“Now: encontros no presente contínuo” é “um processo de investigação, criação e difusão das transformações científicas, tecnológicas, artísticas, sociais e espirituais que têm lugar nesse início de século XXI” (www.cccb.org/now). Visa explorar “as três dimensões da nova condição urbana”: “A conquista do invisível”: formas de “recuperação comunitárias e públicas” do espectro eletromagmético, a saber: rádio, internet wireless, TV; “Recuperando a cidade: arte de rua, dissidência gráfica e contrapublicidade” e “Neurótica: habitat contemporâneo frente ao caos climático”.
Em sua quarta edição, realizada no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, CCCB, nos dias 29 de novembro a 01 de dezembro, “Now” contou com debatedores reconhecidos internacionalmente como Richard Sennett (sociólogo e autor de O declínio do homem público, entre outros livros) e William J. Mitchell (catedrático em arquitetura no MIT e autor de E-topia), além do artista digital Jonah Brucker-Cohen, o crítico e ativista Armin Medosh, o diretor da Anti-advertising Agency de New York Steve Lambert e o representante da Résistence à l’Agréssion Publicitaire (RAP-Paris), Pierre Humeau.
Não havia nenhum convidado brasileiro, mas isso entretanto não impediu que São Paulo fosse protagonista inesperada.
I
Foto típica da Avenida Paulista. Tirada do alto de algum de seus prédios. De uma janela qualquer. Uma configuração estranhamente particular e inconfundível, apesar de essencialmente genérica. A acumulação extensiva de arquitetura, paralelamente disposta, configura um vale artificial profundo e contínuo. Sobre os edificios, muitas antenas. Momentaneamente, a percepção iludida por essa topografia invertida é desafiada pela quase invisibilidade do layer infra-estrutural que paira etéreo sobre o cotidiano borrado.
Armin Medosh: “estive em São Paulo este ano e me impressionou profundamente essa imagem: na mais importante cidade da América Latina, na avenida onde se concentram os bancos e instituições financeiras mais importantes, cada edificio tem a sua própria antena. Às vezes um só edificio suporta várias dessas estruturas. É a explicitação mais radical do poder do espectro eletromagnético e da importância de controlá-lo. E é por isso que a arte e suas instituições têm se dedicado ultimamente ao tema”.
Enquanto fala, continuo tentando localizar o MASP na foto. Porém, percebendo logo a impossibilidade, passo a imaginar como tal “instituição de arte” tem se dedicado a explorar todo potencial eletromagnético “armazenado” naquele hiato construtivo sensacional. Recordo então da proposta de anexo recentemente defendida pelo arqui-diretor da instituição (aquela torre de filmes de “sci-fi B”). Imagino se ao invés de um café-mirante para “ver o mar em dias claros”, e de mais arquitetura, o projeto contemplasse uma antena como a de seus vizinhos. Ou seja, que tivesse capuccino para os turistas, mas que fosse essencialmente um dispositivo real de comunicação eletromagnética. Que além da sua impressionante capacidade de re-territorialização da experiência pedestre (humana), o MASP explorasse todo o potencial tecnológico do futuro patrocinador para superar paradigmas estéticos do futuro do passado.
Afinal, não é o museu contemporâneo um lugar de produção? Imagine se fosse também um sistema de transmissão.
II
“Lorrane, 29, 1,75 m, 67 kg, loira, bronzeada, pés 39, calcinha M, neta de franceses” (Folha de São Paulo, 28 nov. 2007)
A publicidade está na mira dos movimentos anti-globalização. Quando Naomi Klein publicou No Logo: a tirania das marcas em um planeta vendido em 2000 possivelmente não imaginasse o quão intensos se tornariam, em tão pouco tempo, os conflitos entre marcas e grupos “anti-capitalistas”. Essas organizações que se estruturam em redes de interconectividade global para ações locais operando através da internet, teoricamente compartilham a crença por uma espécie de marxismo light ou situacionismo reloaded. Para os “novos-ativistas”, “a sociedade do espetáculo” preconizada por Guy Debord em 1967, é a evolução do “sistema”, e a publicidade, como “arte oficial do capitalismo”, deve ser banida indiscriminadamente.
Pierre Humeau é um novo-ativista. Representante da Résistence à l’Agréssion Publicitaire (RAP) na França, veio de Paris a Barcelona de bicicleta e ao longo da viagem registrou em centenas de fotografias a paisagem semiótica dos Pirineus: out-doors, anúncios de todos os tipos, painéis, placas, banners.
Nascido em 1984, Pierre que abre seu powerpoint com uma frase de George Orwell, se indigna com a expansão publicitária sobre a paisagem e se surpreende com a monocultura de empresas, anúncios e produtos nos dois lados da fronteira. Em 30 minutos apresenta as ações contra-publicidade da RAP na França: aforismos escritos sobre anúncios no metrô, graffitis se apropriando de displays luminosos, faixas gigantescas eclipsando outdoors inteiros, ativistas escalando edifícios para instalar contra-anúncios, confrontos com a polícia. Um comentário final (ilustrado por um “Sào Paulo” enorme e branco sobre fundo preto): “esta cidade é um exemplo a ser seguido na luta conta a publicidade, graças à nova lei criada pelo prefeito”.
Pierre Humeau não conhece São Paulo. Também não conhece Lorrane e não sabe que esta intrépida “garota de programa, ou massagista erótica, a depender do valor combinado” é um dos maiores desafios atuais à Lei Cidade Limpa. Não sabe que por espalhar faixas pelo bairro de Moema, Lorrane já foi multada em R$120 mil, somente não cobrados por ser “pessoa física”. Nem mesmo sabe que “nos próximos dias, a subprefeitura planeja uma ação conjunta com a Polícia Civil para lacrar a casa de Lorrane e colocar blocos de concreto fechando a entrada” (Folha de São Paulo, 28 nov. 2007).
Mas o que ninguém mesmo sabe é se a “campeã da poluição visual” paulistana estará dentro ou fora de casa no momento dessa “ação”.
III
Em tempos de consumo experimental, em que o problema não é a saturação de imagens, mas a falta de imaginários habitáveis, “a sociedade do espetáculo” é somente o cliché mais acessível do Condomínio Global onde já se pode viver a verdadeira transcendência corporativa, e do qual a publicidade, progressivamente obsoleta, é a superfície mais efêmera.
Nesse eco-sistema de ar milimetricamente parcelado e equilíbrio desordenado, o “salto pra frente” (great leap foward?) de toda mercadoria é a sua transformação inexorável em arquitetura. Por ser esta a única capaz de dar respostas reais à demanda atual de convergência entre dinheiro e cultura na reprodução do espaço e na gestão dos hábitos. Ou melhor, dar forma à inevitável fusão entre a “indústria cultural” e setores da construção civil para a incorporação total da ecologia cotidiana.
Enquanto combatemos faixas inofensivas com blocos de concreto ou arrancamos out-doors esperando reencontrar o passado na arquitetura, marcas patrocinam a sobrevida das instituições e financiamos voluntariamente a imobilização do futuro, para viver o presente contínuo no “mais charmoso empreendimento imobiliário dos últimos tempos”.
sobre o autor
Wellington Cançado é mestre em arquitetura e co-fundador da vulgo:suprimentos-culturais.Wellington Cançado , São Paulo SP Brasil