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João Masao Kamita observa a polêmica do filme "Flores Raras", com a troca de autoria da residência de Lota Macedo Soares, e analisa questões relativas a ficção.

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KAMITA, João Masao. Os sentidos da ficção. Drops, São Paulo, ano 14, n. 073.06, Vitruvius, out. 2013 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.073/4917>.


Casa Lota Macedo Soares, arquiteto Sergio Bernardes
Foto Paulo de Barros


A recente polêmica provocada pelo filme “Flores Raras” de Bruno Barreto envolve diretamente personagens fundamentais da história da arquitetura moderna no Brasil. Quatro, para ser mais preciso: o mais imaginativo e provocador arquiteto da 2ª geração, Sérgio Bernardes; o mais importante arquiteto brasileiro do século 20, Oscar Niemeyer; o mais importante paisagista brasileiro do século 20, Roberto Burle Marx; e o arquiteto que na cidade louvada pela “natureza abençoada” conseguiu impor um desenho público ao Rio, Affonso Eduardo Reidy.

Não dá para simplesmente ignorá-los, e embora se valha da máxima de ser “inspirado em fatos reais”, o filme omite o papel desses personagens na vida cultural do período. Não bastasse isso, o filme canibaliza as energias criativas e os fatos estéticos por eles realizados, para condensá-los na personagem de Lota Macedo Soares, convertida em super-artista. Lota, assim, desenhou e construiu sua casa em Samambaia, Petrópolis, em 1951, que é no filme a casa Edmundo Canavellas, projetada por Niemeyer em Pedro do Rio. A casa de Samambaia, que não aparece, é contudo projeto bastante conhecido de Sérgio Bernardes. Lota igualmente, no filme, fez o belíssimo jardim da casa, mas este é de Burle Marx, o mesmo que contribuiria de modo fundamental no projeto paisagístico do Parque do Flamengo. Contudo, no filme, Lota aparece como idealizadora e projetista do Parque, que na verdade foi iniciativa de um grupo de trabalho, liderada pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy.

Meu amigo Alfreto Brito já apontara todas estas omissões (1); mais, disse que a grandeza e importância histórica de Lota Macedo Soares, por si, dispensaria esse acréscimo de atributos e talentos alheios. A força de sua presença, a contundência de suas ações e ideias culturais e políticas e a altivez e coragem morais numa época pouco afeita a aceitar diferenças era mais que suficiente para justo resgate que o filme se pretendera.

Apesar do “inspirado em fatos reais” soar como retórica vazia e maniqueísta junto ao público, um filme é um filme, uma obra de ficção. Não passa por alguma exigência ou obrigação moral de ser historicamente exato, de que se paute por fidelidade histórica. Nem mesmo um documentário carregaria tal conteúdo de verdade. Há muito sabemos História é interpretação, eleição e escolha, articulados num discurso plausível e convincente.

O filme se pretende focalizar o embate criativo e afetivo entre duas personagens: Lota Macedo Soares e Elizabeth Bishop. Daí a opção em transformar a primeira na artista que nunca fora e assim, criar um contraponto á criação poética de Bishop. Desse modo, ao exílio introspectivo necessário à elaboração da palavra poética, a arte pública e construtiva da arquitetura e do urbanismo. Novamente, a opção pelo cruzamento entre as esferas da arte e da vida e aí intensificar o drama artístico, amoroso e psicológico.

Não deixa de ser lamentável, e é isso unicamente o que podemos fazer, lamentar a falta de reconhecimento do papel da arquitetura na construção da cultura moderna no Brasil, como se de fato ela não tivesse ocorrido, ou como se tratasse de contribuição menor (apesar de Brasília). Alguns poderiam achar que se trata de desrespeito, outros mais pessimistas, um caso de ignorância cultural de nossos produtores culturais. Enfim...

Lembrei-me de outro filme que também tematizava o embate criativo entre duas personalidades artísticas. Refiro-me ao filme “Amadeus” (1984) dirigido por Milos Forman com roteiro de Peter Shaffer. O embate se deu entre os compositores Wolfgan Amadeus Mozart e Antonio Salieri, que viveram em Viena, no século XVIII. Muito embora a história tenha dado razão à Mozart, daí o nome do filme, o verdadeiro protagonista é Salieri, e todo seu drama é seu inconformismo com Deus, pelas graças indevidas por Ele distribuídas. Salieri, homem culto e refinado mas sem a dádiva da genialidade, Mozart retratado como um inconsequente fútil e histriônico mas com talento inato desconcertante. Dois personagens reais, mas teria a história sido assim? Seria Mozart esse misto de debiloide infantilizado e gênio musical inigualável? Salieri teria sido assim um compositor tão medíocre? É, pode ser...

Crer que essa possibilidade teria sido plausível é decisivo. Esta é uma possibilidade que a verdade histórica não bloqueia, não tem autoridade para fazê-lo. Não há como censurar o diretor pela falta de fidelidade histórica, porque justamente se aproveita de uma das brechas por ela deixada. E aí a ficção a preenche com a invenção da possibilidade. E não precisou atribuir uma composição de Mozart a Salieri para construir uma tensão dramática digna de um grande filme. Seria verdadeiramente um absurdo.

Recorrendo à velha distinção aristotélica, vale dizer que a ficção poética não é a busca do fantasioso, do irreal, nesse sentido oposta à verdade história. A ficção não recusa ou nega a realidade, ao contrário, nela se funda para então abrir vertentes insuspeitadas, se apoia no acontecido para construir um argumento verossímil, não no sentido de semelhante ao real (isso recairia no velho realismo naturalista), mas no sentido de convincente, de possível. Portanto, a diferença apontada pelo filósofo grego entre o historiador e o poeta é que um narra o que aconteceu e o outro o que poderia ter acontecido.

O problema do filme “Flores Raras”, a meu ver, não é a sua falta de compromisso histórico, o problema é a falta de um bom argumento ficcional.

nota

1
BRITTO, Alfredo. Flores raras e equívocas. Drops, São Paulo, n. 14.072.02, Vitruvius, set. 2013 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/drops/14.072/4864>.

sobre o autor

João Masao Kamita é professor da PUC-Rio e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, no curso de graduação em História e no curso de Arquitetura.

 

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