O edifício atual do MAP foi construído para ser um cassino. Projetado por Oscar Niemeyer na década de 1940, foi transformado em Museu em 1957 – o cassino havia sido fechado em 1946, com a proibição das casas de jogos no Brasil. No edifício, Niemeyer realiza um trabalho fino com os materiais, as soluções plásticas e espaciais, gerando uma arquitetura inebriante, que toca ao corpo e aos diversos sentidos. Propicia a promenade architecturale de uma maneira sinestésica: o corpo se insere na complexidade do espaço e sua apreensão se faz com o deslocar em uma experiência pluri-sensorial. O toque fino do alabastro soma-se ao vento e som da lagoa e à reflexão do ambiente no grande espelho. A reflexão da voz na boate soma-se ao piso iluminado e à vista panorâmica da lagoa da Pampulha. Assume a arquitetura seu papel de mãe de todas as artes: conjuga os diversos sentidos em uma experiência corporal completa.
Quando tal edifício serve para a exposição de arte, surge um embate. “Trata-se de uma arquitetura insubordinada”, aponta o curador do MAP, Marconi Drummond. A arquitetura não se resigna a ser pano de fundo para as pinturas, desenhos, esculturas, etc. Não assume o lugar supostamente neutro do cubo branco, que, para O’doherty, “coloca a obra de arte entre aspas”. Este colocar entre aspas foi a maneira hegemônica de se expor durante o séc. XX e pode ser visto como uma ampliação dos procedimentos da ciência moderna, que isola fenômenos de seu contexto para vê-los objetivamente. No MAP, a obra de arte não é isolada do mundo (como bactérias nas lâminas de um microscópio) mas deve entrar em diálogo com a arquitetura na qual se insere. O edifício participa da apreensão da arte, o que tem de ser assumido pelos que ali expõem.
Há alguns anos, a curadoria anterior investiu suas fichas nesta relação arte/arquitetura. Traçou uma linha curatorial focada sobre práticas artísticas que assumissem uma relação dialogal entre o museu e a obra que ali se instala, apresenta e expõe (para falarmos com Buren). As exposições de diversos artistas, de Damien Ortega a Rivane Neuenschwander, foram obras construídas para aquela arquitetura, surgidas de um diálogo do artista com as especificidades do edifício. Também o programa de residência artística se voltou para a relação com a arquitetura: os artistas residentes deveriam realizar trabalhos site specifics no edifício.
A curadoria atual, propondo a re-inserção de artistas que trabalham em suportes bi-dimensionais, fez uma outra aposta: o diálogo com o edifício seria cumprido pela expografia. Este é o caso das exposições Binária e NeoVanguardas , ocorridas em 2007, ano de comemoração do cinqüentenário do MAP. Em ambas, os objetos expostos eram principalmente bi-dimensionais (pinturas, desenhos, fotografias, etc.), e o diálogo com o edifício foi feito pelo projeto expositivo.
Fato é que fazer uma exposição no MAP não é tarefa banal. A arquitetura não está pronta, com todas as paredes brancas, passiva, esperando a instalação da exposição. Além disso, o edifício do Cassino não suporta uma reserva técnica adequada e os espaços administrativos são pequenos. Parecem ser estas as motivações da Direção do MAP para a construção do anexo. Ter uma galeria grande, neutra, passiva, flexível e silenciosa. Ou seja, subordinada. Uma reserva técnica adequada e confortável, além dos espaços administrativos apropriados para o porte do Museu.
O projeto do anexo cumpre estas demandas? Quanto à reserva técnica e aos espaços administrativos, parecem estar bem dimensionados, embora exista o receio de haver problemas de umidade, pela localização no subsolo. O espaço expositivo constitui-se de duas galerias, uma medindo 12x20m com 7,5m de pé direito e a outra medindo cerca de 20x60m com 4m de pé direito. A primeira funcionará como hall de recepção e a segunda como galeria efetivamente. Nela, as duas únicas paredes medem 20m e estão distanciadas em cerca de 60m. Na face sudoeste há um enorme pano de vidro voltado para o edifício do Cassino e a Lagoa, mas também para o sol escaldante das tardes de Belo Horizonte.
A sua volumetria é simples, esquemática, mais próxima da limpeza visual da produção recente de Niemeyer do que da complexidade e tensão presentes no edifício do Cassino. Não possui, certamente, a fineza, a elaboração e a qualidade ambiental e de materiais do primeiro Niemeyer. Tenta ser pano de fundo: por dentro, para as obras de arte, e, por fora, para o edifício do Cassino.
Como pano de fundo interior (cubo branco), o projeto falha: o baixo pé direito da galeria, que dificulta a exposição de grandes objetos e de instalações; a ausência de paredes, que demandará a montagem de painéis para cada nova exposição; e o enorme pano de vidro, que deverá ser coberto com painéis, para se expor as obras e evitar a insolação direta, farão com que o prédio tenha de ser novamente adaptado para a função à qual se destina.
Fazer exposições no MAP continuará uma tarefa difícil. No entanto, se no edifício do Cassino esta dificuldade gerou proposições artísticas e expositivas ricas, no anexo o mesmo não deve ocorrer. Pois, a suposta neutralidade do edifício (sua simplicidade formal, espacial e de materiais) não instiga diálogos ricos e proposições radicais como no Cassino. Entre o cubo branco e o Cassino, o Anexo fica no meio do caminho: não possui nem a praticidade do primeiro nem a riqueza arquitetônica do segundo.
David Sperling chamou o Guggenheim de Bilbao de ‘cubo branco decorado’. Por dentro, o cubo branco ideal, isolando a obra de arte do mundo; por fora, uma decoração autônoma, independente do interior. Este projeto do anexo do MAP possui características inversas. Por fora, passa a imagem de cubo branco, e, por dentro, precisa ser adaptado para funcionar como tal. Eis o que ele é: um edifício fantasiado de cubo branco. Um Íncubo Branco: um pesadelo tardomodernista que assombra os sonhos da arquitetura brasileira e atrasa o despertar de uma proposta contemporânea.
O autor do projeto é Oscar Niemeyer. Aos 100 anos, encomendam-lhe projetos pelos quatro cantos do País. Há uma paixão por Niemeyer entre os governantes, querendo, talvez, aproximarem-se a Juscelino Kubitschek – este sim, visionário, ao lançar o jovem Niemeyer no projeto da Pampulha. E Belo Horizonte perde a chance de ter uma grande obra de arquitetura contemporânea. Como se Le Corbusier fosse vivo em 1970 e o Centro Pompidou lhe fosse encomendado, ao invés de ter sido feito o enorme concurso internacional que premiou e construiu o projeto inovador de Renzo Piano e Richard Rogers. Paris teria perdido um edifício que foi marco de uma época e que impulsionou uma nova abordagem para a arquitetura.
Por aqui, os concursos têm menos lugar que a grife Niemeyer. Mais de 60 anos depois da construção do Cassino, lhe é encomendado este anexo. O arquiteto se coloca na delicada situação de dialogar com sua própria obra – e, talvez, com sua obra prima, trabalhada criativamente em cada detalhe por aquele jovem arquiteto de outrora. Diálogo mais autista e tarefa mais ingrata não poderiam haver.
notas
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Artigo originalmente publicado na revista espanhola A-desk (www.a-desk.org).
sobre o autor
Roberto R. Andrés é arquiteto e mestre em teoria da arquitetura pela UFMG.
Roberto R. Andrés, Belo Horizonte MG Brasil