Insisto gratuitamente em desenhar a lógica desta miragem da miragem, que é a escritura de Antônio Luiz M. de Andrade (Almandrade). Miragem da miragem porque o sujeito Almandrade, faiscamento de rituais, marcas da instituição / arte “produz” uma escritura na garantia desta legitimidade. O pequeno escândalo anal em que este artista insiste, poderia não ser fascinante. Aliás, o teorema de Godel também. Andrade, como Godel, produz um saber sobre a impossibilidade de consistência de um sistema de signos. Godel teve como solo / texto / doxa, desmitologisar a prática de Frege e Russel; já Andrade tem como solo a ser desconstruido, o construtivismo. Contra o mapeamento higiênico do espaço significante que postulava o construtivismo. Propõe Almandrade uma máquina semiótica atravessada pelo desejo, pelo poder, pelo gratuito e pela loucura. Contra a lei da acumulação do construtivismo ele lança o desperdício.
O território artístico funciona de forma semelhante ao sintoma, ao sonho. O desejo social recalcado para ser realizado implica na instauração de compromisso com a ordem, com o sonho. O desejo pode ser realizado no sujeito e no espaço gramaticalizado pelo compromisso, na sociedade também, o espaço é uma gelatina desejante permitida. Andrade como Duchamp, instaura uma discussão sobre compromisso “sua arte gera um terror geométrico, que só se suporta como um riso”.
Armadilhas para Deus
Outro método tem os trabalhos. Tomam como ponto de discussão, não o real, mas sim o conjunto de dispositivos que garantem que uma representação seja vivida como real, verdadeira. Neste sentido nos oferecem coordenadas de um ponto inexistente.
Um pequeno livro lacrado com parafuso, e o seguinte título: “Conheça Lautréamont”. O olhar com seu sensualismo empírico se torna inoperante. O trabalho não sede ao mito da retina, exige, ao contrário, um cálculo, uma operação mental. O conde Lautréamont, sabemos, é o pseudônimo do autor dos “Cantos de Maldoror”. Esse escritor obsessivamente apagou todas as suas pegadas, assassinou o mito do autor.
Um livro sobre um acontecimento que é um puro enigma é um livro desejado, mas o problema é que esse livro está lacrado. Paradoxo: livro que propõe reconstituir um sentido através da interdição do mesmo. A interdição do sentido, a suspensão do sentido é, parece-me, uma situação impossível, ou mais especificamente uma situação mental. A ausência de sentido é um aparelho epistemológico através do qual podemos “observar” os buracos negros da linguagem, área utópica onde há o desejo de representar o real, onde a linguagem goza de seu próprio funcionamento.
Um outro trabalho: dois pedaços de madeira comprimem uma mola presa com arame. O mecanismo composto por esses elementos retém uma energia. Retenção inútil, como a criança exerce com as fezes e o afásico com as palavras. É evidente que uma máquina acumula energia, tensão, força, mas acumulação obedece a um processo teológico de deslocamento de energia retida em função de uma modificação de um acontecimento desejado. A máquina sem atrito reconhece a reta como o menor caminho entre dois pontos. Estranhamente esta máquina proposta por Almandrade não materializa um princípio teológico. Trabalha implosivamente, retendo força para o próprio gozo, como o halterofilista acumula músculos para o gozo do espelho / olho.
Sem dúvida é difícil pensar os trabalhos sem relacioná-los com o tecido cultural e seus produtos. Os trabalhos se ocupam, investem nessa massa de signos. Há, como tentamos “demonstrar”, uma operação de desconstrução do espetáculo reservado para os objetos de arte. Vimos a quebra do mito da retina, na medida em que os trabalhos mobilizam um envolvimento mental da parte do sujeito espectador.
sobre o autor
Haroldo Cajazeira Alves é crítico de arte e professor de filosofia.
Haroldo Cajazeira Alves, São Paulo SP Brasil