Num mundo que olha e não vê, o desenho é um alento. Desenhar é um modo de dizer que o que se viu, foi visto. Não passou de raspão, não fugiu.
Ou antes, é um dizer, quase sempre sussurrando, que se está vendo, vai sendo visto. Ao mesmo tempo em que documenta, porque registra uma permanência pelo olhar, o desenho é instrumento de descobrir e muito especialmente, de suportar o constituído. Por esse motivo desenhos possuem Autoria.
Captar o que se passa no ar é desafio permanente , porque é ver o que nunca esteve lá, mas no entanto está, implica necessariamente em organizara superfície do papel usando linhas que parecem recobrir outras, então previamente existentes. Mas como estas não existem, porque precisam ser desenhadas e ainda não foram, o próprio papel pode ser dispensado. E o traçar torna-se traç ar.
Já em 1607, Federico Zuccaro, desenvolvendo o conceito de desenho como Idéia, anota que o termo disegno trás consigo o signo envolvido pela divindade, e assim desenhar é compartilhar, ainda que na escala reduzida do ser-humano, o sopro que é o elo (divino) que liga as coisas.
É claro que usualmente o desenho é o resultado da ação da mão do artista sobre o papel, aliviada de sua limitação de não poder riscar, marcando.
Sob o comando do sentir, o olhar conduz a mão.
Mas aqui, não.
O olhar de Celso Minozzi desenha no ar o que ele vê, mas nós (ainda) não vemos.
O resultado é confortante. As intervenções resultantes, sobre o papel, que é necessário para nós, são como imagens de imagens do que foi sendo traçado no ar e reduzido ao plano de representação.
No geral o papel sobre o qual se desenha é opaco, mas o mundo não é. Quanto mais o artista se estabelece como artista, mais o real fica etéreo e vai perdendo materialidade e como conseqüência sua representação também. Essa desmaterialização crescente é inevitável e conduz a um estado de encantamento, inicialmente para o Artista e à medida em que este com-partilha o real com o Observador, ambos se encantam, obviamente não um pelo outro, mas ambos com o mundo que cintila e cintila.
Assim existir converte-se em participar desse real que não brilha por si mesmo, mas antes até ofusca pela ação do Artista que convoca o Observador a configurar o espetáculo de ser-no-mundo.
O desenho parece ser sempre um desenho sobre. Sobre um suporte, o papel, e sobre um tema, a organização plástica da superfície do papel pelos traços providenciados pelo Artista.
Neste caso, não.
Aqui o papel apresenta-se como suporte desmaterializado de um véu que encerra o que se pode e deve imaginar, e que até então não se imaginara.
Então o papel perde sua condição até então primordial de suporte do sobre, e atinge uma nova situação de filtro que recebe o filtro através do qual Celso Minozzi olha, e olhando vê o mundo, isto é, constitui esse mundo.
Nesse sentido a obra dele insere-se ao mesmo numa absoluta abstração, calcada numa enganosa figuração e na mais pura e radical tradição paisagística.
É que o desenho da paisagem é sempre um aprender a ver.
O paisagista olha, mas todo mundo olha.
O olho dele a-ponta, d-escreve o que há para ser visto, porque no geral mais se olha que se vê. E no mais das vezes não se vê nada, com os nosso processos mentais, simplificações do tipo o que é isto, o que isto quer dizer. Ou o que é pior, isto não quer dizer nada, isto não é nada. Comose o artista fosse um tipo de artista,e a obra de arte um tipo de dicionário.
O que se vê não está pronto lá, para-ser-visto.
Não é um objeto, é um constructo.
E a visão do paisagista vai deline(ando)do vai percorrendo o que não há, para que seja.
Celso Minozzi grava esse per-curso visível nas tênues tessituras da ambigüidade entre a simples verificação atmosférica e o sonho.
Mas que sonho!
Linhas verticais próximas, para nós podem ser apenas textura, mas para ele são retículas de um imaginar que não se completa nunca.
Determina e não determina, leva a ver e oculta.
Uma árvore é uma árvore, e não é.
É imagem e não é. É traço que não traça.
É como chuva que não molha, mas que depois dela o ar fica límpido.
Isso fica explícito no tratamento das superfícies das paredes dos edifícios, que são densas porque mostras de mera arquitetonicidade. São esgarçadas porque trazem vestígios de suportes, de olhares que acariciam argamassas rugosas, de irregularidades das telhas.
O olho do Observador – o nosso – fica exausto porque não encontra ponto de parada um reduto a partir do qual seja possível chegar, um eis aí... um suporte para tomar fôlego. Nada.
Os brilhos das luzes ficam sempre dispersos, espalhados pelas fímbrias da determinação do ver-e-ver.
E sempre o que se vê é novo. Mas ao mesmo tempo tudo o qie é possível ver está num só desenho, está em todos e não está em nenhum.
Quem está frente a uma paisagem fica ele próprio instável querendo olhar para tudo e olhando, vendo e querendo ao mesmo tempo olhar “um pouco mais para lá”. Esse mais para lá não é atingido nunca e a observação torna-se ação de refazer.
Os desenhos aqui mostrados refletem isso diretamente, porque como nada há de interessante no mundo, nada há para ser visto e ao mesmo tempo, tudo é maravilhoso e extremamente interessante, o que traçar?
Celso Minozzi responde com sua obra, marcando a constituição da transparência, não usando temas porque esse é seu tema.
Seus desenhos mostram pre-textos para experienciar o trans da aparência.
Vez por outra escapa uma cor ou outra. Acontece que essas cores são sempre cores de coisas, cores de matéria, e nada aqui é matéria. É tudo abstração mascarada de figuração.
Muitas vezes apenas para descrever a superfície da matéria, é suficiente um desenho povero : isto é vermelho, aquilo é água, aquilo é vegetação... um desenho para ágrafos.
Porém para se mostrar o que se vê é preciso traçar na mente. E com a mente.
sobre o autor
Célio Pimenta é professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Célio Pimenta, São Paulo SP Brasil