Há dois meses e meio, escrevi um texto denunciando a privatização em curso de uma importante área pública e tombada na orla do Rio de Janeiro: o Aterro e Parque do Flamengo ('Patrimônios pilhados', 12/06/2006). Trata-se da construção de um complexo contendo centros de convenções, exposições, clube privado, centro turístico e shopping center, ocupando uma área de 40 mil m2 na Marina da Glória. Obra em curso graças a uma liminar da Justiça Federal que cancela a negativa dada anteriormente pelo Iphan.
O Parque do Flamengo, projetado por Affonso Eduardo Reidy e Roberto Burle Marx, é um dos mais importantes parques urbanos do mundo. "Protegido" como patrimônio nacional desde 1965, candidata-se ao título de "patrimônio mundial" da Unesco ironicamente no mesmo momento em que começa a ser desmembrado, loteado e desfigurado. A volta ao tema, nessa coluna, deve-se à urgência da questão. Nos últimos meses, apesar da mobilização da sociedade através de manifestações públicas, audiência na Câmara de Vereadores, e (poucas) denúncias na imprensa, as obras continuaram. Contudo, veio recentemente a público um parecer elaborado pela advogada Sonia Rabello destrinchando a ilegitimidade do processo, disponível em www.vitruvius.com.br. Professora Titular de Direito Administrativo e Urbanístico na UERJ, Rabello elaborou o parecer a pedido da Comissão Especial do Instituto de Arquitetos do Brasil, Departamento do Rio de Janeiro – IAB/RJ, que prepara um pronunciamento sobre o assunto.
Quem realiza a obra é a Empresa Brasileira de Terraplenagem e Engenharia – EBTE, que detém os direitos de concessão do uso das instalações da Marina. Como a exploração turística e comercial do atracamento de barcos particulares não é um serviço público, a Prefeitura "privatiza" a gestão das instalações existentes. Porém, a inversão que ocorre nesse caso, na forma de uma manobra jurídica, é o fato da EBTE agir como se fosse proprietária da área, propondo "obras provisórias" que revitalizam as existentes, e que, na verdade, se resumem a uma construção inteiramente nova: enorme, fechada e privada, obstruindo o acesso público à Marina. Dessa forma, o que era, originalmente, um contrato de gestão administrativa, se transforma em um repasse de terras. Ainda, a decisão judicial fundamenta suas razões em um relatório de Impacto Ambiental encomendado e pago pelos interessados, e que avalia esse impacto apenas nas margens oceânicas, sem levar em conta dados como o congestionamento viário e a descaracterização da paisagem do parque.
Essa decisão judicial em segunda instância, conduzida, como mostra Rabello, por força de "induções maliciosas, e uma confusão, bem orquestrada, de conceitos jurídicos", ameaça gravemente o Parque, e abre um precedente sinistro na queda de braço entre a conservação do patrimônio público e os interesses do mercado. Como avisa a advogada, essa liminar é uma carta branca. Com ela, "não há mais qualquer controle sobre o que está sendo executado, pela EBTE, no Parque público".
notas
[artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo, caderno Ilustrada, segunda-feira, 28 ago. 2006]
sobre o autor
Guilherme Wisnik, arquiteto e crítico de arquitetura.
Guilherme Wisnik, São Paulo SP Brasil