No ano de 1989, o escritório de arquitetura Office for Metropolitan Architecture, sob o comando do arquiteto holandês Rem Koolhaas, participaria de um importante concurso convocado pelo governo francês de François Mitterrand. A chamada demandava a construção de uma grande biblioteca localizada em um terreno às margens do rio Sena, em uma região onde predominavam torres residenciais construídas nas décadas de 1960 e 1970 (1). Embora o projeto vencedor do concurso fosse o do então jovem arquiteto francês Dominique Perrault, as discussões em torno do projeto de Koolhaas assumiram uma escala tão grande quanto a grandeza do edifício. Suponho que por dois motivos: o primeiro, atrelado a uma questão teórica-projetual do próprio arquiteto, a bigness ou a grandeza e, o segundo, consequência do gesto utilizado para conceber o projeto, a Estratégia do vazio.
Apesar de não ser o intuito deste ensaio se ater às questões ligadas à noção de grandeza, faz-se necessário mencioná-la, mesmo que brevemente. À vista disso, notava-se que determinadas condições atreladas à arquitetura e ao urbanismo vinham sendo alteradas desde a última metade do século 20, e em ritmo acelerado a partir da última década do mesmo período. Suas escalas assumiam dimensões incompreensíveis a ponto de, cada vez mais, negarem a coesão dentro de si como em uma enorme Torre de Babel. De certo modo, essas relações ressoavam não somente com a escala do projeto proposto, mas se manifestavam no interior deste e de outros projetos que o escritório trabalhava, naquele ano.
Por outro lado, a segunda questão refere-se ao gesto projetual utilizado pelo arquiteto que foi intitulado como Strategy of the Void ou Estratégia do vazio. Esta insólita manobra provocou discussões que se desdobram até os dias de hoje — três décadas após a convocatória do concurso, pois a concepção do projeto partia da ausência de arquitetura. Nesse sentido recorro ao livro do arquiteto, realizado em conjunto com o designer canadense Bruce Mau, S, M, L, XL no intuito de compreender o projeto e o gesto em questão (2).
S, M, L, XL não se trata apenas de um livro-portfólio dos projetos realizados pelo arquiteto e seu escritório, mas articula um conjunto de referências imagéticas e verbais que formam, ao lado dos projetos, o corpo da obra. As referências sugerem uma possível compreensão dos conceitos presentes nos discursos, nos projetos e no possível inconsciente dos projetos de Koolhaas. As imagens percorrem entre dois polos: um artístico como, por exemplo, as obras de Christo e Jeanne-Claude, Lygia Clark, Marina Abramović e Yves Klein; e um segundo que se funda em imagens do cotidiano, inclusive de cunho sexual.
As referências verbais, o que o arquiteto chama de dicionário de referências, trazem o significado de certas palavras atreladas a complexos conceitos, e ainda significados que beiram a banalidade. As alusões embaralham as esferas do erudito e do popular. Por isso, em dois distintos momentos, Koolhaas afirma que não se deve realizar uma leitura ortodoxa da obra, uma vez que a mesma contém doses de veracidade e doses não tão sinceras (3). Ainda assim, penso que ambas as referências, imagéticas e verbais, revelam um caminho a seguir no que concerne ao projeto da Biblioteca Nacional da França.
Strategy (estratégia), segundo o dicionário, está atrelado a uma passagem do filósofo Jean Baudrillard em sua obra The ecstasy of communication. No caso, a palavra é relacionada com a ausência e, consequentemente, com a ideia de mudança e possibilidade. Algo correlato à estratégia oriental das artes marciais de não almejar diretamente ao adversário, mas obliquamente, no intuito de atingir o “coração vazio e estratégico das coisas” (4).
Void (vazio), por outro lado, associa-se a dois significados: o primeiro é Avoid — evitar o sentido da palavra japonesa de vazio — e o segundo, uma definição que alude uma composição de argamassa descrita por Brian Pegg e Willian Stang no livro Plastering. De acordo com a última referência, os vazios existentes em uma mistura de argamassa devem ser preenchidos com um aglutinante, no intuito de obter uma matéria com consistência adequada para o uso (5).
Embora as descrições possam soar disparatadas em um primeiro momento, visto que a primeira noção (estratégia) se associa à ausência e ao vazio, e a segunda (vazio) à noção de preenchimento; ambas são reveladoras quando concatenadas ao projeto da biblioteca. Pois, o arquiteto concebeu o projeto do edifício como uma grande massa de informação, “um repositório de todas as formas de memória” (6), a partir da qual seriam escavados os espaços referentes ao programa das cinco bibliotecas. Em outras palavras, a estratégia de concepção dos espaços de acesso público foi definida pelo vazio, pela ausência de arquitetura.
Entretanto, ainda não se justifica a ideia de vazio atrelada a de preenchimento como visto no dicionário de referências. Minha hipótese é que a noção de preenchimento poderia ser compreendida como algo moldável, plástico. Ou seja, o vazio como uma massa que pode assumir qualquer forma. Apoio-me, primeiramente, na leitura das representações gráficas e nas maquetes físicas do projeto, dado que os espaços vazios do edifício são representados solidamente, ao passo que o restante do conteúdo programático é ocultado. Um ato instigante para a arquitetura, ao inverter e impor que o vazio fosse também sólido (7), e no caso da biblioteca assumindo a forma, por exemplo, espiralada, ovoide, cilíndrica e, até mesmo, moebiusiana. Passa-se, porém, ao projeto como um todo, no intuito de retornar posteriormente aos plásticos vazios no interior deste edifício.
As demandas projetuais delineadas pelo concurso deveriam responder, sumariamente, a duas condições: ater-se a um eixo preexistente que conectava o terreno a um parque em desenvolvimento na margem oposta do rio Sena, e manter a altura média da edificação em torno dos 35m, salvo exceções justificadas. A primeira proposta articulada por Koolhaas respondia a tais condições obedientemente, causando-o certa irritação (8). Os croquis ilustravam uma enorme edificação em forma de pódio, onde cinco distintas bibliotecas emergiram e afundavam deste volume. A volumetria do edifício não se tensionava suficientemente com a paisagem ao fundo e provocava percursos internos com cerca de um quilômetro de extensão. Outras propostas e estudos foram articulados, mas seria a partir de um antigo croqui, realizado para outro projeto, que a Biblioteca tomaria forma. Segundo Koolhaas, um dos croquis realizados para o Centro Arte e Tecnologia de Mídia de Karlsruhe engravidaria do projeto da Biblioteca Nacional da França (9).
A ideia central deste croqui — e agora do projeto da Biblioteca Nacional da França constituía-se na repetição das áreas tediosas referentes às zonas administrativas e de armazenamento, da qual seriam escavadas as os espaços das cinco bibliotecas. Diante disto, a atenção se voltava para a forma que as escavações ou os vazios assumiram no interior do projeto. Ao observar outros croquis, exibidos pelo arquiteto, nota-se a experimentação formal efetuada nesses espaços. Até o momento em que o diálogo entre as áreas escavadas e não escavadas começaram a se aproximar da atual imagem que se tem do projeto. O momento, segundo Koolhaas, deu-se a partir de um desenho realizado por Georges Heintz (10).
Os vazios — as bibliotecas — no interior do edifício respondiam a apenas algumas lógicas: localização, iluminação e circulação. As áreas de maior acesso se localizariam na parte inferior do edifício, visto que a projeção para o público diário seria de três a cinco vezes maior que no Centro Georges Pompidou — icônico edifício da década de 1970 projetado pelos arquitetos Renzo Piano e Richard Rogers. Em relação a iluminação, as bibliotecas se encontrariam mais ao centro ou próximas às fachadas de acordo com sua necessidade de luz natural. Por último, seria imperativo que cada área vazia fosse atravessada por ao menos um elemento de conexão vertical — os elevadores. Isto posto, o projeto contaria com um grupo de nove elevadores que atravessariam todos os espaços, vazios e cheios, e ainda com um grupo de escadas rolantes que serpenteariam os vazios.
O projeto da Biblioteca Nacional da França desenhava-se a partir de uma planta com dimensões de aproximadamente 75mx87m, impondo uma altura de quase 100m, o que era cerca de três vezes o limite estabelecido pelo concurso. Os programas acomodados em seu interior compunham-se de cinco bibliotecas independentes, áreas de armazenamento e acervo, áreas administrativas condensadas na fachada oposta ao rio Sena, e uma multiplicidade de ambientes na parte superior do edifício como uma piscina, um jardim e um restaurante.
O primeiro espaço interno apresentado pelo ensaio é o Great Hall of Ascension (grande salão de ascensão), o qual, devido a declividade do terreno em direção ao Rio Sena, encontrava-se cerca de 15m superior a base do edifício, dividindo o bloco em duas partes. Ao adentrar esse espaço de recepção, o público se depararia com uma enorme área vazia que se colocava entre duas superfícies de vidro: o piso e a cobertura. A materialidade desse espaço, em conjunto com os elevadores que reproduziriam determinadas palavras, textos e destinos de circulação, “dariam a impressão de que o prédio flutua totalmente apoiado no alfabeto” (11), ao passo que as bibliotecas internas flutuariam nesse espaço como “embriões múltiplos, cada um com sua placenta tecnológica" (12).
Cada biblioteca ou placenta tecnológica sustentava seu próprio conteúdo programático e, consequentemente, sua forma única. Nesse sentido, os espaços poderiam ser analisados em relação aos últimos aspectos mencionados, forma e função, e ainda a um terceiro aspecto. Este se refere ao conteúdo imagético, contido na obra S, M, L, XL, que Koolhaas elege para relacionar com cada um dos espaços. Os vazios ou as cinco bibliotecas são referidos como: Pebbles (seixos), Intersection (interseção), Spiral (espiral), Shell (concha) e, por fim, o Loop (volta).
Os seixos abrigavam a Biblioteca de Imagem e Som. Quatro espaços em formato ovoide compostos por auditórios, sala para conteúdos audiovisuais e uma cinemateca, que guardaria todos os filmes e vídeos realizados desde 1940. Esses seixos encontravam-se embutidos em um pódio sob o Grande Salão de Ascensão e possuíam, cada qual, determinada relação com essa base. Um a perfurava, outro a tensionava como se prestes a romper o piso desse salão, e os dois últimos incrustavam-se em seu interior. Para além das conexões que esses espaços possuíam entre si, o maior deles se encontrava em contato direto com exterior do edifício e com o grande salão de ascensão, por meio de uma considerável rampa.
Duas são as imagens escolhidas por Koolhaas para tensionar com os espaços dos seixos. Uma foto da mão de Cristo na Pietá [1498-1499] de Michelangelo di Lodovico e uma fotografia com muitas pessoas no interior de uma arena. Friso que a análise a seguir e todas as posteriores, no que se referem a escolha imagética de Koolhaas, serão de cunho subjetivo. Suponho que a última imagem faz uma analogia direta com a quantidade de visitantes que esses espaços receberiam, como em um grande espetáculo. Porém, a imagem da mão de Cristo se articula de modo mais ambíguo. Penso que há uma aproximação gestual entre a maneira em que Michelangelo produziu sua obra, a Pietá, e a estratégia projetual utilizada pelo arquiteto, a Estratégia do vazio.
Recorro ao historiador de arte Giulio Carlo Argan para realizar a leitura. Nas palavras do crítico, “o pensamento artístico de Michelangelo reside inteiramente nessa contradição inevitável do criar que é destruir" e continua, “a imagem — ou conceito, ideia — tanto mais adquiri forma, ou cresce, quando mais a pedra — ou a matéria — é destruída” (13). Diferenças à parte, Koolhaas também concebia os vazios nesse projeto a partir da subtração de matéria. Quanto mais se retirava a matéria, mais os vazios — as bibliotecas — tomavam forma. Relações gestuais que poderiam ser exploradas e investigadas em outro momento.
O segundo vazio, a interseção, encontrava-se sobre o Grande Salão e abrigava a Biblioteca de Aquisições Recentes. A forma do espaço provinha do cruzamento de dois vazios, um na forma de um cilindro delicadamente achatado e inclinado, e outro na forma retangular e horizontal. Ambos acolhiam, respectivamente, uma cinemática, no formato de um auditório contínuo, e salas para leituras. O cruzamento perpendicular entre os vazios, porém oblíquos em relação ao edifício, fazia com que esse espaço fosse compreendido, em planta, como uma enorme cruz rotacionada. Cada vazio possuía relação direta com ao menos duas fachadas distintas, conduzindo assim a luz para o interior do espaço.
As imagens que Koolhaas elege para acompanhar a representação desses espaços são três, porém apresento apenas duas: uma fotografia de Bertrand Lemoine do Túnel do Canal da Mancha, e o desenho da Biblioteca Nacional projetada por Etienne-Louis Boullée. Penso que, devido as proporções longitudinais do espaço, a Biblioteca de Aquisições Recentes fosse também como um longínquo túnel conectando Paris à Paris. O espaço interior se ampliaria vertiginosamente a partir da relação entre luz e sombra. Qualidade e gesto antes utilizados pelo arquiteto neoclássico Etienne Boullée em sua Biblioteca e em outros espaços.
Suponho que o interior de um segundo espaço de Boullée, o Cenotáfio de Newton, poderia ser válido para apresentar para a terceira biblioteca. Afinal, para tensionar com esse novo espaço, Koolhaas elege imagens espiraladas que transitam entre os domínios terrestres e celestiais. Da Spiral Jetty (1970) de Robert Smithson a uma imagem de um corpo celeste do Observatório de Carnegie, o arquiteto passa antes pelo Concetto Spaziale (1949) de Lucio Fontana. As imagens espiraladas reforçam a própria forma e o programa do espaço que seria desenvolvido no próximo vazio: a Biblioteca de Referência ou a Espiral.
Koolhaas formaliza volumetricamente a terceira biblioteca a partir de um espaço em forma de rampa espiralada. Eram ao todo três rotações relacionando-se com cinco diferentes pisos do edifício, sendo que, na última revolução, o espaço prolongava-se até uma das fachadas. A Espiral abrigava o acervo aberto e os espaços de estudos, onde a cada revolução espacial um novo tema era abordado, como visto através da seleção de referências imagéticas feitas pelo arquiteto. A circulação interna, para além dos elevadores, desenrolava-se por meio de sua forma, e, ainda através de escadas rolantes que o conectavam com a biblioteca anterior e o próximo espaço, que será apresentado a seguir.
A Concha, ou a quarta biblioteca, encontrava-se em relação direta com a fachada voltada ao Sena a partir de uma enorme abertura, como um olho que observa Paris. Seu formato ovoide se colocava entre o vazio espiralado da Biblioteca de Referência e o vazio moebiusiano da Biblioteca Científica. Esse espaço abrigava a Biblioteca de Catálogos, sendo que o maior deles seria a própria cidade, a biblioteca definitiva (14). A imagem que Koolhaas articula com a representação desse espaço é retirada do livro Information Anxiety, de Richard Saul Wurman, e ilustra numerosos ícones de cachorros. Os pequenos desenhos demonstram o pensamento do autor de que se pode obter novas informações apenas organizando e categorizando determinados elementos de forma distinta. Não seria essa a função de uma biblioteca de catálogos?
O último espaço escavado, a Biblioteca Científica ou o Loop, abrigava o mais plástico dos vazios. Segundo Koolhaas, a partir do 17º pavimento se desdobraria um complexo espaço que viraria do avesso através de um looping” (15). O piso se tornaria teto e parede em um movimento contínuo como uma superfície topológica. A Biblioteca Científica abrigava um espaço para pesquisa e sua forma seguiria a função. Ou seja, um espaço destinado a descobertas e inovações deveria também responder espacialmente a essa implicação. O vazio manifestava-se através de uma forma moebiusiana, ocupando o espaço entre duas fachadas opostas, mas passando antes pela cobertura. No seu interior havia salas para pesquisas e conferências, e, próximo ao momento de sua curvatura, um café e um salão para o convívio.
A única imagem que o arquiteto tensiona com este espaço é retirada do livro The Universe de David Bergamini, ilustrando um looping que se desdobra na superfície de um astro. Koolhaas afirma que, de todos os vazios presentes no edifício, esse continha “os espaços mais experimentais” (16). Penso que a plasticidade do vazio se faz em seu ápice, um espaço topológico no interior de uma arquitetura euclidiana. Uma forma que somente se materializa através da ausência de matéria.
Visto a singularidade formal e programática que essas cinco bibliotecas sustentavam, há dois problemas, segundo o próprio Koolhaas, que se desdobravam como consequências diretas: a primeira em relação ao invólucro desse “conjunto bizarro” (17), a segunda em relação ao sistema construtivo que sustentaria os espaços cheios e os vazios. Começando pelo invólucro, deve-se rememorar que o edifício analisado lidava com quatro fachadas. A primeira, oposta ao Rio Sena e adjacente à área que condensava o programa administrativo, seria a única a remeter a “imagem de um edifício” (18). As demais fachadas, devido a sua materialidade (isto é, ao vidro), articulariam um movimento entre o revelar e o ocultar as espacialidades internas. O vidro possuiria diferentes graus de transparência e opacidade, tendo ainda serigrafia em sua superfície com “determinados padrões irregulares na coloração branca” (19). Segundo Koolhaas, buscava-se produzir a impressão de “um efeito da natureza, no que concerne seu caráter informe e mutante” (20).
O crítico de arquitetura Anthony Vidler fez uma análise do edifício a partir da discussão da transparência articulada pela fachada. Para o crítico, grande parte dos projetos realizados naquele momento na França contradiziam-se, pois buscavam um revivalismo da transparência modernista, ao mesmo tempo que buscavam apagar a monumentalidade dos edifícios. No entanto, o projeto de Koolhaas realizava concomitantemente "uma confirmação da transparência e sua crítica complexa” (21). Visto que, devido aos vazios internos, a própria translucidez do vidro transformava-se em escuridão e obscuridade; tendência do material que, segundo Vidler, os modernos buscavam refletir e que os pós-modernos jogavam a partir de “superfícies de simultaneidade e sedução” (22). A tridimensionalidade dos vazios, ainda segundo o crítico, manifestava-se na fachada de forma ambígua e achatada, criando um estado de ansiedade ao permitir uma aproximação, mas não uma penetração no espaço.
Penso que o aspecto formal da obra Atrabiliários (1993), da artista colombiana Doris Salcedo, ajuda a compreender o efeito descrito por Vidler. Mas friso que apenas articulo o aspecto formal e material desta obra, pois nela há ainda uma complexidade conceitual e temática que não pode ser relacionado com o projeto da biblioteca. O trabalho consiste em uma série de escavações retangulares na parede, onde em seu interior encontram-se pares de sapatos pertencentes às pessoas desaparecidas no interior da Colômbia. Sobre a superfície desse vazio, uma fina película de bexiga é esticada e fixada na fronteira entre a parede e a escavação. A imagem que se obtém através da película, do objeto tridimensional no interior do vazio, é planificada e dúbia. Seu aspecto é de uma imagem em desvanecimento que nos convida a uma aproximação, embora não permita uma compreensão total do espaço que ali se encontra. A fina película modifica a compressão espacial, embora não altere a existência da mesma.
Retomando o projeto da Biblioteca Nacional da França, apresento o segundo impasse deste grande edifício: seu sistema estrutural. De acordo com Koolhaas, havia dois princípios inerentes aos grandes edifícios que se desdobravam como consequência direta de sua altura e profundidade — distância entre o centro e a fachada do edifício. À medida que a altura de um edifício aumenta, há “uma redução sistemática de liberdade” (23) em sua parte inferior. Em contrapartida, quanto maior é a profundidade do edifício, “mais ele depende das instalações mecânicas” (24). Nesse sentido, se fossem consideradas todas as instalações para o seu funcionamento, a altura do edifício chegaria a quase 200m. Koolhaas afirma, então, que as áreas ou zonas obscuras destinadas para passagem de dutos e instalações deveriam ser exiladas do edifício quando vistas em seção.
Atrelados a esse problema, se fosse considerado um sistema convencional de pilares para suportar os cheios e os vazios, o Grande Salão de Ascensão se transformaria em uma floresta contendo cerca de 225 pilares. Por outro lado, se fosse utilizado um sistema de viga vierendeel, a espessura da viga, transgrediria os espaços vazios. Respondendo as questões impostas pela altura, profundidade e vazios, desenvolveu-se um sistema de paredes-estruturais. Essas colossais paredes-vigas de concreto, segundo os escritos de Koolhaas, teriam cerca de 2m de espessura e estariam dispostas em um intervalo de 12,5m. No total, o interior da biblioteca contaria com cinco paredes-estruturais que atuariam também como shafts, por onde passariam todas as instalações do edifício (25).
Considero que as soluções adotadas nesse projeto, como consequência a Estratégia do vazio, resultariam em um dos mais expressivos conjuntos de desenhos projetuais. Uma vez mencionada a seção do edifício, observa-se uma curiosa correspondência espacial entre as seções e as plantas do projeto. Segundo Koolhaas, no projeto da Biblioteca Nacional da França, “a planta= a seção” (26). Contudo, argumento que essa ação é, também, alcançada através do estilo de representação gráfica adotado pelo arquiteto. Pois, ao ocultar os espaços cheios da Biblioteca Nacional da França sob uma única cor (preto), e revelar as particularidades do espaço vazio na ausência da cor (branco), os desenhos articulam um paradoxo. Estabelece-se uma correspondência entre a planta e a seção, ao mesmo tempo que se provocam distúrbios na compreensão entre os espaços nos eixos vertical e horizontal do projeto. Condição, suponho, que poderia remeter aos espaços do arquiteto e artista Giovanni Battista Piranesi.
Neste sentido, resgato a leitura do filósofo Nelson Brissac Peixoto, com o propósito de estabelecer uma aproximação entre ambos os espaços, os de Piranesi e o da Biblioteca Nacional da França. Segundo o filósofo, há um grau de complexidade e dificuldade nas arquiteturas de Piranesi, pois seus desenhos são “uma montagem descontínua de formas, citações e memórias” (27). O “arquiteto perverso” (Piranesi), segundo Peixoto, busca ocupar um “espaço vazio que não pode ser representado” e continua, “cada planta é uma imagem de uma edificação não sintetizável, inexistente” (28).
Cogito que poderia se realizar uma leitura similar das especialidades internas da Biblioteca de Koolhaas, bem como de cada uma das representações que acompanham o projeto. Pois, embora se tenha uma homogeneidade no espaço final do projeto, a relação estabelecida entre cada um dos espaços internos é heterogênea, à medida que se transforma no eixo horizontal e vertical. Cada seção ou planta representa um espaço independente, condição que se desdobra por meio dos vazios.
Peixoto também refletiria acerca deste projeto de Koolhaas, apresentando um tensionamento imagético com os espaços internos do edifício, a partir da análise do filósofo Fredric Jameson, contida em seu texto Os limites do pós-modernismo (29). A aproximação se estabeleceria entre os vazios da Biblioteca Nacional da França com os elementos presente na obra do artista Salvador Dalí. É dito que a “flutuação” dos espaços internos implicavam numa “ausência radical de chão, de perspectiva e imbricação” (30). Consequentemente, os elementos internos desse espaço escapavam entre si como em “levitação livre, semelhantes aos últimos Cristos de Dali, pendurando-se das cruzes em que estão pregados” (31).
Penso, no entanto, que a relação imagética de Salvador Dali com os espaços vazios da biblioteca, evocaria uma outra estratégia representacional ainda não abordada: as maquetes físicas do projeto. Se determinadas obras surrealistas de Dalí, aparentam estar em um constante derretimento e amorfização das formas, Koolhaas buscaria o derretimento total de determinados espaços, para realizar as maquetes físicas da Biblioteca Nacional da França. Os modelos, sem grandes pormenores, representariam o projeto em duas condições distintas: a primeira, substanciando os espaços cheios, a segunda, substanciando os espaços vazios. Em relação à segunda condição, Koolhaas diz: “o que é sólido derreteu, o que é vazio flutua como um objeto no nada” (32). As maquetes dos sólidos vazios representavam, ainda segundo o arquiteto, os espaços internos de modo que jamais poderiam ser vistos, como uma “arquitetura informe” (33).
Talvez as maquetes representassem uma reflexão da própria condição da arquitetura no final do século 20. Em dois momentos distintos — no manifesto da Bigness, como nos textos que acompanham o projeto da Biblioteca Nacional da França — Koolhaas expõem que em uma época em que a revolução eletrônica parecia desmanchar tudo o que era sólido, a arquitetura seria o primeiro dos sólidos a se dissipar (34). A passagem do arquiteto é constituída, segundo ele mesmo, a partir de “uma colagem de argumentos recolhidos desde os anos 1960 por sociólogos americanos, ideólogos, filósofos, intelectuais franceses, cibermísticos etc.” (35). Entretanto, reflito que a colagem de Koolhaas tem como elemento principal as reflexões e a obra do filósofo e escritor Marshall Berman.
Gostaria, no entanto, de ater a questão da arquitetura informe provocada pelas maquetes dos sólidos vazios. Seria interessante resgatar a aproximação, realizada pelo crítico e curador Guilherme Wisnik, entre os vazios da biblioteca de Koolhaas e a obra do anarquiteto Gordon Matta-Clark. Relação que se articula através da leitura de informe do escritor francês Georges Bataille. Porém, o crítico pontua que embora a análise formal tenha um papel importante na aproximação, a mesma se sobressai no “caráter operativo” (36). Os cortes anatômicos realizado por Matta-Clark em edifícios abandonados na década de 1960 e 1970, como em Office Baroque (1977) e Circus or The Caribbean Orange (1978), segundo Wisnik, são “capazes de encarnar o niilismo escatológico de Bataille ao atacar edifícios abandonados, em operações de subtração que desmontam a linguagem da arquitetura e, por consequência, a ilusão de unidade e uniformidade por ela criada” (37).
Há como, bem pontua o último, um embaralhamento espacial que transforma a nossa compreensão cartesiana do espaço (38). Assim como, se analisarmos as plantas e as seções da Biblioteca Nacional da França, em especial, a representação intitulada, Superimposition of voids (sobreposições dos vazios). Penso, no entanto, que a aproximação de Wisnik se sustenta no caráter tanto operativo quanto formal, devido à uma fala de Koolhaas ao filósofo John Rajchman. Nesta fala, o arquiteto revela o fascínio que tinha com a obra de Matta-Clark, pois suas obras poderiam ser vistas como uma das primeiras manifestações da potência que reside na ausência. Na opinião de Koolhaas, o gesto do anarquiteto em edifícios, não só, se comparava ao gesto de Lucio Fontana nas telas, mas poderiam remeter, inconscientemente, a algumas noções aplicadas à Biblioteca Nacional da França(39).
Como visto anteriormente, foram muitas as leituras cruzadas entre o projeto da biblioteca e as outras disciplinas, em especial, no campo das artes. No entanto, busco uma última articulação entre as disciplinas para refletir acerca da imagem que o próprio arquiteto elege para tensionar com a Estratégia do vazio. A imagem no livro S, M, L, XL que introduz o projeto da Biblioteca Nacional da França tem um explícito caráter sexual e, tudo indica, que se relaciona diretamente a uma questão de ocultamento de determinadas partes, uma censura. Penso que o arquiteto busca ironicamente indagar o que nos revela o uma área tida como vazia ou recortada. Busco, porém, analisar esse projeto com uma imagem distinta da escolhida pelo arquiteto, mas que também se encontra no interior da publicação. Segundo Koolhaas, as referências que acompanham os projetos podem ou não conter doses de veracidade, ao passo que as referências artísticas encontradas ao longo de toda a obra fazem parte do imaginário de seus projetos.
É importante, todavia, realizar uma pequena divagação, antes de indicar a imagem. O arquiteto menciona, ao crítico de arte Jean François Chevrier, que um determinado tipo de arte influenciou na sua formação, dando-lhe um sentido de experimentação (40) E ainda expõe, ao Instituto de Arte de Chicago, o impacto na sua juventude de determinadas exposições realizadas no Museu de Stedelijk, em Amsterdam (41). Entre elas, Koolhaas menciona a mostra realizada pelo Grupo Zero, marcando-o profundamente. Eram artistas que lidavam radicalmente com a estética do imaterial. Lembremos que se encontram em S, M, L, XL imagens de trabalhos produzidos por Yves Klein e Lucio Fontana, que participaram do referido grupo.
Penso que não seria incoerente tensionar o projeto da Biblioteca Nacional da França com uma imagem, ao final de S, M, L, XL, que ilustra duas mãos manipulando um saco plástico contendo ar e que, por sua vez, sustenta uma pedra em sua superfície. A imagem pertence à artista brasileira Lygia Clark e a obra é intitulada Pedra e Ar (1966). A obra de Lygia Clark, a meu ver, articula às avessas com a estratégia do vazio, pois, o gesto que comprime o ar, o nada, ou o cheio no caso de Koolhaas, é o mesmo que sustenta a pedra, a massa, o vazio. Mas poderia se realizar um tensionamento direto entre a obra da artista e um dos modelos mais expressivos do projeto de Koolhaas. A maquete dos sólidos vazios sustenta-se no nada como pedras, objetos, justamente, a partir de um gesto de uma estratégia projetual. Embora possa parecer uma relação ingênua, Koolhaas explícita para Jean François Chevrier que a obra de certos artistas brasileiros, como Lygia Clark e Hélio Oiticica, é de extrema importância para ele.
Koolhaas afirma que há um impulso artístico em seus vazios (42), pois são espaços que, ao contrário da arquitetura, requerem “a supressão de toda opressão” (43), atitude mais afim com as artes. Talvez, por esse motivo, Grupo Zero, Lygia Clark, Yves Klein, Jean Tinguely despertem sua atenção. Afinal, lidam com a supressão de opressão e, em alguns casos, a supressão do próprio material. Para Koolhaas, “o vazio é uma qualidade importante completamente ignorada, especialmente pelos arquitetos” (44), embora não o seja em seus projetos e pensamentos. A meu ver, a presença dos vazios em seus discursos e projetos é uma das razões pela qual devemos revisitar sua obra. O vazio na obra do arquiteto holandês é plástico, sólido, mutável, espiralado, ovoide, cilíndrico e moebiusiano. É pedra, cruz e o nada. É a não arquitetura. Porque, para Koolhaas, “onde não há nada, tudo é possível; onde há arquitetura, nada mais é possível” (45).
notas
1
KOOLHAAS, Rem. Conversa com estudantes. Barcelona, Gustavo Gili, 2002, p. 21.
2
Embora não se utilize da análise do pesquisador e professor Gabriel Girnos Elias de Souza, vale mencionar que sua pesquisa se pauta na leitura do discurso e produção gráfica de renomados escritórios de arquitetura e urbanismo. Em seu texto “A monografia como manifesto, ou o lugar estratégico do livro impresso na arquitetura contemporânea” (2020), o autor irá explorar obras como S, M, L, XL; Event-Cities: Praxis (1994) de Bernard Tschumi; Farmax — Excursions on Density MVRDV (1998), de Wilhelmus Maas, dentre outros. Ver SOUZA, Gabriel Girnos Elias de. A monografia como manifesto, ou o lugar estratégico do livro impresso na arquitetura contemporânea. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 244.01, Vitruvius, set. 2020 <https://bit.ly/4bS6VUX>.
3
KOOLHAAS, Rem; WHITING, Sarah. A Conversation between Rem Koolhaas and Sarah Whiting. Assemblage, n. 40, The MIT Press, 1999, p. 36-55, JSTOR <bit.ly/4bS6VUX>; AA SCHOOL OF ARCHITECTURE. Rem Koolhaas — S, M, L, XL [Lecture date: 1995-11-29]. YouTube, San Bruno, 5 mai. 2015 <https://bit.ly/48yXlDR>.
4
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. S, M, L, XL. 2ª Edição. Nova York, The Monacelli Press,1998, p. 1186.
5
Idem, ibidem, p. 1280.
6
Idem, ibidem, p. 616.
7
Em relação à possibilidade arquitetônica de compreender o espaço vazio solidamente, seria relevante destacar a leitura do historiador Otavio Leonidio acerca do projeto da Fundação Iberê Camargo, de Álvaro Siza. Embora se observe uma diferenciação entre os gestos de Koolhaas e Siza, visto que o primeiro utiliza de uma subtração para formalizar os vazios e, o segundo, uma positivação, ambos os projetos apresentariam uma leitura distinta desta espacialidade. Essa que ressoaria com o campo artístico. Ver LEONIDIO, Otavio. Álvaro Siza viera outro vazio. In Espaço de risco. São Paulo/Austin, Romano Guerra/Nhamerica, 2017, p. 56-84.
8
KOOLHAAS, Rem. Presentation of Très Grande Bibliothèque [Lecture date: 01-15-1989]. OMA <https://bit.ly/49s5Q4F>.
9
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. Op. cit., p. 626.
10
KOOLHAAS, Rem. Presentation of Très Grande Bibliothèque (op. cit.).
11
KOOLHAAS, Rem. Conversa com estudantes. Op. cit., p. 21.
12
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. Op. cit., p. 616.
13
ARGAN, Giulio Carlo. Matéria e furor. In Clássico anticlássico: o Renascimento de Brunelleschi a Bruegel. São Paulo, Companhia das Letras, 1999, p. 314. Grifo da autora.
14
KOOLHAAS, Rem. Conversa com estudantes. Op. cit., p. 27.
15
Idem, ibidem, p. 28. Grifo da autora.
16
Idem, ibidem.
17
Idem, ibidem.
18
KOOLHAAS, Rem. Bibliotheque de France. El croquis, n. 53, Madrid, 1992, p. 74.
19
Idem, ibidem.
20
KOOLHAAS, Rem. Conversa com estudantes (op. cit.), p. 28.
21
VIDLER, Anthony. The Architectural Uncanny: Essays in the Modern Unhomely. Cambridge, The MIT Press, 1992, p. 221.
22
Idem, ibidem, p. 223.
23
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce.O. cit., p. 663.
24
Idem, ibidem.
25
Idem, ibidem, p. 673.
26
Idem, ibidem, p. 622.
27
PEIXOTO, Nelson Brissac. Distância — arquitetura dos limites. In Paisagens Urbanas. São Paulo, Editora Senac São Paulo, 2003, p. 363.
28
Idem, ibidem, p. 361.
29
JAMESON, Fredric. Os limites do pós-modernismo. In GAZZOLA, Ana Lúcia Almeida (org.). Espaços e Imagem: Teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 2004, p. 197-262.
30
Idem, ibidem, p. 366.
31
Idem, ibidem.
32
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. Op. cit., p. 648.
33
Idem, ibidem, p. 638.
34
Idem, ibidem, p. 507.
35
KOOLHAAS, Rem. Três textos sobre a cidade: Grandeza, ou, O problema do grande; A cidade genérica; Espaço-lixo. São Paulo, Gustavo Gili, 2014, p. 21.
36
WISNIK, Guilherme. Dentro do Nevoeiro: arquitetura, arte e tecnologia contemporâneas. São Paulo, Ubu, 2018, p. 199.
37
Idem. O “informe” a partir de Matta — Clark e Rem Koolhaas. Concinnitas, n. 9, Rio de Janeiro, UERJ, 2008, p. 34.
38
WISNIK, Guilherme. Op. cit., p. 201.
39
RAJCHMAN, John. Thinking Big. ArtForum, n. 4, 102, New York, dez.1994, p. 99.
40
KOOLHAAS, Rem. Changement de dimensions. Entrevista concedida a Jean François Chevrier. L’Architecture d’Aujourd’hui, n. 361, Paris, nov./dez. 2005, p. 88-97.
41
THE ART INSTITUTE OF CHICAGO. Virtual Conversation: Rem Koolhaas/Exhibition Making. YouTube, San Bruno, 22 jun. 2021 <https://bit.ly/3UVz7QN>.
42
KOOLHAAS, Rem. Conversa com estudantes (op. cit.), p. 61.
43
Idem, ibidem.
44
Idem, ibidem.
45
KOOLHAAS, Rem; MAU, Bruce. Op. cit., p. 199.
sobre a autora
Julia Paglis é arquiteta e urbanista pela Universidade Federal de Juiz de Fora (2020). Atualmente é mestranda no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da FAU USP, vinculado à Área de História e Fundamentos da Arquitetura e do Urbanismo.