Visando complementar a entrevista com o arquiteto Luís de Garrido, este artigo tem a intenção de esclarecer algumas informações e conceitos citados e não detalhados pelo arquiteto.
Todos sabemos que há muito de errado com as nossas cidades, e por isso devemos aspirar a um modelo mais eficiente de cidade no futuro. A pegada ecológica das cidades existentes já cobre virtualmente todo o globo. À medida que novas cidades consumidoras se expandem, também cresce a competição por esses recursos e crescem essas pegadas.
Pensar na compactação e adensamento das cidades, na diminuição do ritmo de crescimento das aglomerações urbanas, na autosuficiência, na busca de um metabolismo circular para as cidades onde o consumo é reduzido pela implementação de eficiências e onde a reutilização de recursos é maximizada etc., tudo isso estruturado de modo a oferecer oportunidades sem colocar em risco as futuras gerações.
As cidades futuras podem vir a ser o trampolim para se resgatar a harmonia da humanidade com o seu meio ambiente.
Regredir no tempo em busca de soluções advindas da correta interpretação dos fatores naturais do clima, em busca do conhecimento e domínio causado pelos efeitos positivos e negativos do clima, a fim de desenvolver estratégias projetuais para uma harmoniosa relação com o edifício.
Com o tempo o arquiteto tradicional foi se desfazendo paulatinamente de muitas de suas competências profissionais. No lugar de estudar mais e de trabalhar mais (e seguramente de cobrar mais), o arquiteto foi delegando muitos aspectos de sua competência profissional a outros profissionais. Deste modo, nota-se duas coisas paralelas: o arquiteto tem cada vez menos prestígio e valor social, e centrou a sua atividade profissional na distribuição e relação de espaços, e no projeto da envoltória do edifício, ou seja, no seu aspecto visual.
Como fomentar o papel do arquiteto na busca pela sustentabilidade dos projetos, visando recuperar a sua posição de destaque perante a sociedade?
Uma das características mais representativas do arquiteto espanhol Luís de Garrido é a conceitualização do que ele mesmo denominou “Naturezas Artificiais”.
Trata-se de identificar e dar autonomia ao universo dos artefatos construídos pelo homem, dotando-os de suas próprias leis ecológicas, e integrando-os à natureza.
A Natureza, tal e como a vemos, é o resultado de um processo contínuo de “tentativa e erro” sem finalidade alguma, canalizado pela sobrevivência das espécies que se criam neste processo contínuo (cíclico, infinito e sem finalidade racional).
Mas a natureza conseguiu criar suas próprias leis ecológicas de autocontrole e se alimentou de energia natural para a sua existência. Do mesmo modo, a atividade humana (linear, finita e racional), e os artefatos resultantes, deveriam estar regulados por novas leis ecológicas artificiais, e do mesmo modo, alimentados pela mesma energia natural. Ambas (Natureza e Natureza Artificial) deveriam estar continuamente em perfeito equilíbrio.
Nos últimos anos, Luís formalizou um conjunto de normas que poderiam reger estas novas “Naturezas Artificiais”, e experimentou em cada um dos seus projetos, para tentar se aproximar de uma meta extremamente complexa, que ele impôs a si próprio.
Para entender melhor os seus objetivos, cita apenas um exemplo:
Leonardo da Vinci, entre muitas de suas atividades, tinha uma especial preocupação com o voo dos pássaros. Passava o tempo observando como eles voavam, como era a forma de suas asas, como elas batiam etc.
Leonardo deduziu muito cedo que seria impossível ao homem, ou ao menos extremamente difícil, simular de forma direta o voo dos pássaros a partir de seu conhecimento e a tecnologia disponível. O tempo lhe deu razão, pois até hoje não se conhece nenhum material ou bateria suficientemente leves, nem um motor suficientemente potente, para conseguir esse feito. Contudo, depois de inúmeras horas tentando entender o mecanismo do voo dos pássaros, Leonardo interiorizou, aprendeu, e como consequência do processo, não tardou em criar um sistema, inclusive muito mais eficaz que o bater das asas: a hélice.
Foi isso que ele tratou de formalizar: um novo tipo de artefato, fruto exclusivo da atividade humana, mas resultado do entendimento profundo da Natureza e perfeitamente integrada nos seus ciclos vitais. Novas “Naturezas Artificiais”.
Luís conseguiu um sistema projetual que utiliza um conjunto de elementos arquitetônicos industrializados, capaz de criar edifícios que tenham um ciclo de vida infinito. Neste sentido seus componentes podem se recuperar, se reparar e se reutilizar de forma contínua e permanente, sem gerar resíduos nem emissões. Do mesmo modo, estes edifícios podem se deslocar, se reimplantar, crescer, se modificar de forma contínua, como se fossem organismos vivos. Luís ainda cita que pode conseguir com facilidade edifícios bioclimáticos com consumo energético de energias não renováveis igual a zero.
O conceito de novas “Naturezas Artificiais”, se tornou a maior contribuição da sua trajetória profissional, onde reside a essência do seu trabalho.
Há 10 anos Luís realizou um método classificatório, expondo todas as ações sustentáveis que poderiam ser levadas em consideração em um projeto, e o seus respectivos preços. Este modelo foi denominado pelo arquiteto espanhol como “o modelo das pirâmides invertidas”
“Me surpreendi, já que constatei que as ações com maior eficácia para o meio ambiente eram, curiosamente, as mais baratas. Em troca, as ações com menor eficiência para o meio ambiente eram as mais caras.”
Portanto, a maior parte da tecnologia que se pode incorporar em um edifício é muito cara, e tem baixa eficiência para o meio ambiente. O que, segundo de Garrido, é parte de mesma equação: “A tecnologia não contribui praticamente em nada no que diz respeito à sustentabilidade de um edifício, e ainda por cima a encarece”.
No seu lugar, Luís aponta as ações relativas a um desenho apurado do edifício (orientação, forma, disposição dos vidros, disposição da massa térmica, sistemas de ventilação natural, sistemas de iluminação natural etc.) que são as ações mais baratas e de maior eficácia para o meio ambiente.
É muito importante - afirma Luís - que o bom projeto de um edifício garanta até 80% do seu nível de sustentabilidade. Em troca, a utilização da tecnologia adequada contribui em apenas 5%. A incorporação de certas tecnologias aos edifícios (sistema de ar-condicionado, sistemas domóticos etc.) pode inclusive reduzir o nível de sustentabilidade.
Um bom projeto de um edifício não supõe um acréscimo no seu custo; por outro lado, a incorporação de tecnologias o encarecem consideravelmente, conclui o especialista.
Isso tudo deveria fazer com que os arquitetos refletíssemos e obriguemos nossos colegas a entender essa equação e passemos a recusar o uso de aditivos tecnológicos, por mais sustentáveis que possam ser em sua publicidade.
Abaixo ilustra-se o discurso atráves do infográfico, produzido por ele:
O nome “Pirâmides Invertidas” se deve à forma concreta que se obtém quando se classificam as ações arquitetônicas pelo seu custo versus eficiência ambiental (como resultado da evolução por meio dos indicadores efetivos).
Consciente que uma simples definição de Arquitetura Sustentável não basta e depois de 20 anos de experiência, de Garrido criou um conjunto de ações, cuja aplicação garante a obtenção de uma autêntica, verdadeira e completa arquitetura sustentável:
Ações para se obter uma autêntica, verdadeira e completa arquitetura sustentável:
1. Proteger o meio ambiente
Garantir a integridade da Biosfera
Reduzir a fragmentação do Território
Perceber o entorno de forma holística
Reduzir ao máximo a pavimentação
Reduzir a edificação em terras de cultivo
Promover a edificação em altura e a compactação da cidade
Promover a reciclagem das cidades e evitar sua expansão
2. Proteger a Fauna e a Flora
Preservar o ecossistema existente, a Fauna e a Flora local
Conservar os Habitats existentes
Garantir a integração holística com o entorno
3. Assegurar a nutrição humana
Estimular a produção local de alimentos
Reduzir o transporte de alimentos
Reduzir os fertilizantes
Assegurar que a dieta humana não gere nenhuma mudança climática
Promover o cultivo de alimentos nos edifícios
Estimular a autossuficiência da água nos edifícios
4. Modificar o estilo de vida humano e seus valores culturais
Reavaliar as necessidades humanas
Reavaliar as necessidades sociais
Satisfazer as necessidades humanas básicas
Garantir a integração com o entorno histórico e social
Assegurar uma atividade humana sem impacto na Natureza
Assegurar uma atividade humana sem impacto negativo no Clima
5. Melhorar o bem estar humano e sua qualidade de vida
Projetar com materiais saudáveis
Projetar com materiais não emissores
Projetar com ventilação natural
Satisfazer as relações sociais humanas
Melhorar a qualidade de vida humana
6. Otimizar recursos (naturais e artificiais)
Projetar para durar
Projetar para recuperar
Projetar para reparar e reutilizar
Projetar para reciclar
Projetar para desmontar
Projetar para reintegrar
7. Promover a Industrialização e a pré-fabricação
Projetar para industrializar
Projetar com componentes modulares
Projetar com componentes pré-fabricados
8. Reduzir ao máximo as emissões e os resíduos
Projetar para reutilizar
Projetar para administrar e reduzir resíduos
Projetar com soluções construtivas simples
Reduzir a contaminação
Reduzir os resíduos
Projetar com materiais não emissivos
Projetar com materiais biodegradáveis
Projetar com resíduos
9. Promover o uso de energias naturais renováveis
Projetar com energia solar
Projetar com energia eólica
Projetar com energia geotérmica
10. Reduzir o consumo de energia
Projetar com materiais locais
Projetar com soluções construtivas simples
Projetar com mão de obra local
Promover a autossuficiência energética nos edifícios
Projetar com tipologias bioclimáticas de edifícios
Projetar soluções construtivas de alta eficiência energética
Projetar com a menor quantidade possível de artefatos
11. Reduzir o custo e a manutenção
Projetar de forma integrada o entorno econômico
Projetar com soluções simples
Projetar para prolongar o ciclo de vida dos edifícios
Projetar com soluções tecnológicas simples e adequadas
12. Mudar os sistemas de transporte
Reduzir o número de automóveis
Assegurar a utilização do solo proporcional ao transporte público
Promover os deslocamentos a pé e de bicicleta
O grau de realização de cada um destes pilares básicos constitui portanto o nível de sustentabilidade de uma construção.
No entanto, estes pilares básicos são muito genéricos e ambíguos.
É necessário que esses pilares se dividam em vários itens, de modo que se diferenciem entre si, e ao mesmo tempo, sejam facilmente identificados, executados e avaliados.
Estes são os “indicadores sustentáveis”, e servirão não somente para avaliar o grau de sustentabilidade de um determinado edifício (se o edifício já estiver construído), como para fornecer as diretrizes para a construção de um edifício 100% sustentável (para o projeto de novos edifícios). Uma arquitetura realmente sustentável deveria cumprir de forma exaustiva com todos os indicadores a seguir:
Os 38 indicadores sustentáveis de Luís de Garrido:
1. Otimização dos recursos e materiais
1.1.Utilização de materiais e recursos naturais
1.2.Utilização de materiais e recursos duráveis
1.3.Utilização de materiais e recursos recuperados
1.4.Reutilização de materiais e recursos
1.5.Utilização de materiais e recursos reutilizáveis
1.6.Grau de reutilização dos materiais e recursos utilizados
1.7.Utilização de materiais e recursos reciclados
1.8.Utilização de materiais e recursos recicláveis
1.9.Grau de reciclagem dos materiais e recursos utilizados
1.10.Grau de renovação e reparação dos recursos utilizados
1.11.Grau de aproveitamento dos recursos
2. Diminuição do consumo energético
2.1.Energia utilizada na obtenção de materiais de construção
2.2.Energia consumida no transporte dos materiais
2.3.Energia consumida no transporte da mão de obra
2.4.Energia utilizada no processo de construção do edifício
2.5.Consumo energético do edifício
2.6.Adequação da tecnologia utilizada com relação a parâmetros humanos intrínsecos
2.7.Grau de utilização de fontes de energia naturais mediante o desenho do próprio edifício e do seu entorno. (Grau de Bioclimatismo)
2.8.Inércia térmica do edifício
2.9.Grau de utilização de fontes de energia natural mediante dispositivos tecnológicos. (Grau de integração arquitetônica de energias alternativas)
2.10.Consumo energético na desconstrução do edifício (desmontagem, demolição, tratamento de resíduos, etc.)
3. Diminuição de resíduos e emissões
3.1.Resíduos e emissões gerados na obtenção dos materiais de construção
3.2.Resíduos e emissões gerados no processo de construção do edifício
3.3.Resíduos e emissões gerados durante a atividade do edifício
3.4.Resíduos e emissões gerados na demolição do edifício.
4. Diminuição da manutenção, exploração e uso dos edifícios
4.1.Adequação da durabilidade do material a sua vida útil no edifício
4.2.Energia consumida quando o edifício está em uso
4.3.Energia consumida quando o edifício não está em uso
4.4.Consumo de recursos devido a atividade do edifício
4.5.Emissões devido à atividade do edifício
4.6.Energia consumida na acessibilidade ao edifício
4.7.Grau de necessidade de manutenção do edifício
4.8.Entorno socioeconômico e custos de manutenção
4.9.Custo do edifício
5. Aumento da qualidade de vida dos ocupantes dos edifícios
5.1.Emissões nocivas para o meio ambiente
5.2.Emissões nocivas para a saúde humana
5.3.Índice de mal estar e enfermidades dos ocupantes do edifício
5.4. Grau de satisfação e bem estar dos ocupantes
Esses indicadores visam uma nova arquitetura que esteja em equilíbrio com a natureza e que garanta a felicidade das pessoas.
Esses dados passam a se constituir em uma relevante contribuição para a produção de uma arquitetura global mais consciente sobre os preceitos básicos de um projeto sustentável.
Cumprir todos os pontos anteriores é uma tarefa simples, sempre e quando se tenha conhecimento adequado, e claro, sempre e quando se tenha vontade de realizá-la.
sobre o autorGiuliano Augusto Pelaio é graduado em Arquitetura e Urbanismo em 2008 pela FAU – PUC – Campinas, pós graduado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) em Sistemas Tecnológicos e Sustentabilidade Aplicados ao Ambiente Construído, e em 2010 se especializou em Arquitetura Sustentável pela Asociación Nacional para la Vivienda del Futuro - ANAVIF, onde concluiu o mestrado “Arquitectura Sostenible” em Valencia-Espanha.