Durante a celebração de seus 50 anos, a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, na Cidade Universitária, se abre para uma exposição que é um convite ao diálogo. Na mostra, estão presentes os trabalhos de projeto realizados por um grupo de treze alunos de pós-graduação sob orientação do arquiteto e professor doutor Zeuler R. M. A. Lima da Graduate School of Architecture and Urban Design da Washington University in Saint Louis nos Estados Unidos. Este diálogo, desenvolvido em colaboração com a FAUUSP no segundo semestre de 2005, ocorreu e ocorre em apoio à criação de um arquivo e galeria – ou um museu, segundo um modelo pedagógico e científico – de arquitetura brasileira. Seu intuito é abrigar e divulgar a inestimável coleção de documentos das bibliotecas da faculdade.
O tema de um anexo de tal importância ao edifício do Vilanova Artigas amadureceu como possibilidade de exercício pedagógico a partir de muitos anos de contato do professor Zeuler R. M. A. Lima com a FAUUSP, de onde se formou há vinte anos, e de acompanhar a idéia e a vontade pioneira da diretora das bibliotecas da faculdade, Eliana A. Marques. O tapete de ovos se oferecia ao caminho de forma irrecusável: as especificidades espaciais e técnicas do programa; a proximidade à monumentalidade circunspeta da FAUUSP; um terreno triangular, apertado entre as empenas quase cegas da faculdade e do laboratório de materiais (LAME); a necessidade de comunicação para os ocupantes dos edifícios; e a aderência ou não de linguagens arquitetônicas de diferentes origens e gerações. Um desafio de tecedura difícil, mas de grande potencial de sensibilização para questões de formação profissional e disciplinar. Abria-se uma possibilidade única de expor alunos de arquitetura às questões sobre preservação e acréscimos, alteridade, representação e experiência espaciais, paisagem e modernismo brasileiro.
Esta proposta de um diálogo sobre um patrimônio arquitetônico específico pelo projeto abraça uma série de objetivos e desafios didáticos e culturais. Um elemento central da proposta é o fato de que este projeto foi desenvolvido por um grupo internacional de estudantes. Eles vêm dos Estados Unidos, da China, de Honduras e da Coréia e estudam numa escola norte-americana, com pouquíssimo ou nenhum conhecimento prévio sobre o Brasil ou sobre a arquitetura brasileira. Num momento em que o mundo se comprime, os repertórios sócio-culturais – assim como a dificuldade de reconhecer a sua multiplicidade – se ampliam com desdobramentos importantes para a arquitetura, mas ainda pouco explorados pedagogicamente. Dessa forma, o exercício didático pretendeu ampliar esses repertórios mutuamente de maneira particular: por um lado, expondo os alunos – o olhar estrangeiro, que no Brasil tem gosto doce-amargo – à realidade brasileira; por outro lado, expondo-os, ainda que de forma limitada, a essa realidade e ao olhar daqueles que vivem dentro dela. O diálogo – assim como os seus ruídos – se iniciou à distância, intensificou-se com a visita da equipe ao Brasil no meio do processo e, esperemos, continua através da exposição.
O projeto foi realizado em quatro meses, entre setembro e dezembro de 2005, período que corresponde a um semestre letivo de ateliê em nível avançado. Este tipo de ateliê tem como objetivo principal o esforço de síntese projetual indo da conceituação e implantação a detalhes construtivos. Colocar os alunos em situação foi a primeira etapa do trabalho. O trabalho se iniciou com uma pesquisa colaborativa sobre arquitetura brasileira na segunda metade do século XX. Daí resultou uma pequena exposição e discussão que foi realizada na escola nos Estados Unidos. Esta etapa incluiu, em seguida, o estudo e a análise de precedentes arquitetônicos de museus, arquivos e galerias de arquitetura, assim como visitas técnicas a arquivos históricos, de bibliotecas e de museus em Saint Louis.
A segunda etapa foi dedicada à conceitualização e a realização de um estudo preliminar de implantação e projeto em preparação para uma visita de uma semana a São Paulo, que ocorreu no mês de outubro. Durante a visita, os alunos foram expostos ao quotidiano da cidade do centro histórico a periferia, visitaram muitos dos principais edifícios emblemáticos da arquitetura paulistana do século XX, visitaram escritórios de arquitetura, além de ter analisado e documentado exaustivamente a situação específica de projeto, que incluiu muitas conversas com o pessoal técnico da biblioteca e dos arquivos.
O objetivo principal da viagem da equipe ao Brasil – aliás, auto-financiada pelos próprios alunos – foi fazer uma apresentação pública dos projetos à comunidade da FAUUSP, na forma de exposição e de discussões individuais e coletivas, a fim de coletar críticas e sugestões para a continuidade do projeto. Vários alunos da FAU participaram da discussão com os alunos da escola norte-americana e também do debate que contou com a presença inestimável da diretora da biblioteca Eliana A. Marques e dos arquitetos e professores Ângelo Bucci, Antônio Carlos Barossi, Hugo Segawa, José Américo de Brito Cruz, Marcelo C. Ferraz e Vera Pallamin. A partir da visita, as propostas preliminares foram revistas, aprofundadas durante os meses de novembro e dezembro, resultando nas propostas que foram expostas na escola nos Estados Unidos e que agora chegam ao Brasil.
A externalidade emocional dos projetistas às virtudes e aos vícios da situação apresentada foi a faca-de-dois-gumes do desafio pedagógico. Ao mesmo tempo em que o seu distanciamento cultural oferece a possibilidade de novas deduções, ele também traz o risco resultar em conclusões apressadas e equivocadas, quando não auto-referentes. Considerando a melhor das hipóteses, o exercício arriscou por passar a faca no fio tendo em conta as suas ambigüidades. E a exposição não procura dissimulá-las. O confronto com o legado da linguagem e dos conceitos apresentados pela proximidade ao edifício projetado por Vilanova Artigas era inevitável. Conceitualmente e espacialmente, o desafio vem da sua condição dominante.
O confronto com o edifício do laboratório de materiais (LAME) de Giancarlo Gasperini, que representa uma outra postura e sem o mesmo nível de êxito projetual de seu parceiro ancestral, emergiu como um desafio transformador. De formas diversas, as propostas se aprofundaram nessas premissas. No entanto, esse aprofundamento não foi simples e encontrou entraves. Por exemplo, como reconhecer a importância histórica da escola e da relação problemática entre um programa mutável e um edifício que ganhou caráter canônico, pouco flexível e quase sacralizado; como incorporar e valorizar o edifício do LAME, que se aproxima programaticamente do edifício proposto? O impasse histórico se colocou de frente desde os primeiros passes do projeto. O que culturalmente era externo ao contexto dos alunos, tornou-se central para o desenvolvimento do projeto: por um lado, reverência à monumentalidade, à memória do edifício da FAU e das idéias de Artigas e dos modernismos brasileiros; por outro lado, estranhamento para com o titubear da arquitetura brasileira desde os anos 1970s e 80s.
Foi-se o período de auto-confiança e de grandes realizações do moderno, particularmente da linguagem e do contexto político e cultural que marcou muito da produção arquitetônica brasileira durante boa parte do século XX. Essa produção nas décadas mais recentes se desestabilizou, o ensino de projeto se transformou pelas mudanças da realidade vivida e pela insuficiência e exaurimento de conceitos precedentes. Não cabe aqui descrever os projetos, que podem ser analisados individualmente na exposição, e tampouco apresentar uma síntese das propostas, pois não há unicidade. Encaramos esse aspecto como parte do caráter experimental do exercício didático, mas também revelador das transformações de ordem mais geral que continuamente colocam em cheque a linguagem da arquitetura no Brasil e internacionalmente.
Entender, incorporar, rejeitar, reverenciar, resistir, expandir, negar o outro e a si próprio foram atitudes constantes neste exercício. Todos os participantes da equipe, de uma forma ou outra, pisamos ovos durante o projeto, mas também nos alimentamos deles, por assim dizer. O objetivo do processo não se limitou ao enfrentamento do projeto como uma solução de problemas, ainda que o aprofundamento das propostas tenha procurado materializar as idéias para além de esquemas abstratos e gestos espaciais. Ao visitar a FAUUSP, os alunos estrangeiros se comoveram e se impressionaram com possibilidades até então alheias à sua vivência. Ao experienciar a realidade brasileira e paulistana, ainda que de forma limitada, eles também se impressionaram. Alguns se comoveram. O projeto desenvolvido pela equipe oscila entre esses mundos e o repertório próprio de cada aluno, arquiteto em formação.
O desafio para o arquiteto nesse exercício específico, de certa forma duplamente antropofágico, foi conciliar diferenças e paradoxos na arquitetura como um medium de memória ativa. A exposição está aberta para que os desafios contidos nela continuem abertos. O convite está aberto para que a idéia de um museu, arquivo e galeria de arquitetura cultive e reflita criticamente sobre a inevitável e inestimável herança dos nossos modernos mais próximos. Se morremos ou não como modernos, não cabe à mostra responder. No entanto, nós continuamos vivos. E isso é que é ao mesmo tempo incômodo e estimulante.
notas
[publicação: novembro 2006]
Ficha técnica
Exposição
Museu de Arquitetura Brasileira: um diálogo projetual com o moderno
Local
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
Data
Agosto 2006
Curador da exposição e coordenador do ateliê de projeto
Zeuler R. M. A. Lima, Professor Doutor
Participantes do ateliê de projeto
Amanda Bass, Ashley Marsh, Brett Enloe, Christopher Qualls, Claudia Barahona, Jin Kyung-Kim, Kai Liu, Leslie Robert, Matthew Dudzik, Rachel Doninger, Rubi Xu, Tomas Rizo, Vincent Chieh-Chin (mestrandos da Graduate School of Architecture and Urban Design, Washington University in Saint Louis).
Zeuler Lima, Washington, Estados Unidos