Ingredientes para um texto
Uma “pequena descoberta”; uma breve troca de emails com Hugo Segawa; e um desafio lançado por Abílio Guerra: aí estão os ingredientes para este texto.
Durante meu pós-doutorado na Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto, aproveitei minha estadia para garimpar “alfarrabistas” em terras lusas. Em um dia de garimpo, acabei adquirindo perto de vinte números, datando de 1927 a 1947, de A Arquitectura Portuguesa – depois A Arquitectura Portuguesa e Cerâmica e Edificação Reunidas – pela bagatela de um euro cada.
As revistas talvez guardem um ou outro “pequeno achado”, como a casa de beton armado aparente do engenheiro José Carlos Sellerier (1), do final dos anos 1920; a série de reportagens “Os arranha-céus no Rio de Janeiro”, escritas pelo engenheiro Delfim Ribeiro de Oliveira, no início dos anos 1930 – mas estas s(er)ão outras estórias...
A “pequena descoberta” na origem da troca de emails com Hugo Segawa e do convite para escrever este texto diz respeito ao fato de que, em julho de 1941, antes, portanto, de Brazil Builds, a revista A Arquitetura Portuguesa e Cerâmica e Edificação Reunidas (2) publicou uma matéria – A Arquitetura no Brasil – onde aparecem casas de Oswaldo Bratke e Carlos Botti. Segundo depoimento de Hugo Segawa ao autor, Bratke “não guardou a revista. Provavelmente como uma “renegação” quando convertido ao moderno. Quando elaboramos o livro (3), ele aceitou melhor essa fase. Creio que todos modernos passaram por isso”.
A capa da revista traz dois projetos residenciais da dupla e a primeira matéria apresenta um interior de John Graz. Na reportagem de dez páginas, lê-se no texto de apresentação: “nesse momento em que o Brasil e Portugal estreitam mais e mais os seus laços de amizade e procuram por todos os meios estabelecer uma coordenação de esforços e de vontades não poderíamos deixar de colaborar dentro do nosso campo de acção na tarefa de dar a conhecer o Brasil aos Portugueses”. Afirmação que não deixa de ser curiosa, na medida em que, uma década antes, os arranha-céus no Rio de Janeiro parecem ter desempenhado papel semelhante.
Saldando uma dívida
As relações arquitetônicas entre os dois países, tema de meu pós-doutorado, são, de fato, mais complexas do que pode parecer em um primeiro momento. Se é convenção admitir que a Missão Francesa interrompe tais relações, é necessário não perder de vista ou, como o arqueólogo-detetive de Vladimir Bartalini (4), recuperar os veios ocultos que alimentam ou correm paralelos aos “palcos” de maior evidência: a atuação de Ricardo Severo (5), a suposta influência de Documentação Necessária no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, as viagens de Lucio Costa à “terrinha” (6), a geração de Álvaro Siza e a descoberta de Brazil Builds.
Discípulo dileto de Jean Baptiste Debret, Manoel de Araújo Porto Alegre, precursor da história da arte no Brasil (7), quando de sua temporada na Europa, trava contato com a obra de Almeida Garret, ele mesmo uma espécie de maquis da história da arte em Portugal (8). O fato é significativo porque há uma coincidência de intenções, claramente relacionada ao ideário do nacionalismo romântico nesse momento (9). Mas enquanto outros românticos brasileiros, como seu amigo Domingos José Gonçalves de Magalhaens, vão buscar o nacional no indianismo, Porto Alegre afirma a contribuição do colonizador – seu poema Colombo parece se contrapor, nesse sentido, à Confederação dos Tamoyos.
É com essa perspectiva que ele recupera personagens como Mestre Valentim, não obstante, um mulato. Conciliando (neo)classicismo e romantismo (10), dois aspectos de sua formação, Porto Alegre, apesar de seus esforços, não logra, entretanto, feito semelhante em relação ao nosso passado colonial.
Ernesto da Cunha de Araújo Viana, por sua vez, vai fazer referência constante a Porto Alegre (11). E assim chegamos a Lucio Costa, que afirmava que o Neocolonial era “fruto da interpretação errônea das sábias lições de Araújo Viana” (12), elidindo completamente a figura de Ricardo Severo. Portanto, dando crédito a Costa, anteriormente à atuação de Severo em São Paulo, há um veio “luso-carioca” que, partindo de Porto Alegre, passa por Viana, desvia no Neocolonial e chega até o arquiteto (13).
E o que tem isso a ver com Bratke?
Se duas das quatro residências de Bratke & Botti apresentadas nas páginas de A Arquitetura Portuguesa e Cerâmica e Edificação Reunidas têm caráter mais tradicional – o que, diga-se de passagem, não as desqualifica – por outro lado, as outras duas buscam um equilíbrio entre moderno e tradicional, cuja inspiração talvez não seja, necessariamente, Costa: “isto é estilo cem por cento moderno mas em que uma observação atenta descobre igualmente cem por cento de sugestão portuguesa”, diz a matéria.
A casa número dois possui telhados baixos a Frank Lloyd Wright, associados a um balcão curvo em balanço, amplas aberturas no térreo e algum controle da insolação na parte superior. Apesar de certa elegância, o resultado não convence plenamente, mas o importante é o ensaio de conciliação. Na número quatro, que chegou a ser construída, a articulação de linhas e volumes parece menos fluida e elegante, porém acaba se revelando mais acertada. O balcão é reto e cria um ambiente aberto embaixo; a curva se transforma no volume da sala de jantar; e o encontro dos dois, balcão e volume, é uma incógnita que a perspectiva levanta e a foto não esclarece.
Fechando a matéria – e este “drops” – aparecem:
1) um pequeno prédio da “arquitecta Francisca F. da Rocha” (?) a primeira arquiteta a aparecer na revista (!);
2) e mais quatro casas de J. Cordeiro de Azevedo, diretor da revista brasileira A Casa e articulador da “reportagem especial”. Três delas são casas proletárias. Aliás, trata-se da mesma casa, em “sequencia progressiva de aumento futuro” ou, em termos atuais, Azevedo propõe uma “tipologia evolutiva”.
Fechando as cortinas, ficam as dicas:
1) prato cheio para um estudo de gênero, não?
2) seria a proposta algo inovador? Ou um lugar-comum nas discussões da época?
That’s all folks!
notas
1
Estudioso do betão armado, André Tavares, em conversa com o autor, não associou Sellerier a nenhum outro fato, embora sua pesquisa refira-se ao período anterior a Primeira Guerra Mundial. Ver TAVARES, André. Os efeitos do betão armado na arquitectura portuguesa: o caso Moreira de Sá & Malevez (1906-1914). In MATEUS, João (Org.). A história da construção em Portugal: alinhamentos e fundações. Lisboa: Almedina, 2010, p. 157-181.
2
A Arquitetura Portuguesa e Cerâmica e Edificação Reunidas, Ano XXXIV, n. 76, 3ª série.
3
SEGAWA, Hugo; DOURADO, Guilherme Mazza. Oswaldo Arthur Bratke. São Paulo: ProEditores, 1997.
4
BARTALINI , Vladimir. Palcos e bastidores. Ainda sobre córregos ocultos. Arquitextos, São Paulo, n. 14.160.00, Vitruvius, set. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/14.160/4869>.
5
Cf. MELLO, Joana. Ricardo Severo: da arqueologia portuguesa à arquitetura brasileira. São Paulo: Annablume, 2007.
6
Por outro lado, as passagens de Raul Lino e Fernando Távora em terras tupiniquins ainda não foram devidamente exploradas.
7
ANDRADE, Rodrigo Mello Franco. Araújo Porto Alegre, precursor dos estudos de história da arte no Brasil. In Rodrigo e seus tempos. Rio de Janeiro: Fundação Pró-memória, 1986, p. 312-320. Sobre Porto Alegre, ver também: SQUEFF, Leticia. O Brasil nas letras de um pintor. Campinas: Editora, 2004.
8
Cf. FRANÇA, José-Augusto. Garrett e a história da arte. In Garrett às portas do milênio. Lisboa: Colibris, 2002.
9
Para Duarte Cruz, “Garrett é o pioneiro no reconhecimento da autonomia cultural do Brasil, com sinais claros a partir do século XVIII”. Discursos, n. 1., Lisboa: Universidade Aberta, 2006.
10
Segundo Argan, o neoclassicismo já é romantismo. ARGAN, Giulio Carlo. Arte moderna. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
11
Segundo Andrade, Viana era “discípulo confesso e agradecido de Porto Alegre”. ANDRADE, Rodrigo Mello Franco. Op. cit., p. 319.
12
COSTA, Lucio. Depoimento de um arquiteto carioca. In XAVIER, Alberto (Org.). Lúcio Costa: sobre arquitetura. Porto Alegre: CEUA, 1962.
13
Outro veio seria constituído pelos mestres de obras portugueses que, ainda em 1910, estavam no bom caminho, fiéis à boa tradição portuguesa. COSTA, Lúcio. Documentação necessária (1937).
sobre o autor
Ricardo Rocha é professor na Universidade Federal do Espírito Santo. Doutor pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado na Universidade do Porto, Portugal. Pesquisador do NAU-UFES.