Conheci o grupo do Brasil Arquitetura, então constituído por Marcelo Ferraz, Marcelo Suzuki e Francisco Fanucci, quando trabalhamos juntos em 1986, na realização dos projetos de Lina Bo Bardi para a recuperação do sítio histórico da ladeira da Misericórdia e da Casa do Benin, ambos em Salvador.
Estabeleceu-se entre nós uma grande identidade, decorrente não só do interesse que manifestavam quanto às alternativas oferecidas pela tecnologia da argamassa armada empregada naqueles dois projetos, mas principalmente por conta da grande admiração que alimentávamos pelo gênio de Lina – personagem maravilhosa que transitava com extrema sensibilidade e segurança por todos os campos da cultura, com sua clareza de conceitos, com seu temperamento forte e impetuoso que a muitos amedrontava, mas que se revelava de rara doçura e benevolência com os amigos queridos. E que, apesar da origem e da formação italiana, soube penetrar e se integrar como poucos brasileiros na intimidade das riquezas culturais de nosso país. Lembro-me da avaliação que fiz do potencial admirável daqueles jovens arquitetos de talento e da importância do convívio deles com Lina, num período em que a arquitetura brasileira se defrontava com os descaminhos do pós-moderno.
Hoje, decorridos cerca de vinte anos desse episódio, fico feliz ao examinar o conjunto magnífico de obras do Brasil Arquitetura. Em cada trabalho nota-se a importância de Vilanova Artigas na formação de toda a geração de arquitetos a que pertence o grupo. É possível identificar também a influência de vários mestres da arquitetura moderna – como Le Corbusier, Mies van der Rohe, Alvar Aalto, Luis Barragán –, mas sempre impregnada de uma atmosfera muito brasileira que passa obrigatoriamente por uma leitura cuidadosa de Lucio Costa, nosso mestre maior que, na década de 30, revolucionou o ensino de arquitetura no Rio de Janeiro e propiciou o florescimento do gênio de Oscar Niemeyer e de uma geração de grandes arquitetos cariocas: Affonso Eduardo Reidy, os irmãos Marcelo, Milton e Maurício Roberto, Alcides da Rocha Miranda, Jorge Moreira e Aldary Toledo, entre muitos outros.
Os ensinamentos do dr. Lucio, sempre presentes nos trabalhos do Brasil Arquitetura, tornam-se mais patentes nas residências, bem implantadas e cuidadosamente integradas à paisagem, com soluções construtivas cheias de invenção, denotando a intenção permanente de explorar exaustivamente as alternativas técnicas disponíveis adequadas às características de cada material. A leitura das técnicas construtivas empregadas é sempre clara em cada obra, ficando evidente que nunca foram improvisadas para corrigir problemas, mas, sim, criteriosamente selecionadas desde o início do processo de criação, aprimorando-se ou se enriquecendo no decorrer do desenvolvimento do projeto em perfeita harmonia com o partido adotado.
O saudável interesse em participar intensamente de todo o processo construtivo se revela na preocupação do grupo em manter a Marcenaria Baraúna como uma extensão do escritório, na qual os arquitetos se exercitam na concepção e produção de mobiliário. Nas palavras de Francisco Fanucci e Marcelo Ferraz:
“Na Baraúna, projetamos ‘móveis de arquiteto’, se é que se pode dizer assim. Os raciocínios, os conceitos, o modo de abordar cada questão são os mesmos adotados nos projetos de edificação ou de urbanismo. A lógica da estrutura, do equilíbrio, do comportamento e da resistência dos materiais, do conforto, da economia de meios e insumos, da essencialidade, tudo nos leva à explicitação do sistema construtivo”.
A obra do Brasil Arquitetura se insere no perfil modernista e despreza os modelos fáceis da arquitetura internacional, mas nem por isso é saudosista ou anacrônica. Ao contrário, tem uma expressão bem atual e brasileira, pois interpreta com clareza o contexto cultural e socioeconômico do país. Se é regionalista, não é porque se fecha a influências externas, mas simplesmente porque as absorve, as digere e as transforma segundo uma visão que respeita nossa memória, nossas tradições, e porque assume também nossas características climáticas de país tropical.
Por tudo isso, no período conturbado que atravessamos, em que uma das faces mais cruéis da globalização é a destruição das referências culturais, a publicação da obra do Brasil Arquitetura nos oferece, além da alta qualidade do trabalho realizado, um posicionamento profissional claro e corajoso que constitui uma contribuição importante para a formação das novas gerações de arquitetos.
notas
[artigo publicado originalmente como Apresentação do livro: FANUCCI, Francisco; FERRAZ, Marcelo. Brasil Arquitetura. São Paulo: Cosac & Naify, 2005]
[publicação: outubro 2006]
João Filgueiras Lima – Lelé , Salvador BA Brasil