“Pra que partir, se em toda parte é o fim do mundo?” diria Cioran, o filósofo pessimista. Ou se escutaria a sentença inexorável do inspirado Fernando Pessoa:
“A morte chega cedo,
Pois breve é toda a vida
O instante é o arremedo
De uma coisa perdida"Foi inesperada essa partida. Eu que o imaginava ainda em Lisboa ou Madri, conforme planejara. Eis que o sinto reduzido a uma lacônica notícia telefônica: “o Joaquim Guedes morreu, tragicamente, atropelado”. Meu relógio marcava meia-noite, fim do dia 27 de julho de 2008. Fim da vida de um grande amigo, encontro trágico dos dois ponteiros de um relógio que parou. A vida e a morte se despedem. E o pensamento cessa.
Havíamos estado juntos, há pouco tempo, em Torino, Itália, como membros da delegação oficial do IAB, junto ao XXIII Congresso Mundial de Arquitetos. Foram dez dias de convivência, durante esse longo evento, o Congresso e, depois, a Assembléia Internacional. Além dos contatos cotidianos, os onze membros da delegação realizaram várias reuniões, para troca de idéias e fixação de estratégias.
Percebi algo de estranho no olhar do companheiro. Eu não conseguia distinguir nesse olhar a fronteira entre o cansaço e a tristeza. Seu dinamismo próprio e polêmico guardavam escala modesta. Seria essa uma premonição? Não sei. Mas, posso afirmar que o velho companheiro não morreu feliz.
Fomos amigos ao longo de 40 anos, e me foi possível conhecê-lo muito bem. Durante esse período de tempo, fomos sócios por sete anos (Guedes, eu, Paulo Guedes, Hiroo Nanjo, Luiz Manini), de 1981 a 1988; convivemos longos anos na FAU-USP, no exercício da docência, e, ao longo de nossa militância, junto ao IAB.
As estórias são muitas, e muitas foram as refregas, as discussões, as parcerias, dissensões, conferências, seminários, congressos, eventos compartilhados. Todos esses são fatores que nos ajudam na formação do processo cumulativo, fixando na memória as glórias e os infortúnios.
Guedes sempre cultivou os atributos do pensamento dialético, mesmo que por vezes tivesse enfrentado dificuldades ao precisar os limites do contraditório. Cultivou as artes, a música, o teatro, a literatura, a filosofia, as tecnologias e a arquitetura, sempre aberto às alegrias e aos percalços do novo. Com esses valores, moldou o cotidiano de suas preocupações, suas amizades, seus afetos, e suas paixões profissionais. Nunca economizou o sorriso, nem a gentileza, mesmo que tivesse de desenhar na face os momentos de contrariedade, através de seu característico sobrolho contraído.
Sua ambição era justa, condizente com a escala de seu talento e de sua competência: uma obra vasta e de pleno reconhecimento. Nem tudo o que quis, conseguiu. Levou consigo a mágoa da contrariedade e da mesquinhez do mercado de trabalho, raramente pautado pela qualidade e por valores culturais. Soube construir sua segura visão do mundo da arquitetura e seus discursos próprios, perspicazes e polêmicos. A arquitetura, expressou-a sempre pela racionalidade madura de seu método de trabalho, perseguindo a forma, a excelência tecnológica, a concretude daquilo que era possível e, afinal, a beleza. Sua linguagem expressiva não seguiu os cânones dos postulados racionalistas de Le Corbusier. O mestre finlandês, Alvar Aalto, foi seu grande inspirador. Porém, o Brasil vivia a ciranda das glórias da escola corbusiana. Em um mundo que não professava a cultura da pluralidade, sobrou-lhe a alcunha perversa de “alienígena”, pela ousadia de tal procedimento. Não se pode negar que Guedes tenha sido um contraponto na esteira do movimento moderno da arquitetura brasileira, a escala justa da necessidade do contraditório, alimentadora de um debate que nunca existiu, no Brasil. Assim, também foi a abstinência brasileira em relação à linguagem pós-moderna. As escolas de arquitetura, e os arquitetos, foram privados da discussão do que acontecia no resto do mundo.
Guedes viveu, no mais alto nível, o exercício da docência. Reconhecido, nesse mister, plenamente por alunos e professores. Era mestre de uma implacável disciplina de trabalho, numa cobrança superlativa, sem qualquer tipo de concessão em relação aos maus hábitos do projeto sem qualidade. Uma penitência admissível, um ganho inquestionável, sempre admitindo e reconhecido pelos alunos.
O discurso irreverente e polêmico, no relacionamento cotidiano da prática profissional, recolhe-se nas pausas do trabalho intelectual, para dar lugar ao nascimento de textos cuidadosamente elaborados, registrando contribuições valiosas. Esses textos, sem qualquer dúvida, merecem ser organizados sob a forma de livro. O escasso discurso da arquitetura brasileira e, igualmente o raro discurso dos “arquitetos-de-prancheta”, necessitam do conjunto dessas reflexões.
Guedes não foi um “campeão”, porque, como os bons atletas, não teve sorte em alguns setores da frente de batalha, dentre eles, o da política profissional. Queria ser presidente do IAB São Paulo, queria ser vereador, e, também, Presidente do IAB Nacional. Buscava com isso, nessa faixa de poder, a democratização do mercado de trabalho para os arquitetos.
Por fim, o velho timoneiro contrariou o caminho dos automóveis, e foi colhido de surpresa, não teve tempo de racionalizar esse incidente. Não teve tempo de planejar a partida, nessa hora em que cessa o pensamento.
Guedes não teve tempo de concluir sua obra, porque “a morte chegou cedo”.
Miguel Pereira, arquiteto, São Paulo SP Brasil