De que matéria é feito o visível? Conecta aquele que vê com a coisa vista, desaparece no instante em que o olho se fecha... essa questão é apresentada na recente produção fotográfica de Inaê Coutinho, que se detém nos interiores de casas humildes de Água Limpa (GO), Pirinópolis (GO) e Paraty (RJ). Se não há razão para se duvidar do aspecto científico, do fenômeno da visão como operação óptica e psicofisiológica, quanto à arte, a explicação demanda a articulação de outros tantos conceitos e preceitos. Inaê deseja (supõe-se que deseje) nestas imagens, resgatar a matéria de que é feita a própria imagem, que ao desaparecer, converte-se em memória, recordação. Ao propor, intuitivamente, uma analogia entre a matéria do visível e a matéria da memória, a artista tangencia ligações sobre a visão já propostas por antigas autoridades.
Ali ibn Isa e Hunain ibn Ishaq, das antigas Assíria e Babilônia, já faziam tal ligação: os ventos que os trazem para cá, arrastam consigo o pó de outrora, que circula no ar das casas fotografadas. Seguindo seu pensamento, a visão partiria de uma disponibilidade interna do observador que, agindo em contato com o ar, que por sua vez toca o objeto observado, se concretiza num retorno ao próprio observador. O que entendemos como raios, então chamados de espíritos animais, são os agentes deste processo. Seu percurso tem origem dentro do cérebro, nas arcas da ‘fantasia’, da ‘memória’ e da ‘imaginação’. Transportados pelo sangue, são filtrados pelo fígado e passam pelo coração, onde são purificados. Então, atravessam a retina, o cristalino e o furo da pupila, misturando-se, por fim, ao ar circundante. No ar, os raios emanados do olho reunem-se à coisa vista e, no sentido contrário, voltam ao olho, imprimindo-a sobre o cristalino e depois armazenando-a nas já referidas arcas. O visível se dá quando os espíritos vitais de nossos corpos, animados no cérebro, peregrinam para fora do corpo e agem junto ao ar e ao que é visto, restituindo ao olho a imagem captada.
O olhar possui a força para agregar as coisas mais afastadas graças ao ar, sentindo delas as suas cores e formas. Ao tocá-las, ao abraçá-las, o olhar as percebe, as “cata”, estabelecendo um vínculo entre o espírito, o olho, a luz e o ar iluminado.
As fotografias aqui expostas encenam justamente este momento de reunião, em que todos os elementos responsáveis pelo fenômeno do visível são materializados. A luz, corpórea, entra por frestas ou se oferece em nesgas, definindo os contornos e atravessando o espaço como fantasmas de luz. Do olho, coincidente com a lente da câmera, parte aquele que vê como um espírito peregrino em busca daquilo que sempre soube existir (pois o torna existente), para em seguida restituir à memória a imagem captada, porém experimentada, pela comunhão com o meio exterior onde, no ar inundado de luz, as coisas habitam.
A solidão presente nestas fotos não ilude os demais espectadores porque é imaginada na recepção do visível, subjetiva, pela imaginação, fantasia e memória da artista. A imagem, neste caso, não se oferece aos sentidos do espectador como algo insignificante, imagem acidental, sem essência ou falsa. Todos aqueles objetos, aquelas coisas, a cortina transpassada pela luz do sol, a ponto de se incendiar; a velha cama desarrumada guardando ainda os vestígios do dormidor; a velha bicicleta; os utensílios baratos espalhados pela mesa, vasos, flores de plástico, frascos e latas, ou a pequena estrela do mar sobrestando o arco de luz que percorre a pálida parede a supor a presença do olho, são imagens sensíveis materiais, e, portanto, essenciais.
As fotografias de Inaê não são crônicas da vida alheia, ou imagens que queiram ser registros de alguma iconografia regional com conotação antropológica. Revelam as intenções (que são os outros nomes dados aos raios visíveis pelos antigos) que também são interiores, pois respondem aos espíritos ou sentidos peregrinos, egressos de algum lugar, sempre em regresso para algum lugar.
notas
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O presente artigo é o texto curatorial da exposição Inaê Coutinho – da luz, Espaço Porto Seguro de Fotografia / Galeria Guaianases, São Paulo, de 20 de setembro a 19 de outubro de 2008.
sobre o autor
Luiz Armando Bagolin é professor de Estética da FAAP/SP e de história da arte e arquitetura da PUC/Poços de Caldas.
Luiz Armando Bagolin, São Paulo SP Brasil