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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
O artigo tem por objetivo demonstrar a crescente atuação da mobilização Nimby na alteração de leis urbanísticas em São Paulo, tomando como estudo de caso o processo de regulamentação da lei que trata das dark kitchens.

english
This article aims to demonstrate the growing role of Nimby mobilization in changing urban laws in São Paulo, taking as a case study the regulatory process of municipal Law which deals with dark kitchens.

español
Este artículo tiene como objetivo demostrar el papel creciente de la movilización Nimby en la modificación de las leyes urbanas en São Paulo, tomando como estudio de caso el proceso reglamentario de la ley municipal que trata de las Cocinas Oscuras.


how to quote

MONTANDON, Daniel Todtmann; MOURA, Lúcio Ramos. A crescente mobilização Nimby nos processos de alteração de leis urbanísticas. O caso das dark kitchens em São Paulo. Arquitextos, São Paulo, ano 24, n. 286.04, Vitruvius, mar. 2024 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/24.286/8979>.

As semelhanças entre segregação urbana e a mobilização Nimby em São Paulo

A origem do zoneamento paulistano está fortemente relacionada à processos de segregação urbana. Antes mesmo da instituição da primeira lei geral de zoneamento em 1972, já existiam regramentos restritivos, que proibiam determinados usos nos bairros de alta renda na cidade, como a Lei Municipal n. 3.571/1937 e o Decreto Municipal n. 99/1941. Villaça (1), Rolnik (2), Nery Jr. (3) e Feldman (4) demonstram como a construção do zoneamento em São Paulo teve forte influência das classes de alta renda da cidade, especialmente em assegurar a manutenção dos bairros exclusivamente residenciais de baixa densidade.

Ao longo dos anos, as alterações realizadas na legislação urbana de São Paulo têm sido cada vez mais marcadas pela forte atuação de grupos de moradores de média e alta renda que se opõem às tentativas de alterações nos usos e densidades construtivas existentes nos seus bairros. Podemos destacar pelo menos os seguintes processos de alteração normativa:

  • 1995: exclusão de determinados bairros da região dos Jardins e da Vila Olimpia do perímetro da Operação Urbana Faria Lima no seu processo de formulação.
  • 2004: resistência à diversificação de usos não residenciais nos corredores que permeiam as Zonas Exclusivamente Residenciais, na revisão do zoneamento que resultou na aprovação da Lei Municipal n. 13.885/04. São as faixas de 40m e 50m ao longo de lotes localizados nas Zonas Exclusivamente Residenciais que fazem frente para vias com tráfego mais intenso, que por estarem nesta condição podem dispor de usos não residenciais compatíveis com o tráfego da via.
  • 2016: resistência à diversificação de usos não residenciais nos corredores que permeiam as Zonas Exclusivamente Residenciais, na revisão do zoneamento que resultou na aprovação da Lei Municipal n. 16.402/16 (5). De modo semelhante, estamos falando dos lotes com frente para vias de tráfego mais intenso dentro das Zonas Exclusivamente Residenciais.
  • 2019: resistência ao Projeto de Intervenção Urbana — PIU Vila Leopoldina Villa Lobos, em função da proposição de projetos de moradia de interesse social na região da intervenção proposta. Tal projeto foi aprovado pela Lei Municipal n. 17.968/23.
  • 2021: oposição ao adensamento e verticalização ocorridos nos bairros de Pinheiros, Perdizes e Vila Madalena, em função da implantação do Plano Diretor Estratégico — PDE 2014, especialmente dos eixos de adensamento na área de influência ao redor das estações do transporte público coletivo.
  • 2022: resistência à instalação de dark kitchens em São Paulo (ou “cozinhas fantasmas”), a partir de problemas identificados em duas unidades que foram implantadas inicialmente em São Paulo em 2020.

Em todos os processos descritos, verifica-se que a resistência se dá pela representação de moradores de bairros residenciais de média e alta renda, principalmente os bairros exclusivamente residenciais de baixa densidade com residências unifamiliares. Contudo, recentemente essa resistência tem contado também com adesão de moradores de faixas de renda média e também residentes de edifícios verticais. E nota-se que essa mobilização social de resistência tem aumentado o número de participantes, além de apresentar posicionamentos litigantes e de forte oposição, tendo sido acolhidos muitas vezes pelo Ministério Público Estadual.

Essa mobilização pode ser denominada pelo acrônimo Nimby (not in my backyard), que significa “não no meu quintal”, expressão utilizada para demonstrar que um determinado grupo de pessoas, geralmente moradores, se opõe firmemente a mudanças na legislação urbana feitas pelo Poder Público no território em que esse grupo reside, por motivos diversos, mas sempre de interesse individual dos integrantes desse grupo (ou mobilização). Tudo indica que essa mobilização Nimby sempre esteve presente nos processos de alteração da regulação urbana em São Paulo, porém não exatamente com esta denominação. Mais recentemente viu-se a presença dessa mobilização Nimby no processo de regulamentação das dark kitchens, agora com uma maior diversidade dos seus integrantes, mas disputando a mesma reivindicação: manutenção das características originais dos bairros, sem alterações.

Quanto à origem do termo Nimby, em uma entrevista concedida a rádio WNYC, Kim Phillips-Fein, historiadora da Universidade de Nova York, explicou que o termo Nimby foi adotado pela primeira vez em 1970, numa mobilização social que lutava pela justiça ambiental, sendo composta por pessoas de baixa e média renda que tinham como intuito impedir a construção de instalações que poderiam trazer produtos químicos e contaminantes para seus bairros (6). Os autores Marchetti (7)e Saha e Mohai (8) corroboram em datar o início do uso do acrônimo Nimby em conflitos de localização no início da década de 1970.

Apesar da oposição Nimby, geralmente o empreendimento privado pretendido ou a intervenção pública pretendida encontram respaldo no planejamento urbano (ou na legislação urbana) e são inúmeras as situações em que a mobilização Nimby se apresenta.

Embora o termo Nimby não seja muito utilizado no Brasil, este tipo de mobilização social está cada vez mais presente em diversas situações que envolvem disputas e conflitos especialmente em projetos de desenvolvimento imobiliário, novas atividades econômicas e até mesmo na realização de intervenções públicas. O motivo pelo qual ocorre este tipo de comportamento, pode estar relacionado à proteção do local em que se vive. Devine-Wright (9) explica que o comportamento se dá pelo apego que o sujeito possui pelo local, aliado a questões relacionadas a identidade que o lugar dispõe, fazendo com que ele haja de tal forma para proteger o espaço. Outra análise possível é a distância entre o quintal do indivíduo e o local de intervenção, ou seja, quanto mais próximo do quintal, maior o nível de rejeição, e do contrário, quanto mais longe do quintal, maior o nível de aceitação.

No caso das dark kitchens, o conflito se dá através do comportamento contrário dos moradores do entorno à implantação ou funcionamento de unidades de conglomerados de cozinhas, ou seja, os indivíduos envolvidos não desejam ter próximo de suas casas estes conglomerados, ou como bem resume a definição do conceito de Nimby, não desejam ter as dark kitchens em seu quintal. O motivo pelo qual os moradores do entorno passam a ter este tipo de comportamento, está ligado a existência de externalidades negativas geradas em algumas unidades já instaladas, em especial as unidades da empresa Kitchen Central (10) nos bairros do Brooklin e na Lapa, como ruídos, emissão de odores, material particulado, fumaça e a presença de entregadores e motocicletas nas vias. No caso da oposição às dark kitchens, além dos moradores do entorno de unidades existentes, tem-se também moradores do bairro do Panamby onde se pretendia a construção de uma unidade Dark Kitchen que tinha obtido autorização para construção e que posteriormente foi suspensa pela Prefeitura. E além deles, se juntaram representantes de associação de moradores de outros bairros com afinidade na “causa”. Todos, bairros de alta renda.

Um esclarecimento necessário: com base nos relatos de Caldeira (11), neste artigo não está se adotando o termo “movimento” perante a questão Nimby, mas sim “mobilização”, uma vez que se identifica nesta disputa pela cidade a presença de cidadãos e movimentos sociais com suas pautas pré-estabelecidas se unindo em pró de uma causa em comum — no caso a mobilização Nimby contra as dark kitchens. Ou seja, um comportamento em oposição, adotado por um determinado grupo de pessoas que se mobilizam em função de uma causa a favor da proteção dos seus bairros.

A mobilização Nimby contra as dark kitchens em São Paulo

As dark kitchens são um novo modelo de negócio gastronômico que antes já existia, mas que ganhou força e virou tendência na pandemia do Covid-19 em diversas cidades do Brasil e do mundo. Consistem num conglomerado de cozinhas, concentradas em um mesmo local com infraestrutura própria e sistema logístico de entregas, focados no atendimento de refeições por delivery, sem atendimento ao público. As unidades passaram a receber grande demanda no período da pandemia para o serviço de delivery devido ao distanciamento social, sendo que o serviço se manteve mesmo após a pandemia em grande parte devido à manutenção do home office.

As duas primeiras unidades da empresa Kitchen Central foram construídas nos bairros da Lapa e Brooklin, em bairros movimentados e com usos diversificados, tendo sido concebidas e aprovadas conforme a legislação vigente à época. Aqui é importante esclarecer que a legislação municipal dispunha de parâmetros e regras suficientes para aprovação das dark kitchens, sendo enquadradas nos grupos de atividade nR1-1 (comércio de abastecimento de âmbito local com dimensão de até 500m² de área construída computável) ou nR2-3 (comércio de abastecimento de médio porte, com dimensão de mais de 500m² até 2.000m² de área construída computável), conforme o porte. E para cada unidade era necessário obter os seguintes documentos, autorizações e cadastros junto aos órgãos públicos:

1. Solicitação de Alvará de Aprovação e Alvará de Execução junto à SMUL ou à respectiva Subprefeitura, conforme o porte da edificação, quando se tratar de edificação nova ou de reforma que não se enquadre nas situações de dispensa de licenciamento previstas no COE (art. 13 da Lei Municipal n. 16.642/17).

2. Solicitação de Alvará de Autorização de Tapume junto à SMUL ou à respectiva Subprefeitura, se necessário.

3. Solicitação de CLCB ou AVCB junto ao Corpo de Bombeiro.

4. Solicitação de Certificado de Conclusão junto à SMUL ou à respectiva Subprefeitura.

5. Cadastramento de equipamentos junto à SMUL ou à respectiva Subprefeitura.

6. Solicitação de Certificado de Segurança e de Certificado de Acessibilidade junto à SMUL ou à respectiva Subprefeitura, se necessário.

7. Solicitação de Licença de Funcionamento junto à Vigilância Sanitária.

8. Solicitação de Licença de Funcionamento junto à respectiva Subprefeitura, devendo ser solicitada a licença de funcionamento para a administração das cozinhas e, além disso, cada cozinha também tinha que obter a sua respectiva licença de funcionamento específica.

9. Solicitação de cadastro de anúncio junto à respectiva Subprefeitura (Cadan).

Caso houvesse alguma dúvida de enquadramento das dark kitchens, caberia realização de consulta junto à Câmara Técnica de Legislação Urbanística — CTLU, sendo que não há registro de pronunciamento ou resolução da referida câmara sobre dúvida a ser dirimida. Isso significa que a Prefeitura tinha condições de aprovar as dark kitchens.

Cabe ainda esclarecer que o zoneamento paulistano vigente desde 2016 permitia ampla mescla de usos na cidade, exceto em algumas zonas, como as zonas exclusivamente residenciais. O quadro 1 demonstra a permissão dos grupos de atividade nR1-1 e nR2-3 nas diversas zonas:

Permissão dos grupos de atividade nR1-1 e nR2-3 conforme as zonas
Elaboração Daniel Todtmann Montandon [Quadro 4 LM 16.402/16]

Após um período de funcionamento, os moradores do entorno das unidades Lapa e Brooklin começaram a apresentar queixas com relação às externalidades negativas percebidas por estes, tais como ruído, emissão de odores, fumaça, material particulado e a alta presença de entregadores nas vias e calçadas. A partir de então, começam a surgir alguns comportamentos característicos da mobilização Nimby, ou seja, uma mobilização formada por cidadãos e movimentos sociais com suas pautas pré-estabelecidas se unindo contra as unidades das dark kitchens construídas em São Paulo, nas proximidades de suas casas. Junto a este grupo de indivíduos começaram a se juntar outros, pertencentes a outras regiões da cidade de São Paulo, que também passaram a ter unidades da Kitchen Central próximas de suas casas. O discurso destes indivíduos era o mesmo com relação às incomodidades geradas.

Pela mesma causa, surge um outro grupo de pessoas pertencentes ao bairro do Panamby, só que desta vez num cenário diferente, pois a grande preocupação destes não era com uma unidade já em funcionamento, mas sim com uma futura unidade que estava em obras. Vale ressaltar que a força e as características deste grupo do Panamby foram relevantes no processo de regulamentação das dark kitchens em São Paulo, pois mesmo não possuindo uma unidade ativa para reclamar, souberam se articular, se munir de informações e se unir num único propósito, de impedir a construção desta unidade nas proximidades de suas casas. Estava formada a mobilização social em oposição às dark kitchens, com nítidas características de Nimby.

A mobilização Nimby se articulou e apresentou reclamações junto às subprefeituras e também ao Ministério Público Estadual. Como resultado, foi aberto inquérito civil para investigação das dark kitchens. Por sua vez, a Prefeitura adotou medidas de interrupção da emissão de licenças de funcionamento e alvarás de aprovação (embora tenha tentado também adotar sanções às unidades existentes, sem sucesso, devido à ausência de ilegalidade) e também iniciou o processo de regulamentação das dark kitchens em São Paulo por meio da proposição do Projeto de Lei n. 362/22 (embora, como demonstrado anteriormente, a legislação até então incidente apresentava parâmetros suficientes para aprovação das dark kitchens). Quando esse projeto de lei foi elaborado, se iniciou uma intensa mobilização Nimby para sua modificação até sua aprovação, de modo a restringir ao máximo a instalação de dark kitchens nos bairros de alta renda.

O processo de aprovação da Lei Municipal n. 17.853/22 e a mobilização Nimby

A Figura 1 representa a cronologia simplificada dos principais fatos relacionados à aprovação da lei das dark kitchens (Lei Municipal n. 17.853/22) (12). Ao todo foram realizadas sete audiências públicas (13), sendo que em todas elas houve a participação efetiva da mobilização Nimby em oposição às dark kitchens. Na quarta audiência foi apresentado um parecer conjunto com substitutivo ao referido projeto de lei, na quinta audiência foi apresentado o primeiro substitutivo e na sexta e sétima audiência teve-se como pauta o segundo substitutivo, que culminou na aprovação da Lei Municipal n. 17.853/22.

Cronologia simplificada dos principais fatos relacionados à regulamentação da Lei Municipal n. 17.853/22
Elaboração Lúcio Ramos Moura, 2023

As audiências públicas foram palco de intensa participação da mobilização nimby, que expôs sua insatisfação com as unidades de dark kitchens em relação aos seguintes aspectos: geração de poluição, geração de odor, geração de ruído e ocupação das calçadas pelos entregadores. Tais insatisfações tomaram por referência as unidades de dark kitchens da empresa Kitchen Central localizadas nos bairros do Brooklin e Lapa. Ao mesmo tempo, os moradores do bairro do Panamby também tiveram forte oposição às dark kitchens embora não exista unidade construída neste bairro. O início das obras de uma nova unidade no bairro do Panamby foi suficiente para gerar intensa mobilização dos moradores de edifícios verticais de alto padrão a se oporem de forma ampla às dark kitchens.

Unidade de Dark Kitchen na Lapa
Foto Lúcio Ramos Moura, 2022

Unidade de Dark Kitchen em obras no bairro do Panamby
Foto Lúcio Ramos Moura, 2022

Segundo múltiplos depoimentos feitos em todas as audiências públicas, o argumento utilizado pelos opositores às dark kitchens é que eram favoráveis ao negócio das cozinhas para delivery, mas desde que as dark kitchens fossem instaladas em áreas industriais. E para argumentar a incompatibilidade ou impertinência da presença dos conglomerados de cozinhas nos seus bairros, os opositores exploraram o argumento dos impactos de vizinhança causados.

Apenas para contextualizar, tudo indica que as cozinhas para delivery, no seu conceito, atendem as estratégias contemporâneas de ordenamento territorial emanadas nos marcos internacionais de sustentabilidade e nos marcos nacionais e municipais de política urbana, especialmente no que se refere ao seguinte aspecto principal: é cada vez mais desejável promover a intensa mescla de usos nas áreas urbanizadas de modo a se configurar bairros com ampla oferta de serviços, fazendo com que os cidadãos se desloquem em curtas distâncias ou simplesmente que não tenham que se deslocar. Tal medida reduz consideravelmente o uso do veículo particular e também do transporte público e, mesmo que no presente caso haja o uso de motocicletas para os serviços de delivery (que são consideravelmente poluentes), a partir do momento em que as cozinhas estão descentralizadas e mais próximas dos consumidores, resultam na redução do consumo de energia poluente per capita, uma vez que os trajetos feitos pelas motocicletas (ou bicicletas) serão mais curtos. Não à toa que a lei de zoneamento vigente à época permitia ampla diversificação de usos.

No entanto, cabe ponderar que, mesmo havendo respaldo conceitual para a diversificação dos usos, as cozinhas para delivery, se mal projetadas, poderiam gerar externalidades negativas, como ocorreu nos casos aqui relatados.

Retomando o processo de aprovação da Lei Municipal n. 17.853/22, podemos identificar os seguintes dispositivos técnicos e legais que foram introduzidos no Projeto de Lei n. 362/22 e nos substitutivos propostos pela Câmara Municipal até resultar na aprovação da referida lei:

  • Enquadramento do uso em grupos de atividade existentes na lei de zoneamento vigente;
  • Caracterização do uso, considerando número de cozinhas e porte em área construída computável e também critério de localização em relação a unidades existentes ou licenciadas;
  • Número mínimo de vagas para estacionamento de motocicletas;
  • Número de sanitários;
  • Exigência de sistema de filtragem e controle de exaustão conforme NBR 14518-2020;
  • Definição de prazo para adequação das unidades existentes.

Quanto ao enquadramento do uso, a partir do primeiro substitutivo, foram previstos dois enquadramentos em grupos de atividade conforme o porte: Ind-1b-1 (estabelecimentos destinados à fabricação de produtos de padaria, confeitaria, pastelaria, rotisserie, dentre outros, com área construída computável de até 1.000 m²) e Ind-2-1 (atividade industrial de fabricação de produtos alimentícios e bebidas). No primeiro substitutivo o enquadramento em Ind-1b-1 era para unidades com até vinte cozinhas e 1.000m² de área construída computável e o enquadramento em Ind-2-1 para unidades com mais de vinte unidades e área construída computável superior a 1.000m². Já no segundo substitutivo e na lei aprovada, o enquadramento em Ind-1b-1 era para unidades com até dez cozinhas e 500m² de área construída computável e o enquadramento em Ind-2-1 para unidades com mais de dez unidades e área construída computável superior a 500m². Só para se ter uma ideia, as unidades existentes mencionadas neste trabalho (Lapa e Brooklin) apresentam área superior a 1.000m² de área construída computável.

Quanto à caracterização das unidades, o segundo substitutivo definiu uma área mínima de 12m² para cada cozinha e a lei aprovada exigiu a distância mínima de 300m entre uma nova unidade e outra existente ou já licenciada, de modo a evitar a instalação de empreendimentos contíguos ou justapostos.

Quanto às vagas para motocicletas, desde o Projeto de Lei n. 362/22 foi exigida a proporção de uma vaga a cada 12m² de área de cozinha, resultante em uma vaga por cozinha.

E quanto à exigência de adequação das unidades existentes, sob pena de não serem mais renovadas licenças de funcionamento, foi estipulado prazo de 180 dias no Projeto de Lei n. 362/22 e no primeiro substitutivo e apenas de noventa dias no segundo substitutivo e na lei aprovada.

O Quadro 2 a seguir sintetiza como os dispositivos mais restritivos foram sendo introduzidos no processo de regulamentação e gerando maior restrição à instalação das dark kitchens.

Evolução das principais restrições às dark kitchens no processo de regulamentação da Lei Municipal n. 17.853/22
Elaboração Lúcio Ramos Moura, 2023

Como se vê, a intensa participação dos opositores às dark kitchens nas audiências públicas e a forte mobilização Nimby junto à imprensa gerou resultados: tanto a Prefeitura, quanto os vereadores acolheram boa parte dos seus pleitos, fazendo com que a lei aprovada imputasse forte restrição para as futuras unidades de dark kitchens e também para as unidades existentes.

Embora não seja objetivo desse trabalho examinar e aferir as externalidades negativas efetivamente geradas pelas unidades existentes, a simples visita às unidades existentes da Lapa e Brooklin e à unidade em construção no bairro do Panamby demonstrou que existem sim algumas incomodidades geradas no entorno, porém de forma menos impactante do que relatado pelos moradores.

De qualquer maneira, cabe mencionar que as unidades de dark kitchens da Lapa e Brooklin que geraram forte oposição e que foram objeto de intenso debate no processo de regulamentação da Lei Municipal n. 17.853/22 apresentam baixa qualidade arquitetônica, que dificultam a adequada mitigação ou até mesmo anulação das externalidades negativas geradas.

Considerações finais

O processo de regulamentação da Lei Municipal n. 17.853/22 demonstra que a mobilização Nimby tem se fortalecido nos processos de alteração da legislação urbanística em São Paulo, fazendo com que determinados bairros com população de alta renda mantenham afastados de seus territórios usos não residenciais e também as maiores densidades demográficas e construtivas. Aos olhos dos moradores desses bairros, tal processo assegura maior qualidade urbanística e ambiental. Contudo, na ótica dos marcos internacionais de sustentabilidade e dos marcos nacionais e municipais de política urbana, tal mobilização pode ser considerada garantista de um modelo segregado e elitista de ocupação do solo urbano, pois reserva área urbanizada com ampla oferta de infraestrutura, serviços urbanos e empregos, para usufruto de poucos.

No caso da regulamentação das dark kitchens em São Paulo, a Prefeitura e o legislativo municipal acabaram acolhendo a mobilização Nimby, com seus pleitos e suas ideias, pois tal mobilização soube se articular e demonstrar os problemas advindos da instalação de algumas unidades de cozinhas para delivery.

Em dezembro de 2023 a Lei Municipal n. 17.853/22 foi considerada inconstitucional pela Ação Direta de Inconstitucionalidade — ADI 2157392-66.2023.8.26.0000. O principal argumento da decisão foi a ausência de estudos técnicos que embasassem as proposições feitas, que geraram forte restrição à instalação das cozinhas para delivery no município de São Paulo. Ainda cabe recurso da decisão, mas desde então a referida lei teve sua aplicação suspensa. Tal feito demonstra, talvez, excessivo rigor do Executivo e do Legislativo nas restrições impostas às cozinhas para delivery.

Por outro lado, cabe destacar que é legítimo que os moradores busquem proteger seus bairros de transformações imobiliárias e econômicas que possam descaracterizá-los, independentemente da sua faixa de renda e da sua inserção na cidade. A característica Nimby de uma determinada mobilização social não a desqualifica para reivindicar a preservação de um bairro, ao mesmo tempo em que pode contribuir para a busca de um melhor equilíbrio das transformações urbanas, estabelecendo limites para o desenvolvimento econômico e imobiliário.

notas

1
VILLAÇA, Flavio. Espaço intra-urbano no Brasil. São Paulo, Studio Nobel, 1998.

2
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp, 1999.

3
NERY JÚNIOR, J. M., & VILLAÇA, F. J. M. (2002) Um século de política para poucos: zoneamento paulistano 1886-1986 [Universidade de São Paulo]. In VILLAÇA, Flávio José Magalhães.

4
FELDMAN, Sarah. Planejamento e Zoneamento. São Paulo: 1947-1972. São Paulo, Edusp/Fapesp, 2005.

5
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Lei n. 16.402 de 22, de março de 2016. Disciplina o parcelamento, uso e a ocupação do solo no Município de São Paulo, de acordo com a Lei no 16. 050, de 31 de julho de 2014. São Paulo, Diário Oficial da Cidade de São Paulo, 2016 <https://bit.ly/3xeQC4N>.

6
RODRIGUEZ, C. (2017) The Origin and Iterations of “Not in My Backyard.” WNYC News <https://bit.ly/4aD4Jj4>.

7
MARCHETTI, N. Les conflits de localisation: le syndrome Nimby. Cirano <https://bit.ly/3TEswIu>.

8
SAHA, R., & MOHAI, P. Historical context and hazardous waste facility siting: Understanding temporal patterns in Michigan. Social Problems, v. 52, n. 4, 2005, p. 618–648.

9
DEVINE-WRIGHT, P. Rethinking NIMBYism: The role of place attachment and place identity in explaining place-protective action. Journal of Community and Applied Social Psychology, v. 19, n. 6, 2009, p. 426–441.

10
KITCHEN CENTRAL. Kitchen Central <https://kitchencentral.com.br/>.

11
CALDEIRA, T. P. do R. Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo, Editora 34/Edusp, 2000 <https://editora34.com.br/>.

12
PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Lei n. 17.853, de 29 de novembro de 2022. São Paulo, Diário Oficial Da Cidade de São Paulo, 2022 <https://bit.ly/43K34Wr>.

13
CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente — Dark Kitchens. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo; 18 mai. 2022; CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente — Dark Kitchens. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 9 jun. 2022; CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente — Dark Kitchens. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 23 jun. 2022; CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 5 set. 2022; CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 8 nov. 2022; CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente — Dark Kitchens. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 23 nov. 2022; CÂMARA MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Audiência Pública — Comissão de Política Urbana, Metropolitana e Meio Ambiente — Dark Kitchens. São Paulo, Câmara Municipal de São Paulo, 29 nov. 2022.

sobre os autores

Daniel Todtmann Montandon é arquiteto e urbanista (Unesp Bauru, 2001), mestre (2009) e doutor (2022) em Planejamento Urbano e Regional (FAU USP). Desde 2020 atua como Diretor de Arquitetura, Urbanismo e Design na Uninove e a partir de 2022 passou também contribuir como professor colaborador do Programa de pós-graduação em Cidades Inteligentes e Sustentáveis da mesma universidade. Também atua como consultor na empresa DTM Urbanismo.

Lúcio Ramos Moura é engenheiro civil (UMC, 2014), Tecnólogo em Transporte Terrestre (FATEC, 2018) e mestre em Cidades Inteligentes e Sustentáveis (Uninove, 2023). Desde 2008 atua na área da construção civil, possui vasta experiência como analista de projetos multidisciplinares oferecendo suporte para a implantação técnica dos projetos em obra, a partir de 2022 passou a atuar como project manager na área de galpões logísticos.

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