Para Camila Preissler
Em qualquer dicionário, o significado usual da palavra patrimônio é “herança familiar”. De fato, etimologicamente falando, o antepositivo grego pater refere-se a antepassado, fundador. O fundador de um clã que lega aos seus descendentes uma herança. Do clã ao patrimônio da humanidade é um belo salto! (que se neste texto foi feito em uma frase, na verdade levou mais de dois milênios para ser dado).
Evidentemente, trata-se de um processo de longa duração em direção a uma sociedade mais democrática, donde toda a problemática do patrimônio imaterial, que contempla o legado de culturas que não deixaram bens materiais ou cuja “riqueza” não está investida só neles.
Mas voltando ao patrimônio material, do clã à humanidade foi necessária uma mudança significativa nos valores atribuídos à noção. Patrimônio de uns poucos = posse. Patrimônio de todos = socialização. E o problema passa a ser que patrimônio, isto é, quais valores estão sendo socializados. Patrimônio/ valor. Há um jogo entre o significado original/ usual e sua resignificação, onde o ponto de partida é sempre um bem material e o que parece ser o “ponto de chegada”, um valor imaterial.
Retomando a questão anterior, quais valores foram e são socializados através da noção de patrimônio?
Restringindo a discussão ao Brasil, durante grande parte do século XX esses valores estavam investidos em bens materiais. O trabalho inicial do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (atual Iphan), criado em 1937, foi todo dedicado aos “bens de pedra e cal”. Muito se discute tal postura, no sentido da ideologia aí presente.
O projeto inicial de Mário de Andrade, na origem do decreto que criou o Sphan, contemplava, em parte, a questão do patrimônio imaterial. Por que ela foi abandonada então?
Em minha opinião, um aspecto nem sempre observado é que talvez tenha sido uma decisão prática: cuidar do patrimônio de pedra e cal antes que ele desaparecesse. É claro que há um conteúdo ideológico. Bens de pedra e cal são legados pelas (me desculpem o jargão) “classes dominantes” e, portanto, investidos de seus valores. Elegê-los como patrimônio seria então “perpetuar os valores da classe dominante” etc.
Contudo, é preciso tomar cuidado com tais leituras críticas. Lembrando o filósofo Walter Benjamim, não se pode esquecer que a história também pode ser lida a contrapelo. A construção de um edifício quase sempre emprega mão de obra advinda dos estratos sociais mais explorados. Contar sua história desse ponto de vista, isto é, discutindo as condições de trabalho existentes, etc., pode ser uma forma de resignificação.
Outra questão é a primazia conferida pelo Sphan ao Período Colonial, principalmente ao Barroco Mineiro. Novamente, talvez se trate de pragmatismo: cuidar dos bens mais antigos, isto é, em certo sentido, dos mais ameaçados; e, em relação ao Barroco Mineiro, de um determinado conteúdo ideológico: para a quase totalidade dos intelectuais da época, o barroco das Gerais era o momento primeiro de uma arte com características nacionais, associada a uma tentativa de autonomia política, a Inconfidência. Ora, todos esses valores estavam ligados ao problema da identidade nacional, verdadeira obsessão e não só daqueles anos.
Outro capítulo, não menos interessante, seria o dos valores expressos nas próprias intervenções realizadas nos bens. Não foi incomum “restaurar” um edifício de acordo com suas características originais – ou com aquilo que se presumia ser sua aparência original – desconsiderando reformas e adições posteriores, principalmente, as realizadas no século 19 e início do 20.
Do exposto acima pode-se concluir que não é só a qualidade artística ou arquitetônica (original) a justificativa para a preservação de um bem. Se isto parece claro, é bom lembrar que é mais sensato tentar identificar o valor que determinado bem possui para uma dada comunidade, do que querer dotá-lo de qualidades inexistentes.
Além disso, a “questão patrimonial” deve ser vista em um enquadramento amplo. A crítica de conceitos e posturas passadas é necessária, mas é indispensável uma perspectiva de futuro: imaginar o lugar do patrimônio na construção das cidades e de um mundo melhor.
nota
NA
Texto originalmente redigido como apoio para uma conferência no Seminário Ensaios e Reflexões: o patrimônio histórico e arquitetônico – novos olhares sobre nossa cultura, no Sesc Santa Rosa (RS), em outubro de 2009.
sobre o autor
Ricardo Rocha é professor na Universidade Federal do Espírito Santo. Doutor pela Universidade de São Paulo, com pós-doutorado pela Universidade do Porto, Portugal. Pesquisador do NAU/UFES foi Presidente do Conselho Municipal do Patrimônio Histórico e Cultural de Santa Maria (RS), professor no Mestrado Profissionalizante em Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Santa Maria (RS) e membro da Câmara de Patrimônio Arquitetônico, Bens Móveis e Acervos do Conselho Estadual de Cultura do Espírito Santo.