Le Corbusier insistiu na diferença entre as mulas e os homens. O homem, diferentemente da mula, caminha em linha reta, tem um objetivo, sabe aonde vai.
Mas o arquiteto não imaginava que, dentro das linhas retas impecáveis de Chandigarh, surgiria uma favela de ruas tortas, enquadrada rigorosamente pela sua geometria cartesiana.
A favela de Chandigarh demonstra uma ausência estatal programada. Um Estado tão forte que controla sua própria ausência. Território reservado à humanidade excedente, o interior do quadrado marca o verdadeiro laissez-faire: deixe fazer.
A favela, conhecida como Burail Village, é o território de uma antiga vila, anterior à capital. Os moradores destas vilas chegaram a formar um movimento Anti Capital: a nova cidade seria construída sobre 58 vilas e afetaria 21 mil pessoas.
Chandigarh deveria ser o símbolo da Índia livre do domínio inglês. Mas o projeto da cidade símbolo da independência começou a ser desenhada por outro império. Chamou-se o arquiteto norte-americano Albert Meyer, que atuara na II Guerra Mundial como Engenheiro Civil pelo Exército Norte-Americano.
Após a desistência de Meyer, Le Corbusier assumiu o projeto.
Le Corbusier escreveu, em seu Urbanismo, que ”Um povo, uma sociedade, uma cidade insolentes, que se relaxam e se descontraem, são rapidamente dissipados, vencidos, absorvidos por um povo, por uma sociedade que agem e se dominam”.
Como explicar a favela de Chandigarh? Um povo insolente e relaxado como a mula que anda por linhas tortas? Ou exatamente o resultado daquela sociedade exaltada por Le Corbusier, que age e domina?
Le Corbusier pegou um projeto iniciado por um antigo militar norte-americano. Esse detalhe deveria ter sido suficiente para que ele previsse, no interior de sua cidade, a coexistência entre os vencidos e os vencedores. Erro de projeto.
Hoje, tudo está concertado, organizado pela mais rígida geometria.
notas
NA1
O artigo foi originalmente publicado no blog Urbano Oblíquo.
NA2
O título utiliza um termo emprestado, ironicamente, de Nova York Delirante.
sobre o autor
Flávio Higuchi Hirao é arquiteto, graduado pela Unicamp e mestrando pela FAU-USP. Pesquisador da missão do IPEA na Venezuela e membro do coletivo Usina-CTAH.