocos-experiências” propostos por Hélio Oititica e Neville D´Almeida. Pensada enquanto um núcleo experimental, apresenta-se enquanto um espaço que propicia interações e investiga o comportamento humano. Escolher essa galeria enquanto local final da oficina teve como objetivo permitir uma emancipação corporal de plena apropriação, sem inibições buscando, entre “nós”, um corpo capaz de transgredir limites e amarras.
O percurso de Invenção da Cor até a galeria Cosmococa foi construído com o recurso de um elástico, onde os participantes conectaram-se e emaranharam-se uns aos outros, limitando seus movimentos e alcançando sensações de restrição e imobilidade. A intenção desta atividade foi evidenciar a sensação de aprisionamento enquanto ênfase da diferença, polarizando a liberdade conquistada até então e ressaltando a real necessidade de sentir-se desatado. Assim, caminhamos juntos e completamos o percurso entendendo as relações de tensão que nos unia, ativando uma maior atenção e cuidado em relação ao outro, uma vez que a expansão ou a limitação de um influenciava fisicamente no deslocamento do outro; não andamos sozinhos. Em seguida, encontramos uma maneira de nos desatarmos e ocupar o espaço em frente à galeria através da extensão do próprio elástico que, consequentemente, tornou-se extensão linear dos nossos corpos. Partindo dessa tensão, criamos um grande plano médio-horizontal e delimitamos um território possível para as atividades seguintes. Sobre os nós, as regras e as possibilidades de transgredi-las, Bernard Tschumi (15), provoca a seguinte reflexão:
“Veja o seguinte: o jogo de arquitetura é um jogo complexo com regras que você pode quebrar ou aceitar. Essas regras, como tantos nós que não podem ser desatados, têm o significado erótico da escravidão: quanto mais numerosas e sofisticadas as restrições,maior o prazer. Cordas e regras. A paixão excessiva sempre envolve um conjunto de regras. Por que não aproveitá-los?” (16).
Desse modo, a última proposta da oficina baseou-se em práticas que evidenciassem a expansão dos espaços internos do corpo, tal como a flutuação proposta pelo coreógrafo Ohad Naharin (17) em sua pesquisa “Gaga”. Neste momento, os participantes encontravam-se disponíveis e a favor do movimento, portanto esta etapa teve o objetivo de romper os limites de um corpo que já se reconhecia em movimento de expansão física e precisava entender que ainda podíamos romper novos limites. Desatados e com a musculatura em parte tensionada pela oposição da linha de força do elástico, iniciamos o exercício de flutuação como proposta para descobrir e liberar espaços internos. Propusemos, portanto, uma dinâmica ativada verbalmente pela imagem de uma bola de gude que perpassava pelos membros inferiores até o topo da cabeça, permitindo que escavássemos internamente cantos, extremidades, poros, articulações buscando levar movimento para onde se quisesse alcançar e desfrutar do prazer de sentir-se vivo.
É válido ressaltar que o elástico solto no gramado ainda em círculo configurou-se um limite espacial concreto, fazendo com que os participantes não o atravessassem durante a experiência. Essa circunstância nos fez entender como facilmente criamos limites que inibem a expansão do indivíduo. Se um elástico no chão limitou uma dança, questiono como a arquitetura pode limitar a autonomia das ações de quem a vivência.
Assim, para finalizar a oficina convidamos todos para uma última dança, referenciada na filosofia do enjoy it [aproveite], connect to the passion [conecte-se à paixão] do método Gaga (18), enquanto um ritual de encerramento importante onde alcançariam suas potencialidades de maneira espontânea, uma vez que seria a última dança da vida; de mover-se e expandir-se em essência vital. Aqui ao invés de nos mantermos vivos, cultivamos vida; vivemos. É preciso fazer-se vivo!
Por fim, as reverberações corporais dos participantes foram, finalmente, expressas em palavras: vida, felicidade, potência, ternura, intensidade, cansaço, respiração, prazer, gratidão, amor, coletivo. Neste momento, nos tornávamos cúmplices e firmávamos um compromisso: cultivar arquitetura não apenas através de corpos sensíveis, mas também a partir de corpos ativos, capazes e dispostos a transgredir limites, criar e reinventar os próprios espaços.
Considerações finais
Estas propostas de ações foram concebidas a partir da provocação de debates teóricos e da condição dos próprios espaços enquanto campo potencial para vivências — ensaios — capazes de fazer retornar à reflexão e à teorização no campo da arquitetura. Investigando a experiência corporificada entre arte e arquitetura, propusemos programas relacionais entre corpos e espaços — corpos e arquitetura ou simplesmente corpos — com o objetivo de contribuir para a formação em arquitetura e urbanismo. As atividades desenvolvidas nos limites entre dança e performance, a partir do potencial aberto pelo contato com as obras em Inhotim, ressaltaram os diversos encontros poéticos de um corpo-ação que, sensível à relação espaço e tempo, foi capaz de reconhecer que o espaço é vivido, e é o que meu corpo é capaz de fazer, ser.
Os movimentos realizados pelo grupo que se colocou disponível à experiência atestaram que o corpo presente — na condição da experiência de presentidade e de ação com os demais corpos — é o que conecta e dá sentido à própria arquitetura. Se a pretensão inicial desse trabalho era refletir a partir das experiências para abrir outros modos de pensar, fazer e aprender arquitetura, o que foi realizado em Inhotim reforçou a potencialidade dos encontros e suas consonâncias com debates contemporâneos na arquitetura.
No decorrer dessa experiência, a dimensão artística e criativa foi incentivada a partir da relação dos participantes com as obras e convocando a um olhar outro sobre os espaços e sobre a potência dos corpos para os quais se projeta. Assim, a experiência da oficina realizada, trouxe para este trabalho um significado profundo de que o corpo é um elemento ativo e protagonista na construção do espaço e, consequentemente, também o será no fazer arquitetura.
notas
NE — Este artigo foi originalmente apresentado no evento 7º Congresso Internacional de Arte, Ciência e Tecnologia e Seminário de Artes Digitais 2022 — Ciact07, ocorrido de 6 a 10 de junho de 2022.
1
SANTANA, Julia Delmondes F. de. Encontro poético entre corpo e arquitetura: reflexões (ensaios) em busca da experiência. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Proarq UFRJ, 2019.
2
ZONNO, Fabiola do Valle. Lugares Complexos, poéticas da complexidade: entre arquitetura, arte e paisagem. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2014.
3
BOEHLER, Arno. What a body can do? In MANNING, Erin (org.). The minor gesture. Durham, Duke University Press, 2016.
4
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele: arquitetura e os sentidos. Porto Alegre, Bookman, 2011, p. 63.
5
DOCZI, Gyorgy. O poder dos limites: harmonias e proporções na natureza, arte e arquitetura. São Paulo, Mercuryo, 2008, p. 29.
6
ZONNO, Fabiola do Valle. A poética de Bernard Tschumi como complexidade e a interpretação do contexto. Arq. Urb, n. 18, São Paulo, 2017, p. 66–68.
7
Laban, sensível aos limites dos movimentos, aprofundou sua pesquisa em relação à inscrição do movimento no espaço, seja nas orientações ou nas organizações harmoniosas relacionadas às regras de proporção, plástica, perspectiva e ritmo. GARAUDY, Roger. Dançar a vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, p. 118.
8
PALLASMAA, Juhani. Op. cit., p. 40.
9
MONSALÚ, Fabiana. O corpo híbrido do ator. Do treinamento à organicidade para outras possibilidades da cena. Segunda edição. São Paulo, Giostri, 2018, p. 77.
10
Para Robert Morris, “o modelo de presentidade, é a inseparabilidade íntima da experiência do espaço físico e daquela de um presente continuamente imediato”. MORRIS, Robert. O tempo presente do espaço. In FERREIRA, Glória (org.). Escritos de artistas: anos 60/70, v. 60, n. 70, 2006, p. 404.
11
SALOMÃO, Waly; FIGUEIREDO, Luciano; PAPE, Lygia (org.). Hélio Oiticica. Aspiro ao grande labirinto. Rio de Janeiro, Rocco, 1986, p. 45.
12
Idem, ibidem, p. 22.
13
OITICICA, Hélio. Experimentar o experimental. Arte em revista, n. 5, 1974, p. 50.
14
JACQUES, Paola Berenstein. Estética da ginga: a arquitetura das favelas através da obra de Hélio Oiticica. Rio de Janeiro, Casa da Palavra, 2007, p. 29.
15
TSCHUMI, Bernard. Architecture and transgression. Oppositions, v. 7, n. 57, 1976, p. 5.
16
“Look at this way: The game of architecture is an intricate play with rules that you may break or accept. These rules, like so many knots that cannot be untied, have the erotic significance of bondage: the more numerous and sophisticated the restraints, the greater the pleasure. Ropes and rules. The most excessive passion always involves a set of rules. Why not enjoy them?”. Texto original extraído do cartaz produzido pelo autor.
17
Reconhecido enquanto um dos coreógrafos contemporâneos de maior relevância internacional, Naharin desenvolveu no início da década de 1990 a linguagem de movimento intitulada Gaga, entendendo a energia do fluxo do movimento enquanto elemento principal para a construção de um corpo presente e comprometido com a autenticidade e a conquista de novos limites diários.
18
Gaga, o amor pela dança. Direção Tomer Heymann. 100min. YouTube, San Bruno, 15 ago. 2018 <https://bit.ly/3SY9VIK>.
sobre as autoras
Julia Delmondes Freitas de Santana é mestre (2019) e doutoranda em Arquitetura, na linha de pesquisa Teoria e Ensino da Arquitetura pelo Proarq UFRJ, com MBA em Direção de Arte pela Estácio de Sá. Atualmente é Conselheira Estadual do IAB RJ (triênio 2020–2023).
Fabiola do Valle Zonno é doutora e mestre em História Social da Cultura, na linha de pesquisa de História da Arte e da Arquitetura. Especialista em Comunicação e Imagem pela PUC Rio. Professora associada da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFRJ no departamento de História e Teoria e do Proarq UFRJ. Autora do livro Lugares complexos, poéticas da complexidade: entre arquitetura, arte e paisagem (FGV, 2014).