A cidade de Ouro Preto, em Minas Gerais, é reconhecida pelo seu patrimônio edificado como Patrimônio Cultural da Humanidade. Foi um dos primeiros bem tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional — Iphan em 1938. Este artigo apresenta o recorte de análise da Procissão da Ressureição da Semana Santa de Ouro Preto. Essa festa é uma manifestação cultural que representa a identidade da comunidade local, juntamente com outras festividades importantes, como a Festa do Reinado, o Carnaval de rua, Corpus Christi e o Festival de Inverno.
Para entender a construção cultural da Semana Santa e suas relações com a cidade, é preciso voltar a um evento marcante na história de Ouro Preto, a festa do Triunfo Eucarístico no início do século 18, que influenciou a configuração das festas subsequentes (1). A grandiosidade dessa festa inspirou outras duas festividades posteriores em Minas Gerais no mesmo século, o Áureo Trono Episcopal (1742) e o Desposório do Infante Português (1786). Observamos que essa tradição barroca foi perpetuada, carregando a presença de ornamentações nas ruas, cortejos com alegorias simbólicas, entre outros elementos, que ainda podem ser notados nas festividades atuais, como a Semana Santa e o Carnaval. As festividades religiosas e profanas têm fortes laços culturais, políticos e sociais, especialmente em Minas Gerais.
Como assinala Leila Aguiar (2), as manifestações e expressões culturais, como a Semana Santa, também se tornaram objeto de interesse turístico, além de sua essência religiosa ou cultural para a comunidade local. Podemos correlacionar essa difusão à própria construção da ideia de Patrimônio Cultural. Para além da arquitetura, as expressões culturais, os modos de fazer e a cultura local ganham destaque ao longo do tempo, juntamente com o conjunto tombado pelo Iphan. Essas expressões culturais foram moldadas juntamente com a cidade, fruto das relações e construção de identidades do povo, portanto, partes da memória coletiva (3).
Este artigo visa apresentar um dos elementos processionais que se destacam na festa da Semana Santa, os tapetes devocionais. Esses elementos são características de uma das procissões da festividade, as manifestações externas à igreja. Os tapetes são uma cobertura ornamental que revestem o percurso processional, criando uma atmosfera artística e sensorial. Portanto, é possível traçar a construção dessa tradição e sua relação com a paisagem urbana.
Uma breve contextualização da Semana Santa
A Semana Santa é uma festividade cristã organizada pelas irmandades desde os anos iniciais da Vila Rica. As irmandades são instituições religiosas compostas por leigos e são importantes na formação da cidade, pois foram responsáveis pela construção das igrejas e capelas em Minas Gerais. Dessa forma, a Semana Santa preserva uma manifestação coletiva baseada na apresentação cênica, envolta em ritos, músicas e performances ao longo de uma programação em trechos e trajetos urbanos devidamente definidos pelos organizadores. Ela se divide em rituais litúrgicos, que são as missas e celebrações eucarísticas, e paralitúrgicos, que são aqueles que se desenvolvem fora do rito da liturgia seguida nos cânones do Concílio Vaticano. Além do caráter religioso, essa festividade demonstra seu caráter extra-religioso, ou seja, por se estruturar como evento público, com apelo visual predominante e até mesmo teatral próprios, se conformou como uma manifestação cultural que congrega um público diverso. Trata-se de uma representação não somente de cultura religiosa, mas com especificidades que destacam essa expressão coletiva em cada cidade.
Nesse contexto, Ouro Preto se sobressai devido à preservação de expressões culturais que preservam elementos tradicionais remontantes ao século 18. Isso abrange desde as missas solenes até as ornamentações e os elementos simbólicos intrínsecos aos cortejos processionais.
Com relação aos significados dessa manifestação, destaca-se que a Semana Santa compreende uma festividade que tem seu início após o fim da quaresma. Isso significa que acontece após o período de quarenta dias entre a quarta-feira de cinzas, que encerra a festividade do carnaval, e o domingo de ramos, que antecede o domingo de páscoa. É a celebração da ressurreição de Jesus Cristo após um período de reflexão e conexão espiritual para os católicos. Assim, ela é dividida em cinco momentos principais: Domingo de Ramos, Quinta-feira Santa (Endoenças), Sexta-feira da Paixão, Sábado de Aleluia e Domingo de Páscoa (ou da Ressurreição). Durante esses dias, são realizadas celebrações litúrgicas (missas), cortejos processionais e ritos específicos (4). Ao longo da pesquisa de mestrado, apontaram-se três procissões principais dentro da programação dessa festividade: Procissão do Encontro (Domingo de Ramos), Procissão do Enterro (Sexta-feira da Paixão) e Procissão da Ressurreição ou do Santíssimo (Domingo de Páscoa). Neste artigo nos ativemos ao estudo dessa última, a Procissão da Ressurreição, que finaliza a Semana Santa.
As procissões que compõem o cenário da festa barroca e da Semana Santa têm origem pagã, remontando à antiguidade, quando os romanos realizavam essa prática em templos e anfiteatros, enquanto os gregos marchavam no espaço público, em grandes cortejos que antecediam celebrações e festas (5).
A expressividade sagrada das procissões surge no período medieval, marcado por epidemias, fome e guerras, tornando-se um instrumento de penitência. Além do caráter religioso, esses cortejos também desempenhavam um papel de demonstração de poder, expressando e afirmando a hierarquia da sociedade.
Esses modelos de festas chegaram às colônias no continente americano, contribuindo para a colonização, carregando a característica da religiosidade católica europeia para a sociedade brasileira. As manifestações barrocas nas colônias adquiriram uma distinção artística e literária (6). Segundo Ávila, no Brasil, as festas provavelmente se instituíram com a formação dos núcleos urbanos primitivos e construção dos primeiros templos e conventos, exercendo-se o cultivo das tradições religiosas no período colonial.
As procissões da Semana Santa em Ouro Preto possuem características próprias, que se expressam ao longo da cidade, através de seu relevo, ladeiras e igrejas demarcando os espaços. Os Passos da Paixão marcam as paradas e as perspectivas das ruas tortuosas agregando novas características a essa festa barroca que tem relações profundas com a paisagem e a cidade.
Os sons produzidos pelos sinos, pelas bandas, pelo bater das lanças no calçamento de paralelepípedo e pelas matracas, além da luz e da sombra, são marcas do Barroco e dão dramaticidade aos trajetos ao fim da tarde e à noite. Durante o dia, na procissão da Ressurreição, as tolhas, vestes, sinos e os tapetes devocionais dão ar de espetáculo, alterando a percepção ao longo do trajeto.
A festa urbana: elementos cenográficos
Dentro da cidade, a procissão é a manifestação externa às igrejas realizada com maior exuberância. As festas sagradas estão relacionadas com as igrejas Matrizes. Em Ouro Preto, elas são organizadas pela Paróquia de Nossa Senhora da Conceição e pela Paróquia de Nossa Senhora Pilar, que se revezam a cada ano. Essas paróquias que incorporam duas matrizes são importantes desde o surgimento da cidade e determinaram duas regiões marcadas por disputas e conflitos, diferenças sociais e econômicas. A escolha dos trajetos se construiu diretamente vinculada à expressão de poder social ou político, retratando esse poder na paisagem. A rua por onde passa, as calçadas, as casas com suas janelas abertas com toalhas dependuradas, são demonstrações da dimensão econômica e social do habitar dos moradores (7).
A disposição das procissões segue característica específica porque as alas são dispostas de forma a organizar hierarquicamente o clero e o povo. O espaço inicialmente profano torna-se sacralizado pelo ritual; o padre, o incenso e os signos utilizados no cortejo então preparam esse percurso. A procissão desfila pelas vias públicas, partindo do ponto de destaque da igreja matriz e retornando até a mesma ou chegando a outra, como no caso de Ouro Preto. A paisagem é marcada pela marcha e forma-se assim, a paisagem religiosa (8). As alas da procissão são emolduradas pelos visitantes e aqueles que observam e acompanham sua passagem. Os sentidos se aguçam pelo ritmo das músicas, rezas e pela presença de cheiros das plantas e incensos.
O cortejo ocorre de forma diferenciada em Ouro Preto entre as duas Igrejas Matrizes existentes, do Pilar e de Nossa Senhora da Conceição. Essas duas paróquias se encontram em localidades opostas e divididas por um marco topográfico. Entretanto, como aponta Ávila (9), já nas primeiras décadas da configuração de Vila Rica, as manifestações religiosas coletivas eram comuns, inclusive com a união entre as duas paróquias que já existiam.
Vale destacar que elementos cenográficos foram incorporados ou adaptados com o passar dos anos. As vias são ornamentadas ao mesmo tempo que se criam novas percepções da paisagem já formada no imaginário comum. Um elemento de destaque das procissões da semana Santa são os tapetes devocionais, executados para a passagem da Procissão da Ressurreição.
Os tapetes devocionais
O uso de tapetes devocionais é uma tradição que remonta à Idade Média e que se desenvolveu especialmente durante o período barroco, quando a arte e a religiosidade se uniram em um esforço conjunto para criar uma experiência estética e espiritual mais intensa.
Os tapetes devocionais que estão presentes na procissão da Ressurreição e de Corpus Christi em Minas Gerais, têm sua origem na festa do Triunfo Eucarístico (10). Nesse caso, a ornamentação se relaciona à celebração e demonstração de fé no traslado do Santíssimo Sacramento simbolizado pelo ostensório com a hóstia. Essa tradição remonta aos cortejos da antiguidade que também eram celebrados com a criação de tapetes ornamentais ao longo do caminho.
Durante o século 18 e 19 as vias eram enfeitadas com areias, folhagens e outros materiais coloridos, formando figuras geométricas e desenhos, sendo reduzida a execução de tais ornamentos com o decorrer dos anos. No século 20 a tradição dos tapetes foi retomada por artistas, professores e a comunidade ouro-pretana. Já na década de 1970 é incorporada a utilização de serragem para a elaboração dos tapetes devocionais, que envolve o sagrado e profano (11).
A criação dos tapetes se tornou um evento que abrange pessoas do mundo todo, moradores e turistas, católicos ou não. Desperta a curiosidade de todos e movimenta o turismo na cidade, tornando-se uma das principais atrações. As pessoas participam com suas famílias, amigos, favorecendo o encontro, a sociabilidade, contemplação da paisagem e manutenção da tradição. Observa-se que a confecção dos tapetes foi além dos motivos geométricos, pois a cada ano vem desenvolvendo uma diversidade de criações artísticas, que parte da diversidade de participantes, de valores particulares representados no espaço público a partir de uma manifestação cultural coletiva.
Embora os tapetes devocionais da Semana Santa em Ouro Preto possam atrair turistas, é importante destacar que sua produção não se dá com o objetivo principal de atração turística. A confecção dos tapetes é uma tradição religiosa e cultural profundamente enraizada na cidade, que é realizada há décadas pelos fiéis e pela comunidade local.
Os tapetes são elaborados com materiais simples e por meio de uma técnica artesanal que envolve a participação da comunidade local, e seu propósito principal é expressar a devoção dos fiéis e celebrar a fé cristã durante a Semana Santa. A criação dos tapetes devocionais é uma forma de participação ativa dos fiéis na celebração religiosa, que envolve não apenas a elaboração dos tapetes, mas também a organização das procissões e outras atividades litúrgicas.
Trazendo o estudo com todo o caráter histórico e a sua relação sujeito-cidade, é possível que apliquemos o conceito de hospitalidade no contexto dos tapetes devocionais da Semana Santa em Ouro Preto. A hospitalidade pode ser entendida como um conjunto de atitudes e práticas que buscam acolher e satisfazer as necessidades e expectativas dos visitantes, proporcionando-lhes uma experiência positiva e significativa durante sua estadia na cidade. Em seu livro "O Direito à Cidade" (12), Balandier argumenta que a cidade é um espaço de encontro e de troca, e que a hospitalidade é uma das formas de garantir a integração dos indivíduos e das culturas nesse espaço. Ele afirma que a hospitalidade envolve uma série de atitudes e práticas, como o acolhimento, a disponibilidade para o diálogo, o respeito à diversidade e a promoção do encontro entre as pessoas.
Durante a Semana Santa, a confecção dos tapetes devocionais e as procissões atraem um grande número de visitantes para Ouro Preto. Nesse contexto, a comunidade local e os fiéis que participam da organização das atividades religiosas podem desempenhar um papel importante na promoção da hospitalidade, acolhendo e orientando os visitantes, fornecendo informações sobre as tradições e os rituais da Semana Santa, e proporcionando uma experiência acolhedora e significativa para os visitantes. Ainda podemos apontar a afirmação do antropólogo Roberto DaMatta (13), que trabalha a ideia de hospitalidade como uma das características da cultura brasileira, marcada pela cordialidade e pela abertura para o outro, como observamos no ato da confecção dos tapetes.
Arte na paisagem ouro-pretana
Durante a Semana Santa, no Domingo da Ressurreição temos a presença dos tapetes devocionais, confeccionados na madrugada anterior. Esse elemento processional cria um ambiente festivo e solene para as Procissão da Ressurreição.
O uso dos espaços urbanos durante as procissões da Semana Santa em Ouro Preto é um elemento essencial da celebração. As procissões percorrem as ruas históricas da cidade, passando por locais importantes para a história e a cultura local.
Esses trechos que são adornados pelos tapetes transformam o calçamento em suporte para a arte religiosa. São cuidadosamente confeccionados para formar desenhos e imagens que remetam ao catolicismo, símbolos religiosos, elementos naturais ou figuras geométricas. Os tapetes devocionais, como obras efêmeras, também são um exemplo da riqueza de detalhes e da complexidade dos trabalhos artísticos que caracterizam o período barroco.
De acordo com a teoria do filósofo francês Gilles Deleuze (14), os tapetes devocionais podem ser considerados uma "dobra barroca". Para o autor, a dobra é uma categoria filosófica que se refere a uma série de processos que ocorrem no interior de uma superfície, gerando novas dimensões e possibilidades.
No contexto da arte barroca, a dobra se manifesta de várias maneiras, como na criação de formas curvas e sinuosas que parecem se dobrar sobre si mesmas, na ornamentação excessiva que recobre as superfícies com detalhes minuciosos e na sensação de movimento e instabilidade que caracteriza muitas obras do período.
No caso dos tapetes devocionais, a dobra se manifesta na criação de uma nova dimensão dentro da superfície do calçamento das ruas, que é transformada em um suporte para a arte religiosa. Os tapetes devocionais são elaborados com materiais diversos, como serragem, pó de café, flores e outros elementos. O uso desses materiais orgânicos, bem como a técnica artesanal de disposição dos elementos sobre o calçamento, cria uma textura e uma paleta de cores que transforma a paisagem urbana de Ouro Preto. A confecção dos tapetes produz um efeito de profundidade, de volume e de movimento, que é intensificado pelas luzes e sombras que se projetam sobre as imagens durante a passagem das procissões.
As formas de ornamentação das ruas durante as celebrações religiosas podem ser analisadas como uma exteriorização do ambiente das igrejas. Durante o período barroco, a arte sacra era uma das principais expressões da religiosidade, e as igrejas eram decoradas com ricos ornamentos, esculturas e pinturas que tinham como objetivo criar um ambiente solene e sagrado que inspirasse a devoção dos fiéis.
Da mesma forma, as ornamentações das ruas durante as procissões da Semana Santa, como os tapetes devocionais em Ouro Preto, por exemplo, buscam criar um ambiente semelhante ao das igrejas, que inspire a devoção dos fiéis e proporcione uma experiência estética e espiritual mais intensa.
Durante as celebrações religiosas que envolvem a ornamentação das ruas, a paisagem urbana é transformada por meio da criação de novos elementos e significados, que são incorporados à percepção que as pessoas têm do espaço. Os tapetes devocionais criam uma nova camada de significado sobre o calçamento das ruas, que passa a ser visto não apenas como um elemento funcional da cidade, mas também como um suporte para a arte e a religiosidade.
À luz da teoria de Yi-Fu Tuan (15), essa transformação da paisagem urbana durante as celebrações religiosas pode ser entendida como uma manifestação da percepção subjetiva da paisagem, que é influenciada pela cultura, pela história e pelas experiências das pessoas. Ao criar novas camadas de significado sobre a paisagem urbana, como podemos inferir sob a teoria de Deleuze, as celebrações religiosas transformam a percepção que as pessoas têm do espaço, criando novas experiências estéticas e espirituais que se relacionam com a cultura e a história das comunidades locais.
Nesse sentido, trazendo a teoria de Michel de Certeau (16), em seu livro "A invenção do cotidiano", é uma abordagem que pode ser aplicada à análise da utilização dos tapetes devocionais nas celebrações religiosas da Semana Santa em Ouro Preto. Em sua obra, o autor argumenta que a experiência cotidiana é construída pelas pessoas que habitam um determinado espaço, que se apropriam dele de forma criativa e inventiva, produzindo assim uma variedade de práticas e sentidos que vão além das normas institucionais.
No caso da Semana Santa em Ouro Preto, a utilização dos tapetes devocionais pelos fiéis e pela comunidade local é uma prática que exemplifica os apontamentos de Certeau (17). Esses tapetes são produzidos a partir de materiais simples e são criados com moldes, desenhos no chão ou improvisados pelos fiéis que se reúnem para elaborá-los.
Ao utilizar a teoria de Certeau (18) para analisar a utilização dos tapetes devocionais na Semana Santa em Ouro Preto, é possível entender que a criação desses tapetes é uma forma de produzir uma paisagem simbólica que subverte as normas institucionais e produz novas práticas e sentidos para o espaço urbano. Reforça o conceito de que a paisagem é construída pelas pessoas que habitam e se apropriam do espaço urbano.
A cidade é palco de uma diversidade de manifestações e lugar de transformação. A paisagem e as manifestações culturais são adaptadas e reinventadas, como resultado de uma série de fatores históricos, culturais e sociais (19). Da mesa forma, a Semana Santa passa por essas seleções, mas, devido a seu caráter tradicional, mostra de forma incisiva a permanência de elementos da tradição da Semana Santa, do século 18 (20).
Nesse sentido, os tapetes devocionais em serragem irão se mostrar como uma tradição construída com o tempo, com referências à história de evolução das manifestações religiosas, mas com um forte laço da cultura principalmente em Minas Gerais.
Como vemos ainda hoje, a perpetuação desse elemento nas Procissões da Ressurreição e Corpus Christi, são objetos de identificação de uma cultura própria da religiosidade em diferentes regiões do Brasil.
Considerações finais
Como exposto, a Semana Santa em Ouro Preto é marcada pela alternância na sua organização entre as duas paróquias principais, de Nossa Senhora da Conceição e de Nossa Senhora do Pilar. Isso reflete uma história marcada por disputas, retratando a dimensão econômica e social dos moradores da região.
Como sabemos, a Ouro Preto e sua paisagem são amplamente conhecidos nacional e internacionalmente. Ao apontar novas forma de percepção da paisagem podemos refletir sobre como os diferentes usos dos espaços nos direcionam a interações que fujam do cotidiano. Como discorremos, a mudança mesmo que efêmera do ambiente urbano, pode transformar a relação do sujeito com a cidade, ou seja, proporcionar uma vivência diferente, ampliando o olhar e as sensações dentro de um espaço pré-reconhecido por suas características arquitetônicas e históricas.
Como concluímos durante a pesquisa de mestrado e aqui podemos indicar é que, apesar do declínio do ouro na segunda metade do século 18, a sociedade mineira não se desprendeu da característica festiva no ambiente público. Isso veio a caracterizá-la como uma sociedade mineradora, religiosa, com raízes barrocas. A ornamentação das vias públicas é uma característica que advém da Festa do Triunfo Eucarístico, marcando a sacralidade do espaço público e reforçando esses traços até os dias atuais.
Como um dos elementos relevantes das procissões, os tapetes devocionais foram incorporados nas festas da Ressurreição e de Corpus Christi em Minas Gerais. Incialmente presentes nas procissões com folhagens, flores, principalmente, passa por um processo de releitura no século 20, trazendo o caráter artístico e alterando a percepção da paisagem.
O primeiro registro do uso das serragens e outros materiais nas confecções de tapetes é datada de 1963. A pesquisa realizada sugere que o resgate definitivo da tradição dos tapetes devocionais, agora executados em serragem, deu-se com o apoio da Fundação de Arte de Ouro Preto — Faop, artistas locais, com grande empenho da comunidade local.
Os tapetes detêm um caráter de tradição, marcando o espaço público com manifestações de diversos grupos, moradores, fiéis ou visitantes. O público, que também é ator e organizador das manifestações da Semana Santa, transcende o aspecto religioso da confecção dos tapetes de serragem na contemporaneidade.
A presença desse elemento processional, desde sua confecção até a passagem da procissão, tornou-se um evento que movimenta o turismo na cidade e favorece a sociabilidade e a manutenção da tradição cultural coletiva. Como identificamos na pesquisa em arquivos da cidade, a produção desse elemento de ornamentação é destacada na imprensa, se mostrando como um ícone da tradição da Semana Santa.
O estudo dos tapetes devocionais nos possibilita a compreensão da relação da festa com a paisagem, se tratando de uma intervenção efêmera na paisagem e que transforma a essência das vias, transportando a um cenário de fé, cultura e memória. Dessa forma, podemos apontar que essa tradição se consolidou na cidade e se mostra como um elemento transformador da percepção da paisagem e da relação das pessoas com a cidade.
notas
1
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco I. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 1994.
2
AGUIAR, Leila Bianchi. Cidade morta, cidade monumento, cidade turística: a construção de memórias sobre Ouro Preto In GUIMARÃES, Valéria Lima; MAGALHÃES, Aline Montenegro (org.). História do Turismo no Brasil. Rio de Janeiro, Editora FGV, 2013.
3
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Jorge Zarah, 2008.
4
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Semana Santa na América portuguesa: pompa, ritos e iconografia. Anais do III Congresso Internacional del Barroco Americano: Territorio, Arte, Espacio y Sociedad, Sevilla, Universidad Pablo de Olavide, 2001, p. 1197-1212.
5
ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco II. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2012.
6
Idem, ibidem.
7
ROSENDAHL, Zeny. Uma procissão na geografia. Rio de Janeiro, Eduerj, 2018.
8
ROSENDAHL, Zeny. Geografia de religião: uma proposta. Espaço e Cultura, n. 1, 1995, p. 45-74.
9
ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas: textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte, Centro de Estudos Mineiros, 1967.
10
MACHADO, Simão Ferreira. Triunfo Eucharistico: exemplar da cristandade lusitana. Lisboa, Oficina da música, 1734 Cf. ÁVILA, Affonso. Resíduos seiscentistas em Minas: textos do século do ouro e as projeções do mundo barroco. Belo Horizonte, Centro de Estudos Mineiros, 1967.
11
SAMPAIO, Márcio. A tradição do tapete para a procissão do Santíssimo. In Faop. Tapetes devocionais. Rio de Janeiro, UERJ/Decult, 2014.
12
BALANDIER, Georges. O direito à cidade. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.
13
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua: espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. 5ª edição. Rio de Janeiro, Rocco, 1997.
14
DELEUZE, Gilles. Dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, Papirus, 1991.
15
TUAN, Yi-Fu. Topofilia: um estudo da percepção, atitudes e valores do meio ambiente. Londrina, Eduel, 2012.
16
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: artes de fazer. 3ª edição. Petrópolis, Vozes, 1994.
17
Idem, ibidem.
18
Idem, ibidem.
19
HOBSBAWN, Eric; RANGER, Terence. A invenção das tradições. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
20
FRANÇA, Tayami Fonseca. Procissão e Paisagem na Semana Santa de Ouro Preto, MG, séculos 20 e 21. Dissertação de mestrado. Belo Horizonte, EA UFMG, 2023.
sobre as autoras
Tayami Fonseca França é mestre pelo PPG ACPS da UFMG (2023); graduada em Arquitetura e Urbanismo pela Ufop (2018) e técnica em Restauração pela Faop (2022). Trabalha com projetos arquitetônicos, regularização e reforma, além de ter experiência na área de Patrimônio Cultural, incluindo projetos de Conservação e Restauração de Bens Culturais, Consultoria, Inventários e Laudos, e elaboração de planilhas orçamentárias.
Myriam Banhia Lopes é professora, pesquisadora e orientadora de doutorado do PACPS, lotada no Departamento de Análise Crítica e Histórica da Arquitetura e do Urbanismo e da graduação do Design na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Desde 1999 coordena o Núcleo de História da Ciência e da Técnica. Publicou Corpos inscritos (2021) e O rio em movimento: quadros médicos e(m) história,1890–1920 (2001).